Opinião

A possível cobertura de lucros cessantes sem danos físicos — Parte 1

Autor

  • Ernesto Tzirulnik

    é advogado doutor em Direito pela Universidade de São Paulo(USP) é presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro e da Comissão de Direito do Seguro (IBDS) e resseguro da OAB-SP.

29 de julho de 2020, 18h10

Texto da palestra no "I Congresso Digital Covid-19 Repercussões sociais e jurídicas da pandemia", realizado pelo Conselho Federal da OAB, em 27 de julho de 2020.

Espero que estejam bem, protegendo-se e protegendo a todos neste momento triste. Nós que temos casa e conforto, e uma profissão que não cessa, somos especialmente obrigados a manter as pessoas com trabalho e a evitar a propagação do coronavírus.

Spacca" data-GUID="ernesto_tzirulnik.png">É uma grande honra participar deste encontro com as advogadas e os advogados brasileiros. Muito obrigado aos que tiverem paciência para ouvir-me e espero ser útil para, ao menos, aumentar suas dúvidas e fomentar o bom debate.

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao presidente Felipe Santa Cruz por liderar o CF-OAB altaneiro e protagonista da nossa história. Finalmente, a Ordem voltou a lutar pelas liberdades democráticas, o que é mais difícil nestes tempos "trevosos". A seccional do meu Estado tem-me dado esse mesmo gosto.

Além do exemplar protagonismo político, o CF-OAB incentiva as discussões técnicas, o que posso testemunhar a partir da Comissão de Infraestrutura, onde sou consultor. Presidida pelo colega Marcos Meira, ela é muito proativa e gera contribuições em diferentes áreas, inclusive tendo realizado, há alguns meses, seminário sobre o Direito do Seguro aplicado às obras de infraestrutura.

Quero fazer um agradecimento especial aos organizadores deste congresso, à Secretaria-Geral e à Comissão de Direito Securitário, presidida pelo meu querido amigo e grande conhecedor do seguro e do seu Direito, o doutor Carlos Harten, que vem-se notabilizando, com papel central, na luta pela primeira Lei de Contrato de Seguro brasileira, hoje em discussão no Senado.

Tenho convicção de que meu papel é aquecer a conversa para vocês aproveitarem as magníficas palestras que seguirão, a da professora Priscila Quintieri, estudiosa do Direito Civil que certamente contribuirá muito com seu olhar abrangente e prudentemente distante de interesses setoriais, e a palestra de outro querido amigo de longa data, o Ilan Goldberg, cujas brilhantes carreiras profissional e acadêmica tive o prazer de seguir.

A questão da pandemia tem repercutido no âmbito dos contratos de seguro, principalmente nos seguros de vida e nos seguros de lucros cessantes.

I) A pandemia da Covid-19 e o seguro de vida
No que diz respeito aos seguros de vida, atualmente são pouquíssimas as seguradoras que ameaçam negar o pagamento do capital segurado no caso de morte por Sars-CoV-2. A grande maioria já veio a público e reconheceu que o óbito causado por Sars-CoV-2 está coberto, mesmo que a apólice exclua expressamente óbitos relacionados a epidemias e pandemias.

Como é da essência do seguro de vida que ele cubra o risco de morte do segurado, o esperado é que o pagamento do capital ocorra quando a morte se verifique, salvo ponderável razão técnica suportada, expressa e claramente, no contrato.

A meu ver, fizeram bem as seguradoras em vir a público reconhecer a cobertura, embora aleguem fazê-lo apenas por liberalidade e não por obrigação, como é o caso. A autarquia federal de controle e supervisão, a Susep, lamentavelmente, jamais influiria nisso, pois foi ela que, nos microsseguros pra microcidadãos , instituiu a excludente de pandemia como padrão (Circular SUSEP 440/2012, artigo 12, inciso I, alínea "d").

Entendo que exclusões genéricas, como a de pandemia, são inválidas. Quem contrata seguro de vida sabe que terá carência em suicídio, que a morte por doenças preexistentes conhecidas e sonegadas à seguradora de forma dolosa também não terá cobertura, assim como não terá cobertura aquele que venha a falecer ao cometer um assalto ou tentativa de homicídio, por exemplo.

Mas nem de longe pode o segurado imaginar que a proliferação de um vírus em qualquer escala, em um determinado âmbito territorial seja um município, um país, um continente, ou dois ou três continentes possa estar excluída da cobertura do seguro. Ninguém morre de epidemia ou pandemia. Morre-se de infecção pelo vírus de Sars-CoV-2, isso quando ela não é apenas uma concausa ou agravante. E quando há concausa e uma delas é coberta, a excluída é indiferente.

