Opinião

O Tema 677 e os desacordos repetitivos nas turmas do STJ

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4 de julho de 2020, 6h06

Grande parte dos leitores, provavelmente, já se deparou com a tese estabelecida pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça no acórdão do Recurso Especial Repetitivo nº 1.348.640/RS (Tema 677), em 2014, que diz: "Na fase de execução, o depósito judicial do montante (integral ou parcial) da condenação extingue a obrigação do devedor, nos limites da quantia depositada". Mas o que essa frase, realmente, quer dizer? Aparentemente, nem o próprio STJ sabe ao certo o que torna a questão ainda mais problemática, ante a sistemática de provimentos vinculantes prevista no artigo 927, do Código de Processo Civil (CPC).

Um exemplo hipotético vem a calhar para ilustrar as duas possíveis interpretações daquela tese repetitiva. Digamos que o credor A executa R$ 100 do devedor B. Citado (ou intimado, no caso de cumprimento de sentença), B deposita, para fins de garantia do juízo, o valor pleiteado, apresentando embargos à execução ou impugnação. Passam-se meses ou anos até que a questão se resolva e, finalmente, vê-se que A tinha razão no seu pedido. Os R$ 100 depositados na conta judicial são liberados em favor de A, acrescidos da correção monetária e dos juros aplicados pela instituição depositária.

A questão colocada pela ambiguidade da tese repetitiva é: com a liberação daqueles valores em favor de A, a execução ou cumprimento de sentença chegou ao fim? Quando da análise do Recurso Especial nº 1.475.859/RJ, a 3ª Turma do STJ, por unanimidade, respondeu que não. O voto do relator, ministro João Otávio de Noronha, concluiu que a atualização promovida pela instituição depositária não eximia o devedor dos encargos próprios da sua obrigação inadimplida.

A 3ª Turma analisou o acórdão do repetitivo 1.348.640/RS e reconheceu que, entre os precedentes mencionados, dois tratavam da questão ora debatida  "a controvérsia sobre a liberação do devedor da responsabilidade pelo pagamento de juros de mora após a realização do depósito judicial integral da dívida". No entanto, o colegiado entendeu que esse ponto não havia merecido o "devido enfrentamento quando do julgamento do recurso representativo de controvérsia".

Partiu, então, para um raciocínio por analogia, relativo à multa do artigo 475-J do CPC/1973, aquela que incide quando o devedor não realiza o pagamento voluntário do valor cobrado no prazo legal (equivalente à do artigo 523, parágrafo 1º, do CPC/2015). Entendeu a 3ª Turma que se o mero depósito em garantia não é suficiente para afastar aquela penalidade, também não poderia servir para excluir a responsabilidade do devedor pelos juros de mora. O acórdão destacou, ainda, que os juros devidos pelo executado são moratórios, enquanto aqueles aplicados pela instituição depositária são remuneratórios.

Assim, o acórdão concluiu que o exequente teria o direito de atualizar a quantia devida, com juros de mora, até a data do efetivo recebimento dos valores que haviam sido depositados em garantia pelo executado. O montante encontrado nos cálculos seria deduzido da quantia paga pela instituição depositária, e a diferença seria suscetível de execução, como saldo remanescente. Esse entendimento, para a 3ª Turma, "não contraria a tese fixada no julgamento" do recurso repetitivo, já que "o valor depositado judicialmente libera o devedor nos limites da quantia depositada, mas não o libera dos consectários próprios de sua obrigação" (grifo no original).

O mesmo raciocínio foi aplicado mais recentemente, em fevereiro de 2019, pela 4ª Turma do STJ, também por unanimidade, no julgamento do agravo interno no Recurso Especial 1.404.012/PR. O sucinto acórdão, relatado pelo ministro Luís Felipe Salomão, faz menção tanto à tese repetitiva quanto ao julgado da 3ª Turma abordado nos parágrafos anteriores, a fim de reconhecer que, como os índices de correção e juros aplicados pelo banco depositário eram inferiores aos determinados no título executivo, o devedor tinha "o ônus de complementar o depósito".

