Opinião

A atualização dos débitos judiciais trabalhistas na visão do STF

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23 de dezembro de 2020, 18h14

A mais recente decisão de nossa Suprema Corte em matéria laboral, proferida ao término do ano judiciário de 2020, versando sobre a atualização dos créditos judiciais trabalhistas, surpreendeu a muitos, mas apenas àqueles que não souberam ver o sinal dos tempos nas decisões precedentes do Pretório Excelso em matéria de correção de débitos judiciais.

O presente e singelo artigo tem por escopo justamente mostrar a sinalização do STF na decisão que serviu de base para o TST firmar sua jurisprudência quanto à correção monetária, mas não captada em sua integralidade pela corte laboral, o que explica a cassação do entendimento do TST pelo STF na decisão que ora comentamos, inclusive quanto à sua extensão.

Com efeito, nosso Pretório Excelso, quando se debruçou sobre a matéria, em sede de precatórios (ADI 4.425, red. ministro Luiz Fux, julgada em 14/3/13), fixou, já na ementa, o entendimento de que:

"5. A atualização monetária dos débitos fazendários inscritos em precatórios segundo o índice oficial de remuneração da caderneta de poupança viola o direito fundamental de propriedade (CF, artigo 5º, XXII) na medida em que é manifestamente incapaz de preservar o valor real do crédito de que é titular o cidadão. A inflação, fenômeno tipicamente econômico-monetário, mostra-se insuscetível de captação apriorística (ex ante), de modo que o meio escolhido pelo legislador constituinte (remuneração da caderneta de poupança) é inidôneo a promover o fim a que se destina (traduzir a inflação do período)".

Mas na mesma assentada, estabeleceu também que:

"6. A quantificação dos juros moratórios relativos a débitos fazendários inscritos em precatórios segundo o índice de remuneração da caderneta de poupança vulnera o princípio constitucional da isonomia (CF, artigo 5º, caput) ao incidir sobre débitos estatais de natureza tributária, pela discriminação em detrimento da parte processual privada que, salvo expressa determinação em contrário, responde pelos juros da mora tributária à taxa de 1% ao mês em favor do Estado (ex vi do artigo 161, §1º, CTN). Declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução da expressão 'independentemente de sua natureza', contida no artigo 100, §12, da CF, incluído pela EC nº 62/09, para determinar que, quanto aos precatórios de natureza tributária, sejam aplicados os mesmos juros de mora incidentes sobre todo e qualquer crédito tributário".

Ou seja, o Supremo estabeleceu critérios para ambos os elementos componentes da recomposição dos débitos judiciais, que são os juros e a correção monetária: a correção monetária em face do direito de propriedade e os juros em face do princípio da isonomia. Isso porque ambos os elementos estão umbilicalmente ligados, quando se trata de estabelecer uma relação de equilíbrio entre as relações de credor e devedor, nas hipóteses de compensação de precatórios com créditos tributários, admitidos pela EC 62/09.

Ora, a ratio decidendi das ADIs 4.357, 4.372, 4.400 e 4.425 e AC 3.764 MC-DF, julgadas em conjunto quanto à inconstitucionalidade do parágrafo 12 do artigo 100 da CF, é que norteou o julgamento, pelo TST, da ArgInc-479-60.2011.5.04.0231 (relator ministro Cláudio Brandão, DEJT de 14/8/15), no qual o Pleno do TST, por maioria, decidiu declarar a inconstitucionalidade, por arrastamento, da parte do artigo 39 da Lei 8.177/91, que respaldava a utilização da Taxa Referencial (TR) para atualização dos débitos judiciais trabalhistas, e definir a variação do Índice de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-E) como fator de atualização a ser utilizado na tabela de atualização monetária dos débitos trabalhistas na Justiça do Trabalho.

O que o TST não se deu conta, naquela oportunidade, é que a isonomia entre os juros aplicados para os créditos tributários (CTN, artigo 161, parágrafo 1º) e os créditos trabalhistas (Lei 8177/91), de 1% ao mês, que justificaria não se mexer nesse parâmetro, era aparente, dada a redação dos dispositivos que tratam da matéria nos dois âmbitos e sua aplicação na prática. Assim, temos:

"Artigo 39 — Os débitos trabalhistas de qualquer natureza, quando não satisfeitos pelo empregador nas épocas próprias assim definidas em lei, acordo ou convenção coletiva, sentença normativa ou cláusula contratual sofrerão juros de mora equivalentes à TRD acumulada no período compreendido entre a data de vencimento da obrigação e o seu efetivo pagamento.
§ 1º. Aos débitos trabalhistas constantes de condenação pela Justiça do Trabalho ou decorrentes dos acordos feitos em reclamatória trabalhista, quando não cumpridos nas condições homologadas ou constantes do termo de conciliação, serão acrescidos, nos juros de mora previstos no caput, juros de 1% ao mês, contados do ajuizamento da reclamatória e aplicados pro rata die, ainda que não explicitados na sentença ou no termo de conciliação" (Lei 8.177/91).

