Opinião

A vacina de cidadania e os 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente

Autor

  • Carlos Nicodemos

    é advogado do NN-Advogados Associados membro do Conselho Nacional de Direitos Humanos e da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFOAB presidente da Comissão de Direito Internacional da OAB-RJ e integrante do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH).

22 de dezembro de 2020, 10h30

A decisão do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário, com agravo regimental, sob o número 1.267.879, de relatoria do ministro Roberto Barroso, envolvendo a possibilidade dos pais deixarem de vacinar os seus filhos, tendo como fundamento convicções filosóficas, religiosas, morais e existenciais, ganha especiais contornos comemorativos, especialmente em razão de estarmos completando em 2020 o aniversário de 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Temos a clássica e conhecida situação da ponderação de interesses constitucionais entre os direitos das crianças e adolescentes de um lado e a liberdade de religião ou pensamento do outro.

Na esteira dos direitos das crianças e adolescentes, sabemos que este grupo social goza de especial condição normativa ancorada num tripé jurídico que se define cronologicamente com a Convenção dos Direitos da Criança (CDC) da Organização das Nações Unidas, de 1989, na qual o Brasil foi o primeiro país a firmar o compromisso internacional; temos a Constituição Federal de 1988, que, através do artigo 227, coloca na República uma pedra fundamental para a cidadania infantojuvenil e o Estatuto da Criança e do Adolescente — Lei 8.069/90 —, que cumpre o papel de regulamentar nas diversas instâncias do poder público e nas esferas e dimensões da sociedade a condição de prioridade absoluta.

Ao tomar como referência a Convenção dos Direitos das Crianças da ONU, importante ressaltar o que aponta no seu início este tratado internacional, que foi incorporado juridicamente ao nosso ordenamento: "Artigo 3 — Todas as ações relativas à criança, sejam elas levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de assistência social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativo, devem considerar primordialmente o melhor interesse da criança(grifo nosso).

Ou seja, conforme se verifica, deverá prevalecer frente a qualquer outro interesse do Estado, o que for melhor para a criança e o adolescente.

No campo constitucional, o artigo 227 institui, através do princípio de cooperação para família, sociedade e o poder público, a condição da criança e do adolescente como prioridade absoluta. Vejamos: "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão" (grifo nosso).

E na derradeira medida de priorização dos contornos prioritários que ganhou a cidadania de crianças e adolescente no Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabeleceu no artigo 4º do seu texto normativo que: "Artigo 4º — É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude" (grifo nosso).

Como verificamos neste mosaico normativo acima, qualquer ponderação de interesses frente à criança e ao adolescente, sucumbirá a condição destes de serem prioritários em caráter absoluto, recaindo sobre eles a imperiosa proteção integral.

E quando tratamos da proteção integral, importante extrairmos do artigo 227 da Constituição Federal de 1988, este princípio (da proteção integral), como uma orientação ética e estética valorativamente no campo dos direitos humanos.

No conjunto dos direitos humanos consagrados pelo princípio da proteção integral, encontra-se a saúde, um direito social humano indissociável de outros direitos fundamentais como a vida e que dão contorno à dignidade da pessoa humana, preâmbulo institucional da República Federativa do Brasil no artigo 1º da Carta Política de 1988.

Na esteira deste entendimento, a saúde foi consagrada como direito humano pela nossa Constituição Federal, através do Artigo 6º, III, e no caso de crianças e adolescentes, a Lei 8.069/90 trouxe no artigo 7º do seu texto a garantia deste direito.

Assim, a alegação dos pais de A.C.P.C., no caso sentenciado pelo plenário do Supremo Tribunal Federal de que a vacinação violaria o artigo 5º, incisos VI, VIII e X, da Constituição Federal, em razão da criança ter sido acompanhada por pediatra e nutricionista periodicamente e que se encontra saudável e bem cuidada, além do fato de que a não vacinação não poderia ser considerada negligência, e sim excesso de zelo, e que esta era uma decisão que estava no campo do exercício do poder familiar, não encontra guarita em termos legais.

Como definiu o Supremo Tribunal Federal no julgamento conjunto com outras ações sobre a obrigatoriedade da vacina que vai enfrentar resolutivamente o coronavírus, a vacinação é obrigatória, em especial no caso de crianças e adolescente, implicando aos responsáveis legais, em caso de omissão, as responsabilidades atinentes no campo legal do exercício do poder familiar.

Ademais, temos no texto estatutário de forma cristalina no artigo 14 que: "O Sistema Único de Saúde promoverá programas de assistência médica e odontológica para a prevenção das enfermidades que ordinariamente afetam a população infantil, e campanhas de educação sanitária para pais, educadores e alunos. Parágrafo único. É obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias".

Logo, a vacinação contra o coronavírus para crianças e adolescentes é obrigatória e deve ser vista no contexto da responsabilidade dos pais ou daqueles que estejam no exercício do dever de guarda e proteção.

Temos então que, de acordo com a Lei 8.069/90, qualquer decisão dos pais ou responsáveis em não vacinar seus filhos no contexto do plano de imunização dos governos municipal, estadual e federal (neste caso se houver), poderá levar a configuração do que estabelece o artigo 98 do Estatuto da Criança e do Adolescente no que se refere a violação de direitos, senão vejamos: "Artigo 98 — As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta lei forem ameaçados ou violados: I. por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; II. por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; III. em razão de sua conduta" (grifo nosso).

Neste caso, caberá ao Conselho Tutelar em cada cidade, tomando conhecimento do fato da condição de não vacinação de crianças e adolescentes, por ação ou omissão, de forma deliberada ou não, instaurar procedimento administrativo e, no seu colegiado, adotar as medidas protetivas competentes, na forma dos artigos 101 c/c 136 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Na hipótese de persistência na negativa por parte dos pais e responsáveis em não vacinar a criança ou adolescente, fiam então autorizadas as medidas preconizadas no artigo 129, à luz dos artigos 23 e 24 da Lei 8.069/90, devendo ser representada à autoridade judiciária para considerações quanto às condições de permanência da guarda ou do exercício do poder familiar, analisando caso a caso.  

Assim, nos 30 anos do ECA, no limiar de encerramento de 2020, o Supremo Tribunal Federal presenteia a cidadania infantojuvenil no natal, assegurando no cenário da pandemia a vacinação das crianças e adolescente no Brasil, fazendo valer a proteção integral contra o negacionismo.

Autores

  • é advogado, membro da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFOAB, membro do MNDH, do Projeto Legal e do Morhan e ex-presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente (Conanda).

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