Opinião

Regime jurídico das APPs em áreas rurais deve ser aplicado no bioma Mata Atlântica

Autor

  • Marcelo Buzaglo Dantas

    é advogado mestre e doutor em Direitos Difusos e Coletivos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo pós-doutor e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciência Jurídica (Mestrado e Doutorado) da Universidade do Vale do Itajaí e professor visitante da Widener University-Delaware Law School (EUA) e da Universidad de Alicante (Espanha).

25 de julho de 2020, 13h15

Recentemente, voltou ao debate nacional na área de meio ambiente a controvérsia sobre a aplicação, ou não, do disposto no Código Florestal acerca das chamadas áreas rurais consolidadas, como tais entendidas aquelas que, em julho de 2008, já eram objeto de ação do homem, caracterizadas por edificações, benfeitorias ou atividades agrosilvipastoris (artigo 3º, IV, da Lei nº 12.651/12 — Código Florestal Brasileiro).

É que, conforme o disposto na mesma lei, a existência de áreas de preservação permanente em tais locais deve observar um regime jurídico diferente da regra geral constante do artigo 4º, inclusive com a redução dos limites de afastamento e das áreas a ser recuperadas, tudo conforme o disposto nos artigos 61-A e 61-B e seus diversos parágrafos.

Pois bem. Essas disposição, assim como inúmeras outras atacadas pelo procurador-geral da República e pelo PSOL em quatro diferentes ações diretas de inconstitucionalidade, foram consideradas legítimas pelo Supremo Tribunal Federal em histórico julgamento ocorrido em 2018, de que foi o relator o próximo presidente da corte, o ministro Luiz Fux.

Ocorre que, diante de decisão tomada pelo ministro do Meio Ambiente, no sentido de que o regime jurídico das APPs em áreas rurais consolidadas deve ser aplicado no bioma Mata Atlântica, iniciou-se uma verdadeira cruzada contra esse entendimento, como se ele estivesse incorreto.

O debate intenso que se seguiu acabou levando a que o ministro cancelasse o despacho e, quase que simultaneamente, a Advocacia-Geral da União propusesse uma ação direta de inconstitucionalidade com vistas a que seja extirpada do ordenamento jurídico a interpretação que exclua a possibilidade de aplicação do Código Florestal no bioma Mata Atlântica.

A discussão, portanto, deverá ser travada no palco próprio para isso, qual seja, o Supremo Tribunal Federal. Embora, talvez, não houvesse necessidade de tamanho alarde, o que nos leva a crer que, com o devido respeito a quem pensa diferente, "muito barulho por  nada" (ou, ao menos, por muito pouco).

O tema está previsto no disposto no artigo 225, parágrafo 1º, III, da CF/88 e no artigo 9º, VI, da Lei nº 6.938/81 (Lei da Política Nacional  do Meio Ambiente), que tratam dos chamados espaços territoriais ambientalmente protegidos, que se constituem no gênero de que são espécies, distintas entre si, além de outras: a) as APPs; b) a reserva legal; c) a Mata Atlântica; d) as unidades de conservação da natureza; e e) a zona costeira. Cada uma dessas modalidades, que não se confundem entre si, possui regime jurídico próprio. As duas primeiras são regidas pelo Código Florestal. A terceira, pela Lei nº 11.428/06. A quarta, pela Lei nº 9.985/00 e a última, pela Lei nº 7.661/88 e respectivos decretos regulamentadores.

APP e mata atlântica são institutos distintos. Até pode haver Mata Atlântica em uma APP (caso, por exemplo, das restingas fixadoras de dunas). Mas a vegetação de Mata Atlântica (restinga, por si só, por exemplo), não é APP; é Mata Atlântica (!). Agora, se exercer uma daquelas funções, passa a ser regida pelo Código Florestal.

Dito isso, voltemos à controvérsia: havendo APP no bioma Mata Atlântica, qual o regime jurídico aplicável? Não há dúvidas, a nosso sentir, que o é o da APP, previsto no Código Florestal. Integralmente, inclusive no que toca às exceções previstas naquele diploma, dentre as quais, aquela contida nos artigos 61-A e ss. (áreas rurais consolidadas).

Ao contrário do que se vem afirmando, não há, no caso em análise, conflito normativo. Trata-se, apenas e tão somente, da incidência de um instituto (APP), regido por uma disciplina jurídica própria (a do Código Florestal), aplicável a qualquer bioma. Sim, APP é APP na Mata Atlântica, no cerrado, nos pampas, na caatinga, na Amazônia legal, no pantanal. Afinal, é o mesmo regime para as áreas urbanas e rurais, não é?! Logo, não se pode diferenciar também pelo bioma em que se encontre.

