Sistema de reféns

"Interrogatório sem advogado é uma das falhas do processo penal japonês"

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26 de janeiro de 2020, 9h00

Spacca
"Não sou mais refém de um sistema judicial japonês tendencioso, onde prevalece a presunção de culpa, a discriminação é generalizada e os direitos humanos são violados, em total desrespeito às leis e tratados internacionais."

Com a nota acima, enviada à imprensa no último dia do ano passado, o ex-presidente da Renault-Nissan Carlos Ghosn justificava a fuga espetacular do Japão, dois dias antes.

O empresário franco-brasileiro, que também tem nacionalidade libanesa, país para onde fugiu, cumpria prisão domiciliar desde abril do ano passado após o pagamento de quase R$ 20 milhões de fiança.

O executivo foi detido inicialmente em Tóquio em novembro de 2018, sob diferentes acusações: de ter subnotificado sua renda durante anos, de quebra de confiança (ofensa imputada em geral àqueles que ocupam altos cargos e se aproveitam da posição para cometer infrações), de usar a Nissan, empresa que comandava, para encobrir perdas financeiras pessoais milionárias e de enriquecer de modo ilícito por meio de transações feitas no Oriente Médio. Seu julgamento pela Justiça japonesa era esperado para abril de 2020.

Em entrevista à ConJur, o professor Marcelo de Alcantara, da Universidade Ochanomizu, em Tóquio, deu um panorama geral do Judiciário japonês. Confirmou que o "sistema de reféns" é criticado há muito tempo pela ordem dos advogados local, acadêmicos, entre outras entidades operadoras do Direito.

"Mas, como resultado dessas críticas, em 2019 entrou em vigor a reforma do Código de Processo Penal, que obriga a Polícia e o Ministério Público a gravar em áudio e vídeo todos os interrogatórios que realizarem no curso das investigações."

O paulistano de 40 anos, formado em Direito pela USP, diz que o sistema processual penal japonês tem muitas falhas que devem ser corrigidas, como não permitir a presença de um advogado durante os interrogatórios. "Contudo, em outros pontos, como a prisão preventiva prolongada, não difere tanto de outros países."

Desde 2003 no oriente, quando recebeu uma bolsa do governo japonês para mestrado e doutorado na Universidade de Osaka, o professor revela outras curiosidades em relação ao Brasil.

A Suprema Corte, que é formada por 14 juízes indicados pelo chefe do Executivo, formado a partir de uma coalizão parlamentar, respeita uma divisão de operadores do Judiciário, da advocacia, do Ministério Público, da Administração Pública e da academia. O presidente da Corte, o 15º integrante, precisa ser aprovado pelo imperador.

"Os magistrados têm aposentadoria compulsória aos 70 anos. Contudo, existe um sistema de revisão popular em que, na primeira eleição para a Câmara Baixa após a nomeação, o cidadão pode votar pela exoneração do juiz (é necessária a maioria de votos). Essa revisão se repete a cada dez anos."

Chama atenção também o número de advogados no país com quase 127 milhões de habitantes: pouco mais de 42 mil. Por aqui, segundo números da Ordem dos Advogados do Brasil, o número passou de 1,1 milhão em meados de 2019, para um país de quase 210 milhões de pessoas.

Leia abaixo a entrevista:

ConJur — Qual é o papel do Ministério Público no Japão? Consta que cerca de 90% das denúncias feitas resultam em condenação…
Marcelo de Alcantara — Sim, é verdade que a grande maioria das denúncias resulta em condenação.

O papel do Ministério Público japonês é trabalhar com a polícia na fase de investigação, identificando os suspeitos, ouvindo as testemunhas, colhendo as provas e esclarecendo a verdade. Ao final da investigação, cabe ao MP decidir se denuncia ou não o investigado.

Mas é preciso atentar para o fato de que o índice de denúncias é de cerca de 30%, ou seja, a cada dez investigados, apenas três são denunciados pelo MP [números parecidos com o do Brasil, segundo levantamento do Superior Tribunal de Justiça divulgado no ano passado].

Ademais, cerca de 65% dos condenados por tribunais distritais receberam penas pecuniárias ou suspensão condicional da pena, ou seja, não foram encarcerados.

ConJur — No Japão, o juiz que conduz o inquérito e a investigação é o mesmo que julga? Tem juiz de instrução, ou das garantias, condenação em segundo grau?
Marcelo de Alcantara — A fase de investigação fica sob responsabilidade da Polícia e do Ministério Público. A atuação do juiz, que faz parte de um tribunal distrital em primeira instância, se restringe a decidir sobre os pedidos de prisão preventiva, busca e apreensão, entre outros.

Tais pedidos são decididos por um juiz da “seção de mandados” do tribunal distrital. Após a denúncia, a causa será distribuída a uma das seções criminais do tribunal distrital, e um colegiado formado por três juízes conduzirá o processo e julgará a causa.

No passado existia a figura do “juiz de instrução”, que foi criado por influência francesa no século 19. Este sistema existiu até a entrada em vigor do atual Código de Processo Penal japonês, em 1949.

ConJur — Há muita crítica de fora sobre o sistema de confissões. É dito que elas são forçadas.
Marcelo de Alcantara —  De fato, o “sistema de reféns” é criticado há muito tempo pela ordem dos advogados japonesa, acadêmicos e outras entidades por aqui. Como resultado dessas críticas, em 2019 entrou em vigor a reforma do Código de Processo Penal, que obriga a Polícia e o Ministério Público a gravar em áudio e vídeo todos os interrogatórios que realizarem no curso das investigações.

Em tese, agora qualquer alegação, por parte do réu, de confissão forçada, poderá ser verificada pelo juiz durante o processo.

ConJur — Mas boa parte das condenações criminais no Japão é parcialmente ou totalmente baseada nessas confissões, é isso?
Marcelo de Alcantara —  A porcentagem de confissões é alta mesmo [cerca de 90% também], mas a confissão por si só não serve como fundamento de uma condenação. O MP tem o encargo de provar, para além de qualquer dúvida razoável, a autoria e a materialidade do crime. O artigo 38, parágrafo 3º da Constituição japonesa, determina que ninguém será condenado ou punido em casos em que a única prova contra si seja a confissão.

Outro dado interessante é o índice de recursos, que é cerca de 10%. Ou seja, 90% dos condenados em primeira instância não recorrem da decisão.

O que levaria um inocente que foi forçado a confessar, durante a fase de investigação, um crime que não cometeu e pelo qual, mesmo assim, foi condenado sem provas por três juízes em primeira instância a não recorrer?

ConJur —  Existe no Japão o sistema de plea bargaining, acordo entre a acusação e o réu?
Marcelo de Alcantara — O CPP japonês foi alterado em maio de 2016 para incorporar a colaboração premiada, que entrou em vigor em 1º de junho de 2018.

ConJur — O ministro da Justiça japonês possui poder de supervisão em relação ao Ministério Público?
Marcelo de Alcantara —  Nos termos da lei que regula o MP japonês, apenas o procurador-geral tem poder de supervisão em relação às investigações e decisões em casos concretos.

ConJur —  Ghosn diz que fugiu porque o sistema japonês fere os direitos humanos.
Marcelo de Alcantara —  O sistema processual penal japonês tem sim muitas falhas que devem ser criticadas e precisam ser corrigidas, como não permitir a presença de um advogado durante os interrogatórios (apesar da obrigatoriedade de gravação). 
Contudo, em outros pontos, como a prisão preventiva prolongada, não difere tanto de outros países.

Ghosn ficou preso por quatro meses e dez dias no total. Depois de solto, sob fiança, não usou tornozeleira ou pulseira eletrônica.

Na França, por exemplo, dependendo do crime, a détention provisoire pode ser prolongada por até quatro anos.

Para citar um caso recente do Brasil, João de Deus ficou preso preventivamente por um ano até ser condenado em primeira instância.

ConJur — Você acha que Ghosn foi vítima de lawfare?
Marcelo de Alcantara — Não creio que se possa, neste momento, afirmar isso, já que a fase processual nem sequer se iniciou.

Ele não foi ainda interrogado pelo juiz e não deu a sua versão a respeito dos fatos que lhe foram imputados.

Não houve, ainda, perante um tribunal distrital, a oitiva de testemunhas, apresentação e avaliação de provas, argumentos da acusação e defesa.

ConJur — Voltando à estrutura do Judiciário nipônico, existe justiça especializada, como aqui, que tem a militar, a trabalhista, por exemplo?
Marcelo de Alcantara — Em primeira instância há cortes, ou tribunais de família, que são responsáveis pela mediação familiar e julgam causas familiares e atos infracionais cometidos por menores.

Há também as Cortes Sumárias, que julgam causas cíveis de até 1.400.000 ienes (R$ 53.200) e infrações penais de menor potencial ofensivo. Todas as demais são julgadas pelas Cortes Distritais, em primeira instância, e Cortes Superiores, em segunda.

ConJur — Como é formada a Suprema Corte japonesa? Como os ministros são nomeados? E o papel do imperador?
Marcelo de Alcantara — A Suprema Corte é formada por 15 juízes, sendo um deles o juiz-presidente. Os 14 demais são nomeados pelo gabinete (Executivo), e o juiz-presidente é nomeado pelo imperador, após indicação do gabinete. Os magistrados têm aposentadoria compulsória aos 70 anos.

Os critérios seguem uma tradição, sendo seis oriundos do Judiciário, quatro da advocacia, dois do Ministério Público, dois da Administração Pública (diplomatas e servidores do alto escalão com formação jurídica) e um da academia (professores de direito).

A escolha não precisa ser aprovada pelo legislativo [no parlamentarismo japonês, o gabinete já representa a maioria dos congressistas].

Mas existe um sistema de revisão popular em que, na primeira eleição para a Câmara Baixa após a nomeação, o cidadão pode votar pela exoneração do juiz (é necessária a maioria de votos). Essa revisão se repete a cada dez anos.

Mas, desde a introdução deste sistema, no pós-Guerra, até hoje, nenhum juiz da Suprema Corte foi exonerado por receber a maioria de votos.

ConJur —  Como se organiza a advocacia no Japão?
Marcelo de Alcantara —  A ordem dos advogados japonesa (JFBA) é formada por 52 ordens regionais [uma para cada uma das 47 províncias japonesas, com exceção de Hokkaido (4) e Tóquio (3)].

Segundo a JFBA, há atualmente 42.228 advogados, em um país de 127 milhões de habitantes [no Brasil, são estimados 1,1 milhão].

ConJur — O Japão é um país punitivista?
Marcelo de Alcantara — Não, mas um país rigoroso com quem desrespeita as leis. Mas se considerarmos punitivismo como sinônimo de encarceramento, talvez a resposta seja negativa.

Segundo o World Prison Brief, o Japão tem 40 pessoas encarceradas para cada 100 mil [pouco mais de 50 mil encarcerados], o que o coloca na posição 207 entre 222 países e territórios do mundo [no Brasil, segundo levantamento divulgado pelo CNJ no ano passado, o número de encarcerados passa dos 800 mil].

ConJur — Qual a maior punição para crimes de "colarinho branco"?
Marcelo de Alcantara — Por exemplo, o crime de declaração falsa nos relatórios anuais da empresa, em violação à lei que regula o mercado de valores mobiliários e negociação de instrumentos financeiros, é um crime cuja pena prevista é de até dez anos de prisão.

Da mesma forma, o crime de malversação de recursos da empresa também tem pena prevista de até dez anos de prisão.

No entanto, os dados mostram que anualmente cerca de 10 a 20 pessoas são denunciadas por estes crimes, sendo a maioria condenada a pena de multa ou penas de prisão inferiores a três anos, com suspensão condicional da pena em muitos casos.

ConJur — O Brasil tem um processo para cada brasileiro, considerando duas pessoas por processo. Como é no Japão?
Marcelo de Alcantara — O Japão tem aproximadamente 4 milhões de processos, ou seja, 1 para cada 31,5 habitantes. Mas nesse número estão incluídas mediações familiares e outros procedimentos que não são propriamente processos.

ConJur — O país desestimula o acesso à Justiça?
Marcelo de Alcantara —  Talvez no sentido de que as partes sempre buscam uma solução amistosa entre elas. Veja o exemplo das relações de consumo. No Japão, o consumidor tem sempre razão. Logo, as empresas sempre vão buscar solucionar o problema causando o menor incômodo possível ao cliente.

Não é comum acessar o Judiciário para resolver um problema de telefonia celular, cartão de crédito, banco, seguro, aparelho eletrônico ou passagem aérea.

ConJur — E nas relações entre pessoas físicas no dia a dia?
Marcelo de Alcantara — A palavra tem muita importância nas relações sociais, e ouve-se muito sobre empréstimos sem nenhum tipo de contrato escrito. Mas isso está restrito a familiares ou pessoas que tenham uma relação muito próxima.

Mas, se você for a uma imobiliária para alugar um imóvel, terá de assinar um contrato e ter um fiador, como no Brasil.

ConJur — O estado fornece advogado gratuito para os pobres? É permitida a autodefesa, como nos Estados Unidos, por exemplo?
Marcelo de Alcantara — 
Em ações penais há advogados designados pelo estado (kokusen bengonin) para
aqueles que, por insuficiência econômica, não possam pagar os honorários de um advogado.

Da mesma forma podem utilizar em ações cíveis, entre outras, os serviços de uma agência pública (houterasu), que parcela pagamentos ou, em determinados casos, isenta do pagamento.

 No caso da autodefesa, em causas cíveis, é permitido. Não é obrigatório ser representado por um advogado.

ConJur — Em que áreas do Direito existem mais [e menos] processos judiciais?
Marcelo de Alcantara — Segundo os dados mais recentes, 47% dos processos estão nas áreas cível e administrativa (incluindo área trabalhista), 28% na área de família, 23% na área criminal e 2% de processos envolvendo infrações cometidas por menores.

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