Opinião

Os desafios da Lei 13.964/2019 após um ano de sua vigência

Autores

  • Marcos de Almeida Camargo

    é perito criminal Federal e presidente da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais.

  • Érico Negrini

    é perito criminal federal e especialista em gestão financeira auditoria e controladoria e pesquisador sobre ESG no Programa de Mestrado em Ciências Contábeis da Universidade de Brasília — PPGCont.

31 de dezembro de 2020, 18h34

É essencial que o Brasil valorize cada vez mais a ciência, em todas as áreas em que ela pode e deve atuar. A segurança pública é sem dúvida um campo em que o avanço científico, por meio da perícia oficial de natureza criminal, tem muito a contribuir. A partir do trabalho isento, imparcial e equidistante das partes realizado pelos peritos oficiais, subordinados unicamente aos fatos científicos, tem-se valiosa ferramenta para elucidação de crimes e redução da impunidade, auxiliando o julgamento justo do processo penal.

Com esse espírito, a Lei nº 13.964/19 aperfeiçoou a legislação processual penal ao estabelecer requisitos e etapas essenciais para assegurar o cumprimento da cadeia de custódia na produção da prova pericial, cuja gestão está a cargo dos órgãos centrais de perícia oficial de natureza criminal. Busca-se, dessa forma, garantir a integridade do conteúdo probatório e asseverar os princípios constitucionais do devido processo legal e do contraditório. Trata-se da certeza de que qualquer um que venha a ser submetido ao poder coercitivo do Estado tenha a transparência e os meios de confirmar todo o processamento dos vestígios relacionados à infração penal, desde a coleta até o descarte, e que os mesmos permanecerão inalterados durante todo o processo.

A lei não deixa margem a interpretação. Vestígio é todo objeto ou material bruto, visível ou latente, constatado ou recolhido, que se relaciona à infração penal. Deve ser processado pelos peritos oficiais e encaminhado às centrais de custódia localizadas nas unidades de criminalística, que precisam estar preparadas para o devido tratamento desses material, inclusive o de natureza digital, promovendo meios e padrões para garantia da integridade de dados e sistemas. Qualquer interpretação restritiva que se faça por meio de normas infralegais não deve prosperar.

Nesse primeiro aniversário da lei, todavia, o cenário é preocupante. Em alguns casos faltam investimentos em espaços físicos, regulamentação e padronização de procedimentos que englobem todos os atores da persecução penal. É imperioso, portanto, uma coordenação em escala nacional. A criação de uma secretaria nacional de ciências forenses, no âmbito do Ministério da Justiça e Segurança Pública, seria fundamental justamente para compreender e responder às particularidades, peculiaridades e necessidades específicas da criminalística nacional, padronizando ações previstas pelo Código de Processo Penal, a fim de garantir a sua adequada aplicação por todos os atores envolvidos na persecução penal.

A recente criação de um grupo de trabalho para tratar do tema cadeia de custódia, decorrente dos procedimentos assentados na Lei nº 13.964/19, parece ser um primeiro passo acertado no caminho de se evitar eventual insegurança jurídica no processo criminal, advinda de procedimentos diferentes e discricionários para vestígios colhidos em diversas tipologias penais. Tal medida poderá evitar prejuízos em investigações e enxurradas de pedidos de nulidades processuais.

Importa destacar também que o papel da perícia oficial é analisar cientificamente os vestígios de um crime a fim de determinar a materialidade e a autoria. Por meio de provas materiais robustas, os peritos oficiais auxiliam a Justiça na busca pela verdade.

O perito oficial é, por conseguinte, um auxiliar da Justiça. Cabe a ele a obrigação de esclarecer as questões técnicas da sua área de conhecimento ao juiz, levando ao magistrado elementos científicos fundamentais para formação da sua convicção, dando o devido respaldo para que tome a decisão. Por outro lado, cabe ao juiz, que possui o livre convencimento motivado, a análise da admissibilidade da prova pericial que envolverá, entre outros fundamentos, a validação científica, clareza dos métodos utilizados, critérios de suspeição e produção de falsa perícia.

A investigação científica promovida pelos peritos oficiais não se confunde, à vista disso, com aquela levada a efeito no âmbito do inquérito policial. No documento inquisitorial, as informações são produzidas com base em hipóteses criminais, não se aplicando critérios de suspeição ou de falsa perícia aos demais policiais, como acontece com os peritos oficiais. Por tal motivo, não se deve substituir a prova científica por relatórios produzidos por outros policiais, que não os peritos oficiais, uma vez que, diferentemente destes, aqueles estão subordinados diretamente ao condutor do inquérito policial.

A Lei nº 12.030/09 garante aos peritos oficiais a atuação com autonomia técnica, científica e funcional, medidas essenciais para assegurar a imparcialidade e a equidistância das partes. Desse modo, os fatos apresentados em um laudo pericial permitem que se apontem tanto culpados, quanto inocentes, mitigando condenações indevidas.

Hipóteses, confissões, reconhecimentos visuais, delações e acordos são instrumentos válidos na persecução penal. É preciso, entretanto, que sejam acompanhados do devido suporte científico probatório, que envolve a perícia oficial. Exemplificando, a perícia criminal possui capacidade técnica de oferecer ao processo penal uma avaliação imparcial de termos de acordos e colaborações mediante a validação ou não de alegações que a própria lei exige que sejam comprovadas.

Instrumentos da Justiça Penal que alcançam o patrimônio das pessoas e organizações investigadas precisam estar delimitadas por avaliações técnicas e comprovadas por laudos periciais. Acordos de colaboração, avanço amplamente comemorado na seara penal, podem se tornar elementos deletérios ao processo caso aplicados sem critérios técnicos. Não existe respaldo constitucional para condenações antecipadas sem o devido processo legal que, inclusive, possam gerar repercussões reputacionais e prejuízos financeiros além do limite da culpabilidade.

