As crises têm duas faces: o sofrimento e o aprendizado
6 de junho de 2020, 8h00
O mundo parou. Os humanos estão recolhidos e amedrontados. A economia preocupa e há quem diga que o ‘day after’ será mais difícil que o dia de hoje. Digladiam-se, ao invés de convergir, os que defendem a proteção da vida (isolamento social, redução de atividades) e os que defendem a proteção da economia (continuidade das atividades econômicas, proteção do emprego e da renda, proteção do trabalhador informal). Os cientistas buscam a origem da epidemia, vacinas que evitem e remédios que curem a doença: uma febre, mal estar, tosse seca que pode evoluir para uma séria pneumonia, bloqueio dos pulmões e morte por insuficiência respiratória. A doença é transmitida por contato pessoal, de pessoa a pessoa; e a rapidez com que se espalhou pelo planeta, país a país, e com que contaminou em poucos dias boa parte da população, surpreende.
As crises têm duas faces, o sofrimento e o aprendizado; há os que ficam só no sofrimento e carregam essa amargura pelo resto da vida, e há os que aprendem com ele, revendo e mudando para algo melhor. É preciso pensar no futuro, no que teremos amanhã e nos dilemas que vamos enfrentar. O primeiro deles é uma compreensão maior do que seja o desenvolvimento sustentável de que falamos em 13-4-2019[2], um triângulo que se assenta sobre o lado que prevalece a cada momento: o ambiental, ou o social, ou o econômico, conforme a preocupação e a atividade que se pretende realizar; e o dilema consiste na difícil convivência entre os três aspectos, uma vez que a prevalência de um implica, de algum modo, no sacrifício menor ou maior dos outros.
Ultrapassada a pandemia, pois há de passar um dia, corre-se o risco de dar maior atenção aos aspectos social e econômico, degradando e reduzindo mais o planeta já exaurido e o que resta das áreas preservadas[3]; de demonstrar maior precupação com o ‘desenvolvimento’ que com o ‘sustentável’. A preocupação é real, pois a noção de desenvolvimento está ligada a crescimento e progresso, reduzidos por muitos ao aspecto econômico e material, um maior nivel de vida; sendo um ‘crescimento’ e sendo essa a percepção da sociedade, acabamos formando um sistema social e econômico que implica em uma expansão contínua da população e do consumo, em que a redução das desigualdades (redução necessária, diga-se) implica em maior uso dos recursos naturais e no futuro esgotamento do que existe hoje. Não falo do futuro de nós que estamos aqui agora, mas do futuro da humanidade (já pensaram que 15.000 anos se passaram desde o início da agricultura, que molda nossa sociedade, e 6.000 anos desde a construção das primeiras pirâmides?); das futuras gerações e da vida no planeta pelos próximos mil anos, para não dizer mais.
‘Sustentável’ é o que se mantém constante, estável por um longo período; não casa bem com o desenvolvimento, que implica em crescimento e progresso. ‘Sustentável’ implica em equilíbrio, em uma consciência não romântica da realidade, em uma visão do futuro que não temos visto nos dias de hoje; o desenvolvimento será sustentável se, e apenas se, coordenar com sabedoria as suas três vertentes, dando prevalência à proteção do meio ambiente que estava aqui antes de nós e do qual dependemos para continuar a estar aqui no futuro. A pandemia, mais uma zoonose ligada à degradação dos habitats naturais e à interferência humana na vida silvestre, exige a consideração adequada do desenvolvimento que queremos, e por quanto tempo queremos.
Posto isso, podemos tirar algumas lições da pandemia em uma relação singela que não exclui, naturalmente, outras não citadas e outras que surgirão com a evolução dessa crise. Uma, a certeza de que a estreita ligação entre a degradação do meio ambiente e o aparecimento das zoonoses implica em novas pandemias em um futuro próximo. Uma pequena história das pandemias: a peste negra, 50 milhões de mortos, Europa e Ásia, 1333 a 1351, uma bactéria transmitida para o homem pela pulga de ratos; a cólera, centenas de milhares de mortos, 1817 a 1824, transmitida por água e alimentos contaminados; a tuberculose, um bilhão de mortos, 1850 a 1950, transmitida por um bacilo; a varíola, 300 milhões de mortos, 1896 a 1980, transmissão pessoa a pessoa pelas vias respiratórias; a gripe espanhola, 20 milhões de mortos, 1918 a 1919, transmitida por um vírus em gotas de saliva e espirros; o tifo, 3 milhões de mortos, Europa Oriental e Rússia, 1918 a 1922, transmitido por uma bactéria trazida por pulgas e presente em países do terceiro mundo, campos de refugiados, guerras; a febra amarela, 30.000 mortos, Etiópia, 1960 a 1962, presente nas Américas, transmitida por um mosquito; o sarampo, 6 milhões de mortos até 1963, transmitido por um vírus em secreções mucosas como a saliva de indivíduos doentes, dando sinais de retorno no Brasil; a malária, 3 milhões de mortos por ano, desde 1980, transmitida por um protozoário em picadas do mosquito ‘anopheles’, a pior doença tropical e parasitária da atualidade; a AIDS, 22 milhões de mortos desde 1981, transmitido pelo vírus HIV através do sangue, do esperma, da secreção vaginal e do leite materno[4].
