Opinião

Publicidade infantil entre regular, editar, copiar e colar

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  • Adalberto Pasqualotto

    é professor titular de Direito do Consumidor no programa de pós-graduação da PUC-RS e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

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  • Fernando Rodrigues Martins

    é professor da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e presidente do Brasilcon.

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6 de fevereiro de 2020, 7h00

A Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor (Senacon), órgão público ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública e integrante do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, submeteu a consulta pública, através do despacho 26 de 15 de janeiro de 2020, "minuta" de portaria sobre publicidade infantil. Os convites para discussão sobre o tema também foram enviados a profissionais que atuam neste ramo, entretanto sem os necessários esclarecimentos e advertências quanto aos desideratos contidos subliminarmente.

De partida cumpre anotar que a publicidade, mesmo na insistência de alguns fundamentada na "liberdade de expressão", é atividade marcadamente econômica, consistindo precipuamente em discurso mercadológico com a finalidade de aproximação dos produtos e serviços aos destinatários finais. Portanto, é melhor tê-la conjuntamente a demais interesses constitucionalmente promovidos e tutelados, situando-a aos auspícios da ordem econômica (Constituição Federal, artigo 170), sem prejuízo de outras intervenções valorativas restritivas (Constituição Federal, artigo 220, parágrafo 3º, inciso II e parágrafo 4º).

Em termos dogmáticos é possível compreendê-la como materialização da oferta na formação dos contratos de consumo, contudo, como grande parte dos institutos consumeristas, subordinada à boa-fé, às legítimas expectativas, minudentemente ao dever de informação, e, justamente por isso, potencial geradora de responsabilidade civil.

Já a publicidade infantil é aquela dirigida ao público em formação social, intelectual, psíquica, mental e emocional (criança, nos termos do artigo 2º e 3º do ECA) e, nessa condição, pessoa com amplos riscos de elaboração deficiente nos julgamentos (escolhas) e fortemente ainda desprovida de experiência. Daí que o CDC (artigo 37, parágrafo 2º) trate como ilícita, mais propriamente abusiva, a publicidade que tira proveito justamente dessas vulnerabilidades tão específicas.

É importante gizar que o dispositivo acima contido no Código de Defesa do Consumidor constitui-se standard, carecendo de técnicas de preenchimento e balanceamento inerentes ao reconhecimento do direito como sistema aberto, porém íntegro e coerente. Posto isso, para a verificação da abusividade publicitária não escapam, além da "assimilação do caso concreto", outras fontes normativas internas e internacionais.

Resta ponto conclusivo relevante: a matéria merece cuidado rigoroso, nada tênue ou de fácil condução para resolução de conflitos. Nos lindes judiciais, algumas decisões sinalizam para hipóteses de abusividade quanto às publicidades dirigidas ao público infantil (STJ – REsp números 1.558.086; 1.101.949; e 1.613.561), contudo, nada a gerar tranquilidade nas discussões travadas.

O que se esperava, portanto, era que a esfera administrativa federal, caracterizada pelo poder regulatório, promovesse adequada e suficientemente a proteção e defesa das crianças frente à publicidade. Na memória de que a Resolução 163/2014 do Conanda ainda aguarda deslinde quanto à pertinência de legitimação, a Senacon, abrindo a discussão e consulta, apresentou minuta.

O exame pormenorizado do texto contido na minuta leva à clara e óbvia constatação de que o órgão público com competência federal para a promoção do consumidor infantil acabou por "adotar" grande parte das disposições contidas no artigo 37 do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária do Conar. Em que pese a contribuição histórica do Conar na autorregulamentação da publicidade, a baixa operatividade dessa entidade frente a congêneres europeias, a falta de transparência das suas decisões, o acentuado corporativismo da sua constituição e algumas vezes a sua morosidade conivente, além da falta de cogência do seu código deontológico desautorizam a escolha do modelo.

O Direito do Consumidor é direito fundamental e nesse cariz deve ser tratado. As normas de direitos fundamentais estão sempre a exigir disposições procedimentais e de organização a fim de tornarem os interesses constitucionalmente inscritos totalmente aptos à efetividade (do dever-ser ao dever-fazer). Entre tantas, duas estratégias são significativas: a fixação de competência e a criação de direitos a procedimentos judiciais e administrativos que garantam os direitos fundamentais materiais envolvidos.

A Constituição Federal, ao determinar que ao Estado cumpre a promoção de defesa do consumidor na forma da lei, não deixou dúvidas, porquanto remeteu ao Estado dever fundamental de proteção ao consumidor, bem como pontuou a necessidade de lei para traçar as diretrizes materiais dessa defesa. Em correntio, tem-se, pois, não apenas o CDC (já com 30 anos), mais especificamente o Decreto 2.181/97, que estabelece a competência clara da Senacon para, no âmbito administrativo, regular matérias concernentes à ‘proteção jurídica efetiva’ do consumidor. Essa atribuição não permite delegação e não abre espaço para prevaricação quanto aos direitos fundamentais dos consumidores.

Na hipótese da publicidade infantil a questão torna-se transversalmente acendrada, já que dois direitos fundamentais e, consequentemente, duas vulnerabilidades, são verificáveis e constantemente lesionadas: consumidor mais criança. Por isso, as funções administrativas da Senacon não podem ser superficiais, insuficientes ou tendenciosas, circunscritas à mera repetição dos desígnios do Conar (notória compilação parcial: "editar/copiar" do citado artigo 37 do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária). Não se exclui que o Conar, como órgão associativo de representação dos interesses corporativos ligados à publicidade, tenha participação no processo de regulação da publicidade em geral – não apenas a dirigida a crianças – desde que assegurada a participação igualitária dos demais setores atingidos, de modo a assegurar ampla legitimação social. O papel do Estado, como ocorre em modelos mais evoluídos, é de fiscal dos procedimentos, surgindo a figura da corregulação.

A função administrativa de concreção aos direitos fundamentais deve ser pronta e rigorosa, nunca mera repetição dos escrutínios de quem é fiscalizado (há sério conflito de interesses nisso). Cabe à Senacon produzir regulamentos e diretrizes tais, conforme a Constituição Federal e leis de proteção desses dois vulneráveis, permitindo aos demais legitimados com funções administrativas noutras unidades da federação ações de fiscalização.

Já que órgão ligado justamente ao Ministério da Justiça e estando a justiça alocada nos ditames constitucionais dos direitos fundamentais, não faz sentido a Senacon abdicar da ordem imposta pelo sistema jurídico para, no deslocamento de consumidores-crianças, adotar o interesse particular próprio das agências publicitárias.

Em boa medida isso reflete que à Senacon cabe: a proteção materialmente devida à criança consumidora (salvando-a do consumismo e vício no mercado); a delimitação da atividade publicitária, nos exatos termos da Constituição Federal e outros instrumentos normativos internacionais e internos; o incentivo à sociedade na educação para o consumo com efeitos justamente positivos às crianças e consequentemente às gerações futuras; o estabelecimento de limites às outras unidades federativas quando da fiscalização (importando em segurança jurídica dirigida aos institutos particulares de publicidades); a parametrização do tema nas instâncias judiciárias no exame de eventuais sanções, vedações e autorizações.

Enfim, a administração pública, quando adota como razões de decidir os fundamentos de quem deve fiscalizar, é porque não mais detém a capacidade de gerir, fiscalizar e servir. Servir a quem realmente justifica sua existência enquanto órgão público.

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