Opinião

O tribunal do júri e a videoconferência: os problemas da proposta em trâmite no CNJ

Autor

  • Rômulo Luis Veloso de Carvalho

    é defensor público do Estado de Minas Gerais conselheiro penitenciário estadual mestre e doutorando em Direito Penal pela PUC-MG e professor de Direito Penal na graduação e em cursos preparatórios.

1 de julho de 2020, 10h36

A pandemia da Covid-19 vem mudando de maneira acelerada, e por vezes açodada, procedimentos por todo o país. O Conselho Nacional de Justiça tem sido protagonista de deliberações neste período, isso devido à sua missão constitucional e a agilidade com que se reúne para deliberar.

Em matéria criminal, destaque para a Recomendação 62/2020 do CNJ, que orientou os magistrados brasileiros a suspender excepcionalmente a realização de audiências criminais de réus soltos, recomendando a realização por videoconferência nas hipóteses em que a pessoa esteja privada de liberdade, com vistas à redução dos riscos epidemiológicos (artigo 7º). No que tocam as audiências de custódia, as medidas foram mais restritivas, no artigo 8º da referida recomendação os juízes foram orientados a não realizarem audiências de custódia enquanto presentes riscos epidemiológicos.

Sem subestimar os problemas trazidos por essas orientações, os meses passaram e até o presente momento os índices sanitários nacionais não permitiram uma melhora significativa da quadra. Assim, ganha força no debate público, ante o nobre argumento de necessária manutenção do funcionamento da Justiça criminal, propostas de regulamentação de sessões plenárias do júri com a participação de partes, testemunhas e réus por videoconferência.

Entusiastas da utilização de procedimentos virtuais no júri divulgaram uma contundente defesa do modelo [1] em recente artigo. Em resumo, pontuam os autores que: a) o júri não será feito por videoconferência visto que partes, jurados sorteados, testemunhas e réus soltos podem comparecer presencialmente; b) não há novidade na participação do réu preso por videoconferência ante o artigo 185, §2º, do CPP; c) a tecnologia permite ganhos de operacionalidade; d) há ganho para publicidade e maximização da participação do réu; e e) há razões corporativas e ideológicas nos argumentos contrários.

A realidade é que momentos excepcionais historicamente acionam um aparato que em nome de uma proclamada necessidade inadiável vai moldando o sistema jurídico a pretensões pragmáticas de eficiência que renegam muito tempo de pensamento acumulado sobre institutos e direitos conquistados a duras penas.

Ninguém pode duvidar da qualidade técnica dos autores do artigo e suas nobres intenções. Contudo, a verdade é que o preço da liberdade é, de fato, a eterna vigilância. Vejamos o que de fato ocorre sobre a hipótese em análise, começando pelo último argumento dos seus defensores.

Não são razões corporativas e desejos de paralisar a Justiça criminal que alimentam as críticas à ideia do júri com atos determinantes por videoconferência.

A uma porque corporativamente nada ganham as instituições ao sair em defesa dos direitos fundamentais em matéria criminal, normalmente a audiência e os aplausos do debate público são reservados apenas àqueles que justamente pretendem acelerar os procedimentos em matéria penal. A duas porque do ponto de vista da defesa privada os honorários muitas vezes são recebidos justamente com a realização dos atos, o que torna mais nobre ainda a resistência e o prestígio aos direitos fundamentais postos na berlinda. A três porque do ponto de vista da defesa pública a realização dos plenários durante a pandemia ou posteriormente não mudará o número de júris que ela precisará realizar. A quatro porque mesmo setores do Ministério Público admitem problemas insuperáveis no texto da minuta em função dos ritos do procedimento de julgamento popular [2]. A cinco porque percepção contrária já foi assentada pelo próprio Conselho Nacional de Justiça, no julgamento de pedido de providências que proibiu sessões presenciais do tribunal do júri [3] durante a pandemia. A seis, por fim, porque os crimes enviados ao tribunal popular são aqueles que possuem o maior lapso prescricional e o maior número de causas de interrupção da prescrição.

Em verdade, a resistência ao novo modelo, apesar da divergência, é unicamente amparada em compromisso com a carta constitucional e a plenitude de defesa que ela optou por assegurar aos que forem enviados ao julgamento pelo tribunal do júri.

O fato é que a facultatividade da presença das partes diminui, mas não resolve o problema. Não é crível conceber paridade de armas em um julgamento que uma das partes opta por comparecer enquanto a outra resolve se manifestar do conforto do seu lar. A acusação estará deficiente sem o Ministério Público presente e o réu estará indefeso caso seja acusado por um promotor posto diante dos jurados enquanto o único que pode lhe dar voz está atrás de uma tela colocada diante dos jurados. A Justiça não pode se contentar com julgamentos que acontecerão formalmente, mas com o preço do atropelo de garantias conquistadas ao longo de séculos de afirmação de um processo penal fundado nos direitos fundamentais.

