Trabalho Contemporâneo

Sobre Covid-19 e responsabilidade

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15 de dezembro de 2020, 8h03

Dia 10 de dezembro de 2020 será inesquecível para mim. A data seria apenas para alegria e comemoração, a celebração do matrimônio com a mulher que amo e com quem construí uma linda família, reunindo seis crianças, seis irmãos, que multiplicam o amor que sentimos a uma potência infinita.

No mesmo dia, entretanto, testamos positivo para a Covid-19, o que determinou o cancelamento do pequeno almoço em família e uma lua de mel em isolamento total, agradecendo a Deus por não estarmos com nenhum sintoma agudo, apenas o cansaço e a perda de olfato e paladar. Estamos bem.

A surpresa da contaminação produz um efeito interessante. Primeiro, a preocupação com os outros, avisando a todos que, de forma direta ou indireta, mantiveram algum contato conosco, além de fazer o teste na família e nas auxiliares que trabalham em nossa residência. Novamente agradecendo a Deus, apenas uma criança testou positivo, estando assintomática, ou seja, tudo indica que o vírus passará aqui em casa sem maiores danos.

Num segundo momento, passado o susto, começa a fase em que se tenta identificar de onde veio a contaminação, qual o momento provável em que o contato com o vírus aconteceu, uma espécie de tentativa de atribuição de responsabilidade a outrem pelo fato, negando que nossa própria conduta tenha produzido o resultado indesejado.

Nesse ponto, percebi que é natural ao ser humano olhar para fora buscando culpados, sempre se esquecendo de olhar primeiro para dentro. E que isso ocorre em todos os tipos de relação, inclusive na relação de emprego, no complexo vínculo que envolve empregados e empregadores.

Debatemos desde o início da pandemia se o empregador deve ou não ser responsabilizado por eventual contaminação de seus empregados, reconhecendo nexo causal e atribuindo natureza acidentária à Covid-19. Chegamos a ter norma específica sobre o tema, o artigo 29 da MP 927, cuja inconstitucionalidade foi reconhecida pelo STF (ADI 6342).

Passados vários meses do início da pandemia e do isolamento social, a que ponto chegamos? É ou não possível se estabelecer o nexo causal nos casos de contaminação pelo coronavírus com o trabalho? Há, hoje, algum estudo que possa realizar tal correlação?

Para iniciarmos a construção dessas respostas, necessitamos reconhecer que não há dispositivo em nosso ordenamento jurídico que vede a possibilidade de estabelecimento do nexo causal com o trabalho. A rigor, nem o prejudicado artigo 29 da MP 927 impediria, já que apenas determinava a distribuição do ônus da prova a favor do empregador.

De outra parte, igualmente precisamos admitir que não há norma específica estabelecendo o nexo causal entre a Covid-19 e o trabalho, nem mesmo uma que estabeleça presunção favorável ao trabalhador que pudesse afetar a distribuição do ônus da prova, valendo lembrar que estamos vivenciando um estado de pandemia desta nova doença.

O intérprete trabalhista poderia, então, imaginar estar frente a uma lacuna do Direito, que pede o uso dos recursos previstos em nosso ordenamento jurídico para superar o impasse. Vale lembrar que o artigo 140 do CPC determina que o juiz, diante de um caso lacunoso, profira decisão, não se eximindo de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico.

Ocorre que tal lacuna é facilmente preenchida pelo próprio sistema através do método da analogia, conforme determinado, na área trabalhista, pelo artigo 8º da CLT. Trata-se do recurso de uso de norma já existente para caso semelhante a fim de reger o caso lacunoso. E a semelhança, aqui, se dá com o já regulado pelo artigo 20, §1º, letra "d", da Lei 8213/91, que literalmente afasta do conceito de doença do trabalho "a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho".

Doença endêmica é aquela peculiar a um povo ou a uma região, cuja incidência decorre de fatores locais, como a dengue no Rio de Janeiro e em outros locais do país. Endemia não se confunde com epidemia, este termo sendo utilizado quando uma doença em curto período de tempo se espalha com grande número de casos. Finalmente, "o conceito moderno de pandemia é o de uma epidemia de grandes proporções, que se espalha a vários países e a mais de um continente", conforme as lições de Joffre Marcontes de Rezende ("Revista de Patologia Tropical", que pode ser acessada aqui).

Como dito, não é preciso muito esforço hermenêutico para se perceber que a regra geral sobre as doenças endêmicas prevista em nosso ordenamento jurídico presunção de inexistência de nexo causal