Nos últimos trinta anos, para citar as mais relevantes, tivemos a SARS ou Síndrome Aguda Respiratória Grave, identificada em 2003, transmitida pelo vírus SARS-CoV, do origem animal (morcegos), que afetou 26 países com mais de 8.000 infecções; a MERS ou Síndrome Respiratória do Oriente Médio, transmitida pelo vírus MERS-CoV, identificado na Arábia Saudita em 2012 em camelos e dromedários, com surto também nos Emirados Árabes e na Coréia do Sul[5]; e agora a COVID-19, transmitida por um novo tipo de coronavirus, de origem animal (morcegos), de fácil transmissão pessoa a pessoa, já presente em 215 países, com 6.800.000 infectados, 397.000 mortos e 3.310.000 recuperados[6]. O aumento exponencial das pandemias e epidemias e sua ligação com o modo como tratamos o meio ambiente não pode ser ignorado.
A rápida disseminação da doença é diretamente relacionada à movimentação das pessoas e fauna silvestre por países e continentes; decorre do modo de vida que criamos e que, como trouxe essa, disseminará com rapidez a próxima pandemia.
A forma e a rapidez da transmissão trouxeram uma sensação, uma percepção nova e assustadora; o ‘inimigo’ não é mais algo externo, mas a outra pessoa, em especial aquelas próximas de nós. Não sabemos como a sociedade vai lidar com isso e precisaremos encontrar uma forma nova de contato humano.
A noção de que a ciência não pode tudo. Temos desdenhado dos problemas e dos desafios que nós mesmos criamos dizendo que a ciência e a tecnologia encontrarão uma solução; e tem de fato solucionado muitos deles com a evolução da medicina, da produção de alimentos, da produção industrial. Mas ainda não compreendeu o ciclo de vida desse vírus que morre com água e sabão, como ele atua no organismo, qual a melhor forma de combatê-lo; e não nos protege das zoonoses futura, que deixam esse rastro de morte e sofrimento. Não dá para desafiar a natureza indefinidamente, irresponsavelmente como temos feito.
Mais uma, o vírus fez transparecer a desigualdade social, a ausência de saneamento, a precária urbanização, o problema dos aglomerados urbanos; e ligando todos os pontos, da degradação ambiental ao exaurimento do planeta e à desigualdade social, o aumento exponencial, enorme, dos humanos na Terra, uma realidade que a nossa sociedade se recusa a discutir ou enfrentar.
Como mencionei no início deste artigo, as crises produzem sofrimento e aprendizado. O maior aprendizado talvez seja a humildade, ver o planeta de joelhos, parado, frente a esse pequeno e frágil vírus que desdenha e ignora a nossa arrogância, a realidade se impondo aos nossos sonhos, preconceitos, ideologias, expectativas. Há muito que fazer.
[1] https://www.conjur.com.br/2020-mar-28/ambiente-juridico-relacao-entre-meio-ambiente-pandemia-coronavirus
[3] Esse é um problema mundial, mas que preocupa mais no Brasil de hoje. O governo atual indica uma clara prevalência da vertente econômica e uma clara desconsideração, desprezo até, pela vertente ambiental, por ele vista como um estorvo. Daí a necessidade de uma maior compreensão da complexidade do problema.
[4] https://super.abril.com.br/saude/as-grandes-epidemias-ao-longo-da-historia/. Vide também https://www.360meridianos.com/especial/pandemias-epidemias-mundiais, consulta em 5-6-2020
[5] https://www.360meridianos.com/especial/pandemias-epidemias-mundiais, consulta em 5-6-2020
[6] https://www.worldometers.info/coronavirus/#countries, números válidos para 5-6-2020, acesso nesse dia.
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