Escritos de mulher

O direito à cidade no território das desigualdades

Autor

  • Juliana Souza

    é advogada ativista antirracista pós graduada em Direitos Fundamentais e Processo Constitucional (IBCCRIM/Universidade de Coimbra); mestranda do Diversitas/USP e pesquisadora do NAPPLAC da FAU/USP; vice-presidente da Comissão Estadual da Jovem Advocacia da OAB/SP.

8 de julho de 2020, 8h00

Spacca
Em um joguete secular de presença legislativa e ausência estatal se estrutura o Brasil. O direito à cidade, conceito cunhado em 1968 pelo do sociólogo Henri Lefebvre, não prescindiu a essa máxima. Em um país de realidades opostas em que, em grande medida, direito é sinônimo de privilégio, não é de se espantar que somente algumas castas tenham acesso garantido a esse direito social coletivo, haja vista que o fazer na produção da cidade compartimenta os modos de vida, segrega os corpos e instrumentaliza os usos do espaço urbano.

Desigualdade social, coisas de nossa herança secular. Em setembro de 1850, promulgava-se a Lei de Terras (Lei nº. 601), marco da questão fundiário-segregacionista nacional. Em busca de findar o Regime de Sesmarias, que consistia na autorização estatal para exploração da terra e de recursos naturais pelos donatários e seus descendentes, mediante o cumprimento de algumas obrigações administrativo-exploratório-agrárias no território, a nova lei previa que, dali em diante, somente por meio da compra é que se poderia adquirir a propriedade, regras que também se aplicavam ao Estado. Torna-se, então, a terra mercadoria. “Curiosamente”, data do mesmo ano, da mesma semana inclusive, a Lei Eusébio de Queirós (Lei nº. 581), que proibia o tráfico de pessoas escravizadas vindas de África — majoritariamente da Rota de Angola — responsável por transpor aproximadamente 40%, dos cerca 5 milhões de africanos escravizados que adentraram o Calunga brasileiro. Algumas décadas depois, mais precisamente em 1888, a Lei Áurea (Lei nº. 3.353) dá fim, ao menos oficialmente, à escravidão no país, não esqueçamos que o Brasil exportou cerca de 46% de todas as pessoas sequestradas em África e trazidas compulsoriamente para América, como ensinam as lições do professor Dr. Luiz Felipe de Alencastro.

Os anos que se seguiram desencadearam o processo de urbanização do Brasil. Expeliram-se das centralidades a negritude e a pobreza, às quais restaram os morros e as franjas das cidades. Alguns acontecimentos ilustram esse período e suas resultantes como: o advento das primeiras rodovias (1920); o início do processo de favelização na cidade de São Paulo (1940); o congelamento dos preços dos aluguéis, via decreto-lei do inquilinato (1942); a criação do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) e do Banco Nacional de Habitação (BNH), junto da ruptura democrática (1964); a restrição da ocupação de alguns terrenos de São Paulo (1970); a promulgação da Constituição Federal (1988), com a regulamentação dos artigos 182 e 183, por meio da sanção do Estatuto da Cidade (2001); o lançamento do Programa Minha Casa Minha Vida (2009); o boom imobiliário acompanhado da receita tradicional, qual seja, especulação imobiliária (2009); e o artigo 35 do Estatuto da Igualdade Racial, Lei nº.12.288 (2010), que prevê o direito à moradia para população negra.

Indiscutivelmente, temos um arcabouço legal robusto, festejado internacionalmente, porém ineficaz no enfrentamento das complexidades que desvelam a precariedade da organização social urbana. Expropriação, reestruturação urbana e reintegração de posse – acompanhadas da constante vigilância e controle, com usos díspares da força a depender da localidade – imperam no ciclo vicioso da reprodução das desigualdades socioterritoriais. Aceitamos, sem maiores questionamentos, posturas arbitrárias e atentatórias à subcidadania vigente nas periferias. Denúncias se somam aos dados e pesquisas que apontam para a existência de, ao menos, duas dimensões de democracia e de padrões de civilidade, configuradas em verdadeiros territórios de exceção ao arrepio da lei.