Trata-se de um específico caso da teoria dos jogos e da evidenciação, conhecida nos trabalhos de Verrechia e Dye. O investigado pretende fechar o acordo nos melhores termos econômicos e o Estado ampliar a reparação ao dano. Se não há elementos técnicos imparciais para se delimitar esses pontos, incorremos na cilada prevista por essas teorias.

Ademais, quando se deixa de solicitar uma perícia em um inquérito policial, abdica-se de levar ao conhecimento do processo uma prova material. Impede-se, dessa maneira, que as partes conheçam e eventualmente até questionem tecnicamente as conclusões apresentadas, a fim de possibilitar ao juiz a aplicação dos critérios de admissibilidade da prova.

O poder coercitivo do Estado não pode ser exercido sem uma rede equivalente de proteção que atue em defesa dos direitos e garantias constitucionais. Assim como o Estado possui uma posição institucional privilegiada para promover a ação penal, à defesa também deve ser garantido o acesso aos meios para a realização do seu trabalho. Trata-se do princípio da paridade de armas. Nesse aspecto, como própria decorrência do princípio, a perícia oficial é também um instrumento capaz de ser utilizado, podendo o defensor suscitar em juízo que se esclareça, por exemplo, elementos produzidos na fase de investigação ou no processo relacionados, entre outros pontos, ao cumprimento da cadeia de custódia e metodologias empregadas na precificação de acordos e avaliação econômica de bens e valores.

Em uma economia que depende de investimentos externos, como a do Brasil, o desenvolvimento econômico pode ser fortemente afetado pelo aumento do custo de captação associado ao risco legal, caso seja percebido por organismos internacionais como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que empresas e pessoas podem ter seu patrimônio suprimido em processos penais desprovidos de bases técnicas adequadas, contrariando o princípio da liberdade econômica e criando um ambiente de insegurança jurídica e aversão aos investimentos externos.

Não se ignora o problema da criminalidade no Brasil, e, claro, o anseio da sociedade pela punição dos criminosos. Contudo, enfrentar o crime a qualquer custo e com base em argumentos frequentes de que é preciso avançar no combate à criminalidade como uma exigência internacional pode abrir espaço para injustiças. É forçoso destacar que organismos internacionais que defendem o combate à criminalidade ressaltam em primeiro lugar que os países devem atuar em total obediência aos seus ordenamentos legais e constitucionais.

Nações que tentaram flexibilizar os direitos de seus cidadãos em nome da promoção de maior segurança não tiveram sucesso. Os Estados Unidos foram um desses países. Logo após os atentados de 11 de setembro de 2001 criaram o USA Patriot Act, representado por um conjunto de normas que flexibilizava os direitos individuais do cidadão e aumentava as possibilidades de acesso aos dados pessoais pelos órgãos do governo. Essas normas, depois de uma intensa crítica e pressão da sociedade e organismos internacionais, foram substituídas pelo que veio a se chamar USA Freedom Act, em contraponto ao que se pretendia anteriormente.

No Brasil, por sua vez, o que ainda se vê são dados pessoais tratados quase como commodities. Órgãos governamentais querem ter acesso a bases de dados sob o argumento de combater à criminalidade e cumprir seus papeis institucionais. Essas discussões estão sendo oportunamente realizadas no Congresso Nacional para propor uma lei sobre proteção de dados na segurança pública. Algo urgente e obrigatório em complemento à própria lei de cadeia de custódia.

Não há espaços para prosperarem iniciativas que estejam longe do foco da lei e da Constituição. É preciso ter em mente que todos os dados utilizados no processo penal devem seguir os rigores dos procedimentos de cadeia de custódia. Quando, por exemplo, um dado bancário não chega diretamente à perícia oficial e não passa pelos rigores da cadeia de custódia, as conclusões podem restar prejudicadas. Da mesma forma, os dados produzidos em relatórios de inteligência precisam ser submetidos a programa de governança e integridade.

Por isso, é importante que esses relatórios, incluindo aqueles produzidos pelo Coaf (RIFs), sejam encaminhados para análise pericial, em que se encontram os experts em temas contábeis, financeiros e econômicos, bem como outras áreas de conhecimento que possam ser inseridas no contexto de uma análise abrangente sobre possíveis modus operandi para a prática dos crimes inicialmente apontados a partir desses documentos.

É imprescindível ressaltar que o acesso aos dados e a sua guarda ao ser encaminhado à perícia oficial devem obedecer os preceitos da cadeia de custódia, estando sob a gestão do órgão central de perícia criminal, conforme determina a lei. Para que isso seja otimizado, é recomendável que o perito criminal tenha acesso os RIFs direto da fonte originária, a fim de que sejam realizados os procedimentos para garantia da integridade e cadeia de custódia dos dados.

Quando o Estado promove investigações e processos sem exames periciais, em desobediência ao Código de Processo Penal que define a imprescindibilidade da perícia oficial nos crimes que deixam vestígios, ele falha. E continuará falhando se não garantir os meios necessários para que ela cumpra o seu dever legal e constitucional relativo ao direito à prova e aos novos temas relacionados à cadeia de custódia.

É preciso alertar que avanços no combate à criminalidade sem a observância dos direitos e garantias de sociedades democráticas são igualmente avaliados de forma negativa, gerando instabilidades institucionais, com repercussões na área econômica e de desenvolvimento do país, mas principalmente no bem mais precioso do cidadão, que é a sua liberdade.

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