Opinião

Noções e versões de liberdade e autoritarismo

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30 de julho de 2020, 7h14

O Brasil vive uma quadra em que se pode dizê-lo aderente a um momento conservador. E a pregação sobre a liberdade nesse cenário é, no mínimo complexa. Por outro lado, a atual pandemia da Covid-19 gerou, e ainda está a gerar, inúmeros debates jurídicos dessa e de outras ordens. Agudizou outros tantos. Um, em especial, parece incomodar, de modo geral, a todos. Diz respeito, em particular, à noção de defesa dos direitos e garantias individuais, e, em um sentido mais amplo, às percepções sobre a própria liberdade, ou a falta desta, na visão de tantos lados opostos, não raro, bastante ruidosos.

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O choque está alegadamente posto, portanto, entre conservadores e progressistas. Brada-se, pois, aqui e acolá, por um tolhimento de liberdades. Fala-se, por exemplo, sobre perdas de direitos e restrições em ganhos civilizacionais complexos. Alegações sobre medidas restritivas de toda ordem tornaram-se, também, recorrentes. Curiosamente, no entanto, e como se disse, isso se dá em ambos os lados do espectro. Direita e esquerda fazem, cada um a seu modo, acusações similares em relação a certo grau de autoritarismo de cada qual. Liberdade e autoritarismo são, assim, pontos cardeais que parecem se mostrar desencontrados.

De pronto, isso faz recordar um elo comum em debates de tantos processualistas penais de renome, como é o caso do sempre presente professor Sérgio Pitombo, sobre a noção de verdade. E isso ao mencionar a dúvida posta por Fernando Pessoa. O autor português, em "Obra poética", coloca sua visão de que "encontrei em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de por que se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham a razão. Não era que um via uma coisa e outro outra, ou que um via um lado das coisas exatamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao do outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão. Fiquei confuso desta dupla existência da verdade". Se existem, enfim, duplas verdades, talvez possa-se dizer que também existem duplos entendimentos de liberdade.

Se a noção de verdade pode ser dúbia, também o pode a noção de liberdade. E é justamente isso que se encontra no cerne do debate apontado. Autoritarismo, seria, de alguma forma, o antagonismo à liberdade. Hoje, frequentemente são aludidos termos sobre comunismo, fascismo e antifascismo, cada qual como exemplos de autoritarismo e, assim, negação da liberdade, como bem examina, aliás, Madeleine Albright em seu alerta sobre o fascismo, ou, a seu modo, Lilia Schwarcz em sua leitura sobre o próprio autoritarismo. Pois bem. É aqui onde se encontra o foco do problema. Muitos dos defensores de uma visão da liberdade, hoje, se dizem vitimados, pois o Estado (em busca de certas regulamentações), não excepcionalmente, atua no sentido de restrição de algumas questões, como é o caso em relação à liberdade de expressão, em relação ao porte de armas, ou, mesmo, em relação com questões de saúde pública. Pregam alguns, pois, abertamente contra um certo paternalismo do Estado quando se verificam tais restrições.

Por outro lado, discursos inflamados, e mesmo ríspidos, afirmando por possíveis intervenções do Estado ou das Forças Armadas, ainda que em termos da sustentação dessas liberdades pseudo-tolhidas, são vistos d'outra sorte, como contrárias à liberdade. Da mesma forma, quando grupos populares pregam radicalizações políticas, contrárias a poderes como o Legislativo ou o Judiciário, igualmente são tidos com déficit de liberdade. Mas isso seria exemplo simplista de autoritarismo? Aparentemente não, pois deve-se ter em mente que dicotomias como as noções de ódio e dor, Estado e cidadão, ou, simplesmente, decisões executivas de determinada ordem não implicam necessariamente, per se, em atribuição sobre seu caráter democrático. E é esse o ponto fundamental.

Esquecem-se, muitos, que o paternalismo, ainda que questionável em tantos pontos, pode, vez por outra, justificar-se, em especial em relação à busca do bem comum. Não se obriga alguém a utilizar cinto de segurança em veículos automotores unicamente porque isso evita problemas no sistema hospitalar, ainda que essa seja uma justificativa comum. Busca-se, sim, em termos de saúde pública, um evitamento de mortes. O mesmo vale para o uso de capacetes por parte de motociclistas. O paternalismo é equivocado quando alicerçado em pontos morais, mas, em termos genéricos, e quando fundamentado em questões supraindividuais, ele pode eventualmente ser útil e aceitável, principalmente quando está ele desvinculado de aspecto arbitrário injustificado.

Por outro lado, prisões durante a pandemia, televisadas e tantas vezes acusadas de autoritárias, mostraram-se, no mais das vezes, ao que se noticiou, como decorrentes de desacatos, e não de violações sanitárias. Seriam, assim, crimes praticados por particular contra a Administração em geral, e não crimes contra a saúde pública. Em termos genéricos, restrições ambulatoriais, da mesma forma, tinham também, e tão só, escopo de proteção da saúde pública, como bem espelhadas em tantas decisões relativas à Habeas Corpus que buscaram, na Justiça, a defesa de uma certa liberdade.

O assunto não é novo. Esses debates já se deram, em outra medida, há mais de cem anos, quando da própria Revolta da Vacina. A pergunta feita então, poderia ser repisada: as pessoas têm o direito de ficar doentes? A resposta até poderia ser positiva, mas não podem contribuir, com sua irresponsabilidade, para um potencial aumento da pandemia. Da mesma forma com o que certa restrição ao porte de armas visa a evitar situações de risco, sem que isso venha a ferir uma potencial liberdade dos cidadãos, também o Estado, legitimado constitucionalmente, pode restringir anseios que venham a se mostrar contrários ao comprometimento público maior.

A noção de liberdade de expressão caminha em um mesmo passo. Ela existe e é garantida pela Constituição Federal. No entanto, essa liberdade é acompanhada de responsabilidade, uma vez que pode implicar em sanções penais, quer por crimes contra a honra, quer por crimes contra a paz pública, quer mesmo em relação à segurança nacional. Censura prévia não se tolera, mas também não se pode tolerar a noção de agressões desmedidas que venham a violar bens jurídicos outros.

Isso traz, portanto, à consideração sobre os termos relativos ao autoritarismo. Mesmo que se o entenda como um exercício contra as liberdades, parece que o fundamental é o estabelecimento sobre o que é liberdade. A liberdade, vista como princípio constitucional, somente pode ser entendida em relação a um balanceamento sobre princípios. Esse equilíbrio tênue talvez esteja além do gosto de alguns, mas somente ao se entender o mesmo é que se pode imaginar a convivência em comum.

A distinção vista, portanto, e parafraseando Pessoa, nessa dupla existência de autoritarismo, pode mostrar-se falsa, na medida em que nem todas as percepções encontram respaldo na Constituição Federal. A saúde pública e o bem-estar da população é guardado de forma ampla, mesmo que sob um foco paternalista. Já as liberdades individuais, embora também protegidas, encontram, desde sempre, limitações legais. É com base na racionalidade que se pode alcançar uma resposta serena. Enquanto isso não for feito, enquanto os discursos não entenderem a lógica da colocação oposta, vão haver contrapontos irreversíveis. A liberdade, enfim, prevalece, como sempre, nos limites da lei, e não de forma indistinta, pois isso talvez viesse a implicar outra dimensão de entendimentos, mais próximos a outra situação distinta. Esse seria o anarquismo. E não parece ser este, ao menos no momento, o caso.

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