A aparência de entendimento pacífico é, no entanto, somente isto: aparência. A 3ª Turma, novamente por unanimidade, em maio de 2018, negou provimento ao agravo interno interposto contra decisão da ministra Nancy Andrighi que dera provimento ao recurso especial 1.637.482/PR. O fundamento utilizado na monocrática foi de que "como o depósito judicial já conta com remuneração específica prevista em lei, e a cargo da instituição financeira depositária, a cobrança de juros e correção monetária do devedor, a partir de então, acarretaria bis in idem".

No relatório do agravo interno, afirma-se que o agravante alegou que a tese repetitiva havia sido revisada e superada pela 2ª Seção do STJ, de modo que o entendimento atual seria de que "o depósito do valor não constitui pagamento e que, por esse motivo, o devedor permanece em mora e responsável pelo integral adimplemento da obrigação, não podendo a responsabilidade dos consectários da mora ser transferida ao depositário judicial". Além disso, também há alusão ao argumento de que o "valor da remuneração do depósito não respeita os limites fixados no título executivo".

Assim, percebe-se que a situação é bastante similar àquela que havia sido julgada pela 4ª Turma, no acórdão analisado anteriormente. Dessa vez, porém, as razões recursais não surtiram efeito e a tese repetitiva foi invocada pela 3ª Turma para negar a possibilidade de incidência dos encargos a serem arcados pelo devedor após a realização do depósito em garantia.

Essa conclusão também é a que parece advir da leitura da íntegra do acórdão do Recurso Especial Repetitivo 1.348.640/RS, relatado pelo ministro Paulo de Tarso Sanseverino, integrante da 3ª Turma. O voto condutor daquele julgado é bastante sucinto quanto à amplitude da discussão ora travada, sugerindo que a preocupação, naquele momento, foi apenas chancelar um entendimento que já se considerava firmado, com a atribuição do status de tese repetitiva. Porém, quando se analisa o relatório daquele aresto, vê-se que o acórdão recorrido, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, determinara que "o débito deve ser atualizado até o levantamento do valor depositado, com posterior amortização". Como tal decisão foi reformada, fica a impressão de que esse raciocínio não foi acolhido pelo STJ naquela oportunidade.

A controvérsia sobre a possibilidade de executar o devedor por correção e juros de mora após a realização do depósito integral como garantia do juízo ilustra algumas peculiaridades e falhas do sistema judicial e processual brasileiro. O tribunal superior criado com a missão de uniformizar a jurisprudência, mesmo após julgar um recurso especial repetitivo, vem decidindo a questão de maneiras diferentes. E pior: faz isso com fundamento em uma só tese!

O apego às teses repetitivas (assim como a ementas de decisões e enunciados de súmula), aliás, reforça o risco de interpretações conflitantes, dando corpo à hipótese de que os provimentos vinculantes do artigo 927, do CPC, servem mais como instrumentos de poder ou autoridade do que como mecanismos para garantir a coerência e a uniformidade na prestação jurisdicional. O problema, aqui, reside no plano da cultura jurídica, já que o próprio código processual determina a observância dos acórdãos (e não das teses) em julgamento de recursos repetitivos (artigo 927, II) e estabelece, como regra de fundamentação, que a invocação de precedentes seja realizada mediante a identificação dos seus fundamentos determinantes e a demonstração de ajuste em relação ao caso sob julgamento (artigo 489, parágrafo 1º, V).

Por fim, o exemplo deixa claro o risco trazido pela vedação de recursos especiais e reclamações contra acórdãos dos tribunais locais que apliquem teses repetitivas como fundamento decisório (artigo 1.030, parágrafo 2º, do CPC, e Rcl nº 36476/SP). Se, no próprio âmbito do STJ, a interpretação desses provimentos pode oscilar, como no caso do Tema 677, não parece razoável admitir que as leituras realizadas pelas cortes de segundo grau sejam definitivas. O fechamento do sistema recursal, por um lado, impede que desacordos possam ser dirimidos pelo tribunal responsável pela uniformização da jurisprudência, sujeitando credores e devedores à incerteza quanto aos limites dos seus direitos e obrigações. Além disso, inviabiliza a renovação (excepcional, porém essencial) dos provimentos vinculantes, com uma tendência à cristalização do direito e a uma "imunização" contra alterações relevantes em outros subsistemas sociais, características que não subsistem nem mesmo nos países da Common Law.

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