Pandemia, em si, não é a causa de morte. Se contrair a Covid-19 e morrer por isso, não terei a pandemia como causa morte. Se não, neste país onde a pandemia é desgovernada, teríamos corrido o risco de ser este um inútil e chatíssimo congresso de fantasmas advogados.

Acredito, sinceramente, que os tribunais brasileiros não se impressionarão com a provável e sabidamente falsa alegação de desequilíbrio atuarial e as poucas seguradoras de vida ainda renitentes terão de pagar os capitais devidos por morte. Afinal, suas congêneres, em massa, já deixaram público que não há razão para insistir na exclusão.

II) A pandemia da Covid-19 e o seguro de lucros cessantes
A questão do seguro de lucros cessantes é mais complexa e tem muitas repercussões econômicas. A discussão central é se as seguradoras devem indenizar a perda de receita decorrente da interrupção da atividade empresarial causada pela pandemia. Os exemplos são abundantes e independem do setor. Pode-se pensar em restaurantes, fechados ou impossibilitados de atender normalmente a seus clientes; em hospitais, com as UTIs lotadas em função da pandemia, mas com os demais serviços reduzidos ou interrompidos; e em indústrias, que, fechadas ou com recursos humanos reduzidos em virtude do comportamento social espontâneo e das políticas de contenção, não conseguem fazer a adequada operação de equipamentos complexos, ocasionando perdas patrimoniais sem avarias físicas.

Muitos argumentam que o seguro de lucros cessantes apenas cobre perda de receita causada por um dano físico coberto. O apego à posição de não admitir, de modo nenhum, que podem ser devidas indenizações a negócios prejudicados sem vestígios físicos corpóreos, por simples imprevisível e súbita interrupção, está ligada, ao meu ver, à colonização das ideias, à absoluta falta de vinculação do seguro ao seu fim social e econômico e à falta de apuro técnico nas apólices das nossas seguradoras.

Não quero, com isso, dizer que as seguradoras sempre devam indenizar os lucros cessantes sem que haja a materialização de uma condição de risco predeterminada. As apólices que condicionam o pagamento das indenizações de lucros cessantes têm diferentes cláusulas. Como há textos diversos, cada uma das fórmulas utilizadas precisa ser individualmente analisada, à luz do tipo de seguro e de interesse segurado a que se refere, para se chegar à conclusão de que a condição é válida.

Meu primeiro ponto, em síntese, é que não basta, para afastar o dever de indenizar, profetizar que haverá uma catástrofe econômica caso as seguradoras sejam obrigadas a cobrir lucros cessantes o que nem é necessariamente uma verdade, haja vista o comportamento das seguradoras de vida diante do mesmo aparente paradoxo. Quando ouço falar no risco de eliminação de empregos nas seguradoras fico pensando como a imaginação é criadora, pois as seguradoras são as mais eficientes empresas e há tempo operam com recursos muito enxutos, inclusive humanos.

Se há empresas sólidas, com provisões e pulverização de proteções por meio do resseguro, e que funcionam a custo controlado, essas são as seguradoras, ainda que seja outra a representação do imaginário popular brasileiro.

O segundo ponto é que a fórmula de "dano físico à propriedade tangível", utilizada no mercado, com a pretensão de excluir da cobertura qualquer evento que não cause um dano à coisa, padece de vícios. Além de ser um estrangeirismo malsucedido na fonte, é demasiado restritiva e é incompatível com nosso sistema jurídico.

Argumenta-se que, quando houver sido predeterminada a cobertura de lucros cessantes para dano material, é necessário que haja avaria a uma coisa, porque "dano material" seria sinônimo de "dano físico". Isso pode ser aceito entre os que acreditam que nosso sistema jurídico e léxico são subordinados ao Direito Civil francês e que, como entendem alguns autores franceses, "dano material" significa "dano à coisa". É assim que se expressam muitas apólices, sem nenhum apuro técnico: "Danos à propriedade tangível".

Há, também, os que creem que exista razoável utilidade em somente cobrir danos físicos a coisas e em não proteger a perda de utilidade das coisas e das atividades econômicas na ausência de uma alteração física. Isso nem sempre é verdadeiro, raramente será. É preciso analisar cada caso.