Se não há conflito normativo, não há que se invocar qualquer critério de solução de antinomias. Logo, falar-se em especialidade da Lei da Mata Atlântica é, com o devido respeito, de todo equivocado. Até porque, nesse contexto, a lei florestal também poderia ser considerada especial ao reger as APPs. E, se o critério da  especialidade fosse válido, igualmente legítimo seria invocar-se o critério cronológico, pelo qual a lei posterior revoga a anterior. E aí teríamos a prevalência da Lei nº 12.651, de 2012. Nem se invoque o brocardo lei posterior geral não revoga a lei anterior especial, posto que este princípio não é absoluto. Não se está aqui a propugnar a aplicação deste critério de solução de conflitos normativos. Simplesmente porque antinomia aqui não há, salvo melhor juízo.

Idêntico entendimento, às avessas, deve ser adotado em  relação à equivocada interpretação que alguns têm dado à vegetação de restinga, que, integrante do bioma Mata Atlântica, seria considerada, para essa corrente, como APP. Da mesma forma que aqui, também lá o que se tem  são institutos autônomos, que não se confundem. A restinga somente será APP se fixadora de dunas ou estabilizadora de mangues. Do contrário, é Mata Atlântica e, portanto, rege-se pela Lei nº 11.428/06, não pelo Código Florestal.

O que parece haver nesse caso é que defesa da prevalência da Lei da Mata Atlântica, na espécie, tem por base mais sólida não a lei ou a Constituição da República, mas, sim, um critério de maior proteção o que, embora louvável, não se coaduna com o ordenamento jurídico em vigor. Aliás, iniciativas semelhantes, defendidas por uma doutrina respeitada, vêm sendo sistematicamente barradas pelo Supremo Tribunal Federal. Vide os casos da alegada prevalência da norma mais restritiva, o exacerbado uso do princípio da precaução e, mais recentemente, a tentativa de se consolidar o entendimento doutrinário acerca do chamado princípio da proibição do retrocesso ecológico. O que a corte tem entendido nesses casos é por aplicar a Constituição Federal, independentemente da postura mais preservacionista do ambiente.

Por tudo isso, a interpretação da lei, nesse caso e em outros, não pode ser conduzida pelas consequências práticas do entendimento adotado o que, infelizmente, não costuma ser a regra na área ambiental. Ou seja, a leitura mais correta não deve tomar por base se ela interfere na maltratada Mata Atlântica ou se a visão contrária vai prejudicar ainda mais os não menos maltratados produtores rurais. Não é disso que aqui se trata. Seria, se o enfoque fosse o da colisão de princípios. É de conflito de regras de que se trata (um não conflito na verdade, como dito e repetido). Há uma norma sobre APP que deve ser aplicada seguindo o respectivo regime jurídico em sua integralidade (regras e exceções) a qualquer bioma do país, nas áreas urbanas e rurais. É o que diz a lei federal, considerada constitucional pelo STF. Goste-se dela, ou não. Mas não é possível, porque não se concorda com a lei (e claramente se percebe, em muitas das opiniões apresentadas, que se trata de um inconformismo com a norma em si), propor a sua não aplicação. Postura como essa afronta o Estado democrático de Direito.

Apenas um adendo antes de concluir. É de se questionar se, a prevalecer o entendimento proposto, as demais exceções ao regime das APPs também não seriam aplicáveis à Mata Atlântica? Intervenções de eventual ou baixo impacto ambiental (Lei nº 12.651/12, artigo 3º, X, e artigo 8º)? Regularização fundiária urbana  (idem, artigos 64 e 65)? Da mesma forma, estas exceções à regra geral não estão previstas na Lei nº 11.428/06. Por isso não seriam aplicáveis? Ou seja, não seria possível Reurb no bioma Mata Atlântica? Ora, isso revela o quanto esse entendimento não se sustenta. Não foi esse, claramente o intuito do legislador — embora ele não tenha dito expressamente isso. E não o fez porque não era necessário, tamanha a clareza do assunto.

Em suma, não se vislumbra equívoco algum na interpretação dada ao tema pelo Poder Executivo federal. Aliás, nem seria necessário ir-se tão longe. A letra da lei é clara o bastante para se entender que APP é APP "esteja ela onde estiver" e, como tal, deve ser regida pelo único diploma capaz de fazê-lo, qual seja, a Lei nº 12.651/12. E na sua integralidade.

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  • é advogado, mestre e doutor em Direitos Difusos e Coletivos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pós-doutor e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciência Jurídica (Mestrado e Doutorado) da Universidade do Vale do Itajaí e professor visitante da Widener University-Delaware Law School (EUA) e da Universidad de Alicante (Espanha).

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