Outro problema é o da legalidade, não só da competência do parlamento para legislar no tema, mas da existência do próprio artigo 466 e seus parágrafos no CPP, que impõe a incomunicabilidade dos jurados imediatamente ao sorteio. O jurado sorteado sairá de sua casa diretamente ao fórum sem acessar o celular? Sem pesquisar sobre o caso que julgará na internet? Sem conversar com seus familiares? O fato é que será institucionalizada uma incomunicabilidade não fiscalizada e obviamente descumprida, sempre penalizando unicamente o réu e fazendo a segurança do procedimento cair em descrédito.

Sobre o interrogatório, a excepcionalidade da realização por videoconferência estaria deixando de ser restrita para se transformar em procedimento regulamentado, o que já demonstra que o fundamento no artigo 185, §2º, do CPP, não respalda a tentativa de disciplinar o júri virtual. É tão evidente que há prejuízo ao direito de defesa que o CPP é expresso em pinçar hipóteses que se desviam da regra, com oitiva prévia da defesa para contestar as razões de determinação desse tipo de colheita.

Não há isonomia em permitir a presença do réu solto enquanto o réu preso obrigatoriamente deve ficar dentro de uma unidade de aviltante uniforme. A chance de absolvição é reduzida ainda mais pela máquina burocrática que produzirá condenações pelo distanciamento e ausência de empatia que alguém atirado ao cárcere e projetado em uma tela causará nos jurados.

No direito processual penal o rito é garantia, por isso a advertência de Aury [4]: o descumprimento de uma forma traz o risco de ineficácia do princípio constitucional que nela se realiza. Dentro desse escopo, outro aspecto central que é praticamente desconsiderado na proposta, mas representa o verdadeiro coração e razão de ser o julgamento popular é a oralidade. No júri, somente há julgamento constitucionalmente válido dentro do sistema acusatório com o aproveitamento e exploração de todas as potencialidades comportamentais que o julgamento realizado presencialmente traz.

Outra gravíssima deficiência do debate é a ausência de uma reflexão sobre o processo decisório e o conhecimento acumulado sobre ele. A doutrina há muito já percebeu que existe um itinerário psicológico na formação dos vereditos que não pode ser controlado, por essa razão o respeito à forma é a única garantia de um julgamento legítimo. O jurado deve ser um espectador confortável e equidistante. É preciso assegurar que o processo penal seja um local em que o inocente seja devidamente inocentado e que o condenado receba a justa sanção penal livre de excessos. Essa é a dimensão ética que se espera das decisões judiciais [5].

É elementar entre aqueles que militam junto ao tribunal popular que no júri todos os detalhes podem ser determinantes no julgamento: desde a roupa com que se apresenta o réu, passando pela firmeza que se pode extrair presencialmente do depoimento de uma testemunha, o olho no olho com o réu ou ainda pela eloquência das partes que aflora na presença do julgador.

No presente debate, a tecnologia não maximiza a participação do réu, mas a torna mero fator de validade formal em prejuízo da defesa. Não é efetiva a participação do acusado por videoconferência como procedimento e é afrontoso ao direito dele de assistir e poder se defender, presencialmente, naquele que normalmente é o dia mais decisivo de sua vida.

A instituição do júri traz uma história de aprendizado. A utilização da tecnologia deve ser gradual, refletida e extremamente excepcional, sempre com a concordância das partes no seu manejo. A jurisprudência indicou recentemente a validade de recolher ao cárcere sentenciados do plenário do júri sem lhes dar o direito de recorrer em liberdade, as alterações da Lei 13.964 tornaram pela lei automática as prisões efetuadas em patamar igual ou superior a 15 anos, não deve o CNJ amplificar essa verdadeira cruzada que sofrem os acusados do tribunal popular para estabelecer uma censura indiscriminada ao direito dos réus presos se defenderem diante do seus juízes.

Além de tudo já registrado, bom destacar que a preocupação sanitária não encontra respaldo razoável na proposta. A saúde dos jurados, das juradas, dos profissionais que precisarão estar no fórum para recebê-los, de outros que precisarão servir almoços e lanches em sessões alongadas é tão importante quanto de partes, réus e demais personagens essenciais no júri. Obviamente é razoável a limitação do acesso ao público presencialmente nas sessões enquanto perdurar a pandemia, podendo a publicidade ser assegurada com a transmissão do julgamento, todavia não pode o CNJ hierarquizar personagens em um julgamento em que a essencialidade da presença abarca todos os seus atores.

Em resumo, não se descuida que são fatos graves os que são enviados normalmente ao júri, mas é justamente pela magnitude das consequências de uma condenação que o respeito aos direitos ganha contornos mais relevantes. A discussão constitucionalmente respaldada é sobre o momento da volta e as preocupações que deveremos seguir. Não é possível impor um procedimento transformado e em flagrante prejuízo dos direitos fundamentais.

 


[2] Nota técnica 14/2020/CONAMP.

[4] LOPES JR. Aury Lopes. Direito processual penal. 12. Ed. São Paulo: Saraiva, 2015. P. 944.

[5] GRANDINETTI CASTRANHO DE CARVALHO, Luis Gustavo. Estado de Direito e decisão jurídica: as dimensões não-jurídicas do ato de julgar. In. Decisão judicial: a cultura jurídica brasileira na transição para a democracia. Org. Geraldo Prado e outros. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 129.

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