"Artigo 161 — O crédito não integralmente pago no vencimento é acrescido de juros de mora, seja qual for o motivo determinante da falta, sem prejuízo da imposição das penalidades cabíveis e da aplicação de quaisquer medidas de garantia previstas nesta lei ou em lei tributária.
§ 1º. Se a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora são calculados à taxa de 1% ao mês" (CTN).

Ora, antes da Lei 13.467/17, da reforma trabalhista, que tratou especificamente da correção monetária e colocou expressamente o índice como sendo a TR, base legal para a correção monetária era a mesma dos juros, ou seja, o artigo 39 da Lei 8.177/91. Tanto que foi precisamente esse o dispositivo tido por inconstitucional pelo TST. No entanto, quanto aos créditos tributários, a redação do artigo 161, parágrafo 1º, do CTN, tem os juros de 1% ao mês como solução provisória e residual, quando não regulada a matéria pelas diversas esferas federativas.

Assim, na prática, tanto a União (Lei 9.065/95), como Estados e municípios têm adotado a taxa Selic (Sistema Especial de Liquidação de Custódia) como indexador dos créditos tributários, a qual engloba juros e correção monetária. Ora, para se ter uma ideia da diferença entre as taxas, para o ano de 2018, a TR foi zerada, o IPCA-E ficou em 3,75% e a Selic ficou em 6,5%, isto porque, repita-se, a Selic já traz incorporados os juros.

Nesse contexto, o TST também começou a enfrentar a inconstitucionalidade do artigo 879, parágrafo 7º, da CLT, que estabelecia a TR como taxa de correção monetária dos créditos judiciais trabalhistas (ArgInc-24059-68.2017.5.24.0000, relatora ministra Delaíde Miranda Arantes), interrompido pela suspensão dos processos relativos à correção monetária dos débitos trabalhistas por despacho do ministro Gilmar Mendes na ADC 58.

Ora, o que havia de comum entre os votos do ministro Cláudio Brandão e da ministro Delaíde Arantes era: a) remissão à ADI 4.425 do STF como fundamento para respaldar a inconstitucionalidade da TR como fator de correção monetária dos débitos judiciais trabalhistas;  b) a substituição da TR pelo IPCA-E; c) não se mexer nos juros de 1% ao mês, ainda que, na decisão do Pleno do TST de 2015, a inconstitucionalidade decretada dissesse respeito ao artigo 39 da Lei 8.177/91, que não fala expressamente de correção monetária, mas apenas de juros.

Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes incluiu tabelas comparativas para demonstrar como, mesmo utilizando a TR como índice de correção monetária, o crédito trabalhista era o melhor remunerado frente a todos os demais créditos judiciais (tributários, verbas de servidores públicos, benefícios previdenciários e condenações cíveis), justamente por contar com juros de mora de 1% ao mês. Considerando o ano de 2019, com a TR zerada, os demais teriam uma atualização máxima de 4,93% pela Selic (pois o STJ considera bis in idem a aplicação de índice de correção monetária além da Selic, que já alberga a correção monetária além dos juros), enquanto os trabalhistas teriam a atualização de 12% em face dos juros mensais de 1%. Com a decisão do TST sobre o IPCA-E, a conta iria para quase 14% (13,91%).

Ou seja, o STF, com a decisão na ADI 4.425, somada à fixação de tese para o Tema de repercussão geral 810 e tomando-se em conta o ano de 2019, já havia elevado, na prática, a remuneração dos créditos judiciais em geral, de 3,31% (juros e correção da poupança) para 4,93% (taxa Selic), conforme tabelas do referido voto, enquanto o TST elevava tal atualização do patamar de 12% para 14%. E nem se diga que o crédito trabalhista é privilegiado, pois também o tributário e o previdenciário o são.