Esse modo de ver é antiquado. Foi alimentado por determinados resseguradores do hemisfério norte (historicamente, os não alpino-renanos, para lembrar Michel Albert, no seu "Capitalismo x Capitalismo" [1]). Resseguradores anglo-saxões e franceses exigiam que suas resseguradas limitassem o pagamento de lucros cessantes a casos de avaria coberta. A bem da verdade, decisões de tribunais de Reino Unido, França e Estados Unidos consideraram não escrita a cláusula ou passaram a interpretá-la com um grão de sal, de modo a não esvaziar o conteúdo da garantia do seguro.

Sabe-se que a FCA, no Reino Unido, está promovendo uma ação na Corte Britânica para tentar esclarecer se, desta vez, há de entender-se como manifestação de risco coberto o lucro cessante, no ambiente da pandemia, sem que se verifique dano físico, como é o caso de inutilidade por contaminação. Tem sido tratado como o case do século, mas é apenas uma peça do puzzle, pois cada direito tem suas características e, cada apólice, suas especificidades.

No Direito brasileiro, é impossível debater esse tema sem examinar as noções de: a) interesse; b) dano; e, sobretudo, c) o modo como essas duas ideias centrais do contrato de seguro se relacionam. Isso é o que farei a seguir.

a) Interesse

Interesse e predeterminação de risco estão no artigo 757 do Código Civil. Alguns juristas têm afirmado, a partir da dualidade de elementos na regra, que os riscos se interpretam restritivamente e que fica em segundo plano, no nosso sistema civil, a teoria do interesse essa teoria nuclear segundo a qual o seguro não garante as coisas e, sim, os interesses em relação a elas, a qual já havia ganho sede na lei de contrato de seguro alemã de 1901.

O Código Civil mais influente do século XIX foi, sem dúvida, o Código Civil francês de 1804, em vigor até hoje. Adotamos a mão francesa para trafegar e os galicismos por aqui são muitos. Mas o sistema de Direito Civil é outro. O nosso Código Civil não equipara dano material a dano físico. Dano emergente e lucros cessantes são os nossos danos materiais, haja ou não avaria (danação física a uma coisa).

O Código Civil brasileiro surgiu mais de cem anos depois do Code de Napoleão e com influência predominante do Código Civil alemão. Se comparado aos demais países que promulgaram seus códigos no final do século XIX e início do século XX, o Code pouco influiu no nosso Código Civil.

Esse processo de recepção e de influência da cultura jurídica germânica no Brasil gravou fundo, para o Direito em geral e para o seguro, a ideia de interesse que, na lei alemã de contrato de seguro de 1901, já ocupava o núcleo do contrato de seguro. É de 1915, para terem uma ideia, a monografia mais importante do chamado "pai do direito do seguro alemão", Victor Ehrenberg. E ela se chama "Das ‘Interesse’ im Versicherungsrecht"  "O Interesse no Direito do Seguro".

Então, intérpretes: il faut faire attention! Estamos mais para a Alemanha de Ehrenberg do que para a França de Napoleão.

O contrato de seguro garante interesse contra riscos "determinados", não contra riscos taxativamente enunciados. Sinistro é um fato que lesiona o interesse garantido; prejuízo é a medida dessa lesão ao interesse; e segurado (credor da garantia do seguro) é o titular ou os cotitulares do interesse segurado.

Por isso, é sempre bom atentar para a preocupação do ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior em artigo publicado nos Anais do VI Fórum de Direito do Seguro do IBDS, intitulado "Teoria do Interesse, engineering e o dano físico no seguro de danos", ao examinar a exigência de danos físicos nas apólices de seguros de riscos de engenharia:

"É então de se perguntar: o interesse legítimo do proprietário e dos contratados em suas diversas categorias ligados por um contrato de engineering, apostos à construção de grandes obras industriais e de infraestrutura, fica satisfeito com a garantia securitária limitada ao dano físico? Igualmente, fica satisfeito tal interesse, sabendo-se que o empreendimento corre riscos de planejamento, de projeto, de construção e de fornecimento, que não atingem propriamente bens tangíveis (isto é, coisas, na definição do IRB Sereg no. 2.428/2007) e, atingindo-os não podem ser definidos como dano físico, tal, por exemplo, a perda de utilidade ou o mau funcionamento de um equipamento?".

Continua na Parte 2

[1] ALBERT, Michel. Capitalismo x Capitalismo. São Paulo: Loyola, 1992.

Autores

  • é advogado, doutor em Direito Econômico pela Universidade de São Paulo, presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS) e coordenador da comissão de juristas que elaborou os anteprojetos e acompanha a tramitação do Projeto de Lei de Contrato de Seguro (PL 3.555/2004 a PLC 29/2017).

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