Interesse Público

Ausência de duplo grau de jurisdição obrigatório nas ações de improbidade administrativa

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30 de janeiro de 2020, 8h00

Spacca

A improbidade administrativa é daquelas matérias naturalmente controvertidas. Seja nos excertos acadêmicos e técnicos ordinariamente produzidos sobre o tema, seja no ringue das batalhas judiciais pertinentes, é quase certa a identificação de um especial engajamento institucional dos atores jurídicos envolvidos no contexto.

Sardinhas à parte, um mergulho — não necessariamente um mergulho profundo, com o auxílio de cilindros de oxigênio — na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) revelará que garantias processuais típicas nas ações de cariz punitivo tem sofrido sucessivos nocautes no UFC em que se transformou a Administração Pública Brasileira.

São várias as teses que se tornaram majoritárias na jurisprudência – por vezes como resultado de um overruling à brasileira[1], outras vezes por conta de interpretações que desbordam dos limites do quadrante legislativo aplicável.[2]

O ponto eleito para discussão neste texto é o da aplicabilidade do duplo grau de jurisdição obrigatório às ações de improbidade administrativa. A questão foi objeto de recente afetação no STJ, em 19.12.2019, à sistemática dos recursos repetitivos, pelo Tema 1042 (REsp n. 1.553.124/SC, REsp n. 1.601.804/TO, REsp n. 1.605.586/DF e REsp n. 1.502.635/PI, Relator Min. Napoleão Nunes Maia Filho).

O objetivo do repetitivo é definir se há – ou não – aplicação da figura do reexame necessário nas ações típicas de improbidade administrativa, ajuizadas com esteio na alegada prática de condutas previstas na Lei 8.429/92, cuja pretensão é julgada improcedente em primeiro grau. Como consequência, discutir-se-á, também, se há remessa de ofício nas referidas ações, ou se deve ser reservado ao autor da ação, na postura de órgão acusador, exercer a prerrogativa de recorrer ou não do desfecho de improcedência da pretensão sancionadora.

As ações de improbidade administrativa não são ações civis por excelência. Tratá-las como tal é um equívoco. São ações de conteúdo punitivo, participantes do microssistema do Direito Administrativo Sancionador. São ações “penaliformes”[3], subordinadas muito mais de perto à “principiologia” — repito: à “principiologia” — típica do Direito Penal e do Processo Penal.

Nesse sentido, “[o] objeto próprio da ação de improbidade é a aplicação de penalidades ao infrator, penalidades essas substancialmente semelhantes às das infrações penais. Ora, todos os sistemas punitivos estão sujeitos a princípios constitucionais semelhantes, e isso tem reflexos diretos no regime processual. É evidente, assim — a exemplo do que ocorre, no plano material, entre a Lei de Improbidade e o direito penal —, a atração, pela ação de improbidade, de princípios típicos do processo penal” (Voto do Ministro Teori Albino Zavascki no RECURSO ESPECIAL Nº 885.836 – MG (2006/0156018-0), 1ª T, DJ de 02/08/2007, p. 398).

Regularmente, são dois os momentos em que uma ação de improbidade administrativa pode ser decidida pelo juiz. No juízo de delibação preliminar, mercê da inadequação ou da falta de justa causa (artigo 17, §8º da Lei 8.429/92) e no julgamento de mérito, decidindo-se pela existência ou não do ato de improbidade administrativa (artigo 18 da Lei 8.429/92).

No primeiro caso, convém advertir que a etapa do juízo de delibação preliminar, incluída pela Medida Provisória nº 2.225-45, de 2001, foi nitidamente inspirada no artigo 395 do Código de Processo Penal, que prevê a possibilidade de rejeição liminar da denúncia criminal nos casos de inépcia, ausência de pressupostos da ação ou ausência de justa causa.

Neste ponto, o legislador teve o cuidado de prever a mera notificação dos interessados nesta etapa (artigo 17, §7º da Lei 8.429/92), deixando a citação exclusivamente para os casos de recebimento da inicial (artigo 17, §9º da Lei 8.429/92), quando então os interessados passam à condição de réus no processo.  

Logo, tratando-se de sentença de rejeição preliminar da ação de improbidade administrativa — hipótese em que o notificado sequer ostenta a condição de réu — não se há falar, por evidente, em reexame necessário da decisão. Ele sequer era réu. Se a parte autora acusadora entender que o não recebimento da ação de improbidade administrativa foi indevido, deve manejar o recurso voluntário competente (apelação).

No segundo caso, o da sentença de mérito, o que se tem visto — e é isto que o STJ discutirá no Tema 1042 — é a aplicação analógica (não a interpretação analógica) do artigo 19 da Lei n. 4.717/65 (Lei de Ação Popular), como forma de justificar o reexame necessário não previsto na Lei 8.429/92.

Com as devidas vênias, a ação popular não é uma ação de natureza punitiva como o é a ação de improbidade administrativa. Ela é uma ação de natureza eminentemente civil, de cunho constitutivo e reparatório, não participando — diferentemente da ação de improbidade administrativa — da “principiologia” própria do Direito Penal (embora na imposição do dever de ressarcimento se tenha de verificar aspectos de culpa lato sensu, por força da parte final do artigo 37, §6º da Constituição).  

Sobre o tema, o então Ministro do STJ, Teori Zavascki, deixou ver que “não se pode confundir a típica ação de improbidade administrativa, de que trata o artigo 17 da Lei 8.429/92, com a ação de responsabilidade civil para anular atos administrativos e obter o ressarcimento do dano correspondente [ação popular, por exemplo]. Aquela tem caráter repressivo, já que se destina, fundamentalmente, a aplicar sanções político-civis de natureza pessoal aos responsáveis por atos de improbidade administrativa (artigo 12). Esta, por sua vez, tem por objeto consequências de natureza civil comum, suscetíveis de obtenção por outros meios processuais” (REsp 1163643/SP, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 24/03/2010, DJe 30/03/2010).

Quando se concebe a natureza predominantemente “penaliforme” das ações de improbidade administrativa, subordinadas, como sói, aos princípios do Direito Penal, compreende-se a eloquência do silêncio da Lei 8.429/92 ao não disciplinar a submissão das sentenças de improcedência ao duplo grau de jurisdição obrigatório. Supor neste caso uma hipótese não prevista (lacuna) e buscar identidade plena (material) com o artigo 19 da Lei 4.717/65 configura, ao fim e ao cabo, analogia in malam partem.

Ubi lex voluit dixit, ubi noluit tacuit!

 


[1]Overruling à brasileira” é expressão que se emprega para referir a hipóteses em que um precedente judicial majoritário é ultrapassado por outro sem um diálogo necessário e completo com as razões de direito que ensejavam os fundamentos da decisão antecedente (até então prevalecente na jurisprudência).

[2] Consulte-se, a propósito, nesta coluna da Conjur. FERRAZ, Luciano. Improbidade Administrativa à Freudiana. https://www.conjur.com.br/2019-nov-07/interesse-publico-improbidade-administrativa-freudiana

[3] Sobre o caráter “penaliforme” das ações de improbidade administrativa e os debates jurisprudenciais, ver o trabalho acadêmico de ROCHA FILHO, Altair Soares da. Penaliformidade do ilícito de improbidade administrativa e a jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 5ª Região e dos Tribunais Superiores: decorrência da unicidade do Jus Puniendi. 2018. 112f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2018. Disponível em https://repositorio.ufrn.br/jspui/handle/123456789/27443.

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