Assim, a decisão final do STF na referida ação declaratória de constitucionalidade, em voto conjunto com a ADC 59 e ADIs 5.867 e 6.021, teve como dispositivo:

"Ante o exposto, julgo parcialmente procedentes as ações diretas de inconstitucionalidade e as ações declaratórias de constitucionalidade, para conferir interpretação conforme a Constituição ao artigo 879, §7º, e ao artigo 899, §4º, da CLT, na redação dada pela Lei 13.467, de 2017. Nesse sentido, há de se considerar que à atualização dos créditos decorrentes de condenação judicial e à correção dos depósitos recursais em contas judiciais na Justiça do Trabalho deverão ser aplicados, até que sobrevenha solução legislativa, os mesmos índices de correção monetária e de juros vigentes para as hipóteses de condenações cíveis em geral, quais sejam a incidência do IPCA-E na fase pré-judicial e, a partir da citação, a incidência da taxa Selic (artigo 406 do Código Civil)" (julgado em 18/12/20, vencidos os ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio).

A decisão majoritária da Suprema Corte teve a virtude de equalizar a atualização de todos os débitos judiciais, qualquer que seja a sua natureza, trabalhista, administrativa, tributária, previdenciária ou cível.

A parte final do voto condutor da decisão, do ministro Gilmar Mendes, deixou claro os parâmetros de aplicação da decisão:

"Desse modo, para evitarem-se incertezas, o que ocasionaria grave insegurança jurídica, devemos fixar alguns marcos jurídicos. Em primeiro lugar, são reputados válidos e não ensejarão qualquer rediscussão (na ação em curso ou em nova demanda, incluindo ação rescisória) todos os pagamentos realizados utilizando a TR (IPCA-E ou qualquer outro índice), no tempo e modo oportunos (de forma extrajudicial ou judicial, inclusive depósitos judiciais) e os juros de mora de 1% ao mês, assim como devem ser mantidas e executadas as sentenças transitadas em julgado que expressamente adotaram, na sua fundamentação ou no dispositivo, a TR (ou o IPCA-E) e os juros de mora de 1% ao mês.
Por outro lado, os processos em curso que estejam sobrestados na fase de conhecimento (independentemente de estarem com ou sem sentença, inclusive na fase recursal) devem ter aplicação, de forma retroativa, da taxa Selic (juros e correção monetária), sob pena de alegação futura de inexigibilidade de título judicial fundado em interpretação contrária ao posicionamento do STF (artigo 525, §§ 12 e 14, ou artigo 535, §§ 5º e 7º, do CPC).
Igualmente, ao acórdão formalizado pelo Supremo sobre a questão dever-se-á aplicar eficácia erga omnes e efeito vinculante, no sentido de atingir aqueles feitos já transitados em julgado desde que sem qualquer manifestação expressa quanto aos índices de correção monetária e taxa de juros (omissão expressa ou simples consideração de seguir os critérios legais)".

Sistematizando a decisão, temos quatro situações distintas, com a modulação levada a cabo pela Suprema Corte na mesma assentada:

— Débitos trabalhistas judiciais ou extrajudiciais já pagos — serão mantidos os critérios com os quais foram pagos (TR ou IPCA-E + juros de 1% ao mês);

— Processos transitados em julgado com definição dos critérios de juros e correção monetária — observar-se-ão esses critérios (TR ou IPCA-E § juros de 1% ao mês);

— Processos transitados em julgado sem definição dos critérios de juros e correção monetária — atualização e juros pela taxa Selic (que já engloba os dois fatores);

— Processos em curso — IPCA-E + juros de 1% ao mês (Lei 8.177/91, artigo 39) para o período pré-processual e taxa Selic (englobando juros e correção monetária) para o período processual.

Em suma, a Selic não substitui apenas a TR da correção monetária, mas também a TR dos juros, pois os engloba. Aqui residiu o calcanhar de Aquiles da decisão do TST sobre a inconstitucionalidade da TR, sem levar em consideração a relação umbilical, até no dispositivo de lei que a contemplava, entre juros e correção monetária, dispositivo esse, o artigo 39 da Lei 8.177/91, objeto também da ADC 58, ajuizada pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro.

Ao pensar nessa relação indissociável entre a correção monetária e os juros como elementos de um sistema equilibrado de compensação pelo não pagamento a tempo das obrigações contratuais, tal como congeminados na taxa Selic, concluo estas linhas lembrando da passagem de Chesterton em "Ortodoxia": "Com um puxão demorado e constante, tentamos tirar a mitra da cabeça do pontífice; e a cabeça dele veio junto com a mitra".

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