Este cenário de ineficácia na redução de desigualdades sociais e democratização econômica, no que tange ao direito à terra, a propriedade e a moradia digna, coopera para concentração de riquezas e garante condições de existência salutar apenas a determinado segmento social, conforme destaca Carneiro, ao trabalhar raça e Direitos Humanos no Brasil, observando que “a base da contradição de população liberta, mas sem direitos”, se conserva “pela prevalência da concepção de que certos humanos são mais ou menos humanos do que outros o que, consequentemente, leva a naturalização da desigualdade de direitos 1.”

A autora observa, ainda, que “se alguns estão consolidados no imaginário social como portadores de humanidade incompleta, torna-se natural que não participem igualmente do gozo pleno de Direitos Humanos 2”. Nesta toada, Leonardo Ortegal afirma que a ideia de menos humano é elemento importante para compreender as relações sociais no Brasil, “pois, em um mundo marcadamente antropocêntrico, caracterizar determinado grupo como não humano ou sub-humano resultava em total isenção moral para a exploração, escravização e extermínio desse grupo assim classificado 3”.

O território é o palco da vida. Onde tudo se dá, do alimento ao abrigo. Observamos, no entanto, que há pouco debate a esse respeito. Não por acaso, o modo de vida urbano-capitalista implica em consumo excessivo da cidade e dos bens produzidos por muitos — em condições, no mínimo, controversas — para tão poucos. O que resulta — adotando a metodologia de Fundação João Pinheiro — em um preocupante déficit habitacional4 pormenorizado em coabitação; precariedade domiciliar; ônus excessivo de aluguel; e, adensamento excessivo de domicílios alugados. Cenário agravado pela insuficiência de estoque de reserva.

Toda essa construção de portadores de humanidade incompleta, de subcidadania, é o que tenta sufocar os questionamentos e mantêm o estado de exceção em determinados lugares. O modelo capitalista de organização e produção do espaço aduz um falso problema à questão da moradia5, haja vista que é o trabalhador responsável pela produção da cidade, precarizado e explorado, que fica relegado a habitar áreas em que não há interesse do mercado imobiliário especulativo: territórios não compreendidos pela cidade formal — planejada pelo manejo urbanístico excludente que prevê padrões e normas de ocupação do solo inatingíveis e impraticáveis para grande parte da população — situados em áreas de proteção ambiental, regiões de mananciais, morros e encostas, resguardados por uma legislação ambientalista insensível às agruras humanas e por um mercado financeiro-imobiliário predatório.

O flerte brasileiro com a anteposição do privado sobre o público, o sucateamento dos serviços estatais, a ineficiência dos serviços de assistência social segue dando sinais da sucumbência desse modelo de sociedade, de vida e de cidade. Cabe a nós decodificarmos tais acenos, implementando soluções coletivas fundamentadas na função social da terra, na justiça social, na racialização dos estudos sobre o território e nos direitos humanos fundamentais. Em tempos de tantas reformas, que façamos a mais urgente de toda: a reforma urbana.


1 CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo negro, 2011, p. 15.

2 CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo negro, 2011, p. 15.

3 ORTEGAL, Leonardo. Relações raciais no Brasil: colonialidade, dependência e diáspora. Serv. Soc. Soc. São Paulo, n. 133, p. 413-431, dez. 2018, p. 417.

4 http://www.cbicdados.com.br/menu/deficit-habitacional/deficit-habitacional-no-brasil

5 https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-22012017000100214

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  • é advogada, ativista antirracista, pós graduada em Direitos Fundamentais e Processo Constitucional (IBCCRIM/Universidade de Coimbra); mestranda do Diversitas/USP e pesquisadora do NAPPLAC da FAU/USP; vice-presidente da Comissão Estadual da Jovem Advocacia da OAB/SP.

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