Opinião

O juiz "herói" não é um bom juiz

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7 de janeiro de 2020, 7h02

 A antítese do conceito moderno de juiz é o juiz "herói", aquele que quer ver sua convicção impressionista sobre o conteúdo material da justiça prevalecer.

Juízes não são — no sentido prescritivo do verbo “ser”, naturalmente — pessoas que se apropriam de posições de poder nas quais se empenham de maneira sacerdotal para “iluminar” a sociedade ou “livrar” o povo de qualquer mal (real ou fictício), seja lá o que isso possa significar na cabeça de quem o diz.

Juízes, nas democracias modernas, são sujeitos recrutados por critérios desejavelmente imparciais de seleção para desempenhar a função de decidir sobre conflitos que lhes chegam por meio de uma seleção objetivamente estabelecida em regras conhecidas. Os critérios normativos para a solução dos conflitos também lhes são impostos pela lei, sejam os critérios materiais, sejam os processuais. Dentro desse cenário, juízes julgam de maneira igualmente racional. Ao menos assim se espera. A racionalidade possível e esperada no Direito não é aquela das ciências da natureza, mas a do pensamento prudencial, sensato, consequente e do uso correto da linguagem, especialmente o uso de boa-fé dos argumentos, com a explicitação dos elementos normativos que fizeram quem julga decidir da forma como o fez.

Os argumentos que podem ser utilizados no Direito são parte de um repertório que, ao longo do tempo, foram sendo aceitos como válidos e, nesse sentido, se pode dizer que são argumentos legítimos (aqui a inegável conexão do Direito com a política, obviamente). Em sistemas jurídicos como o brasileiro, enraizado na tradição chamada de romano-germânica, um sistema de normas codificadas e leis que constituem um todo pretensamente coerente, os argumentos legítimos a fundamentar uma decisão estão nesse corpo de normas. O juiz julga, portanto, por dever funcional, com base na lei.

Essa conformação de funcionamento institucional do Poder Judiciário é um legado da modernidade. Diz-se que temos um governo de leis e não de homens, para expressar a garantia da cidadania de que aquele que julga e decide questões como liberdade, patrimônio, relações familiares, herança, relações comerciais etc. o faz com fundamento em critérios, o máximo possível conhecidos, transparentes, compreensíveis e aceitos por toda a comunidade política como válidos. Esses critérios estão nas normas jurídicas (constituição, leis, decretos, regulamentos administrativos etc.) e nas interpretações que os juízes fazem dessas normas, a chamada “jurisprudência”.

Um terceiro critério normativo importante entra em jogo quando há dúvida e incerteza sobre o sentido das normas e sua aplicação a casos a decidir. Os estudiosos do Direito refletem sobre esses sentidos normativos e sobre casos em que as normas são aplicadas e produzem livros, artigos e pareceres. A isso se chama de “doutrina” jurídica, ou seja, é o que em outros campos do saber se chama de literatura especializada.

De um juiz se espera que julgue de forma regrada, portanto. Regras, no sentido amplo do termo, estabelecem limites dentro dos quais e segundo os quais as decisões devem ser tomadas. As normas jurídicas são, ainda, interpretadas de forma regrada. Há uma extensa e longeva reflexão sobre como interpretá-las adequadamente, ao que se chama de hermenêutica jurídica. O

juiz, portanto, não é livre para fazer justiça, a sua justiça. Quando a noção solipsista de justiça se impõe ao consenso normativo expresso na constituição e nas leis, o princípio democrático de que a norma é produzida pela comunidade política resta erodido. Se um juiz pensa em iluminar a sociedade ou fazer a sua justiça, subvertendo normas processuais e criando conceitos a partir de casos concretos para obter fins que de outra forma não conseguiria, seja uma condenação ou uma absolvição, esse ator não está mais trabalhando dentro do Direito. Pode até estar trabalhando com o Direito, mas não o está segundo o Direito.  

Não há, portanto, no Direito, espaço para decisões “heroicas”, nesse sentido de subversão da norma a fim de criar uma interpretação que mais convém ao resultado esperado. Isso tem um nome específico: arbítrio. O Direito é antitético ao arbítrio. A justiça supõe a negação do arbítrio. Do herói não se espera coerência. O ato heroico não mede consequências. O herói se comporta como não tivesse nada a perder. O herói segue uma destemida ética de convicção, o que não se ajusta às funções públicas de Estado. Não é isso que se espera de um juiz.  
O dito ativismo heroico é um equívoco, posto ser injusto e disfuncional. Injusto porque trata aleatoriamente questões que deveriam ser submetidas às regras, por sua própria natureza imperativas, erga omnes, igualitárias e coerentes enquanto aplicadas de forma isonômica.

O protagonismo judicial que se vê hoje no Brasil (evita-se falar de “ativismo”, pois não se vê aqui qualquer orientação ideológica programática na atuação das cortes, ao contrário do que ocorreu na Warren Court norte-americana, na qual havia uma clara pauta de afirmação dos civil rights) é uma forma ideologicamente inarticulada, até mesmo inconsciente, de tentativa de compensar de alguma maneira o déficit de legitimidade política causado pela ineficácia instrumental do Direito com o recurso ao aumento da produção de normas heroicas, frutos de decisões judiciais.

É uma competição desordenada pela prevalência de visões de mundo, levando à profusão de decisões nos mais variados sentidos e com as mais variadas consequências. Assim como ocorrera no processo constituinte brasileiro e nos anos que a ele se seguiram com relação à chamada inflação legislativa, há uma grande volatilidade retórica que fundamenta essa prática, fruto da prevalência de motivações de distintas ordens, todas voluntaristas: caritativas, heroicas, emancipatórias, políticas, conservadoras etc. Todas, de alguma forma, materializam um discurso jurídico fundado em normas semanticamente abertas.

Os padrões decisórios ativista e heroico, pouco comprometidos com a densificação semântica, reproduzem o que os cidadãos adotaram como modo privado de considerar a lei, sempre passíveis de serem flexibilizados por motivos e conveniências pessoais. A forma como se deu a assimilação da cultura jurídica europeia, mais especificamente a francesa, entre nós e a forma como se constituiu a relação entre Estado e sociedade não permitiu a consolidação de uma característica fundamental da modernidade jurídica, a cultura de cumprimento da lei como parte essencial de uma cidadania democrática.

Cumprir a lei, nesses termos, significa que o julgador não pode impor à comunidade política soluções com fundamento, por exemplo, de que os fins justificam os meios, ou que “é evidente” que fulano é culpado, que embora não haja provas há evidências que levam àquela decisão, ou mesmo que “estamos em um momento histórico que separa os que são contra e os que são lenientes com a corrupção” etc. O tema do juiz “herói” problematiza o quanto a prática decisória dos tribunais incorpora, paradoxalmente, essa relação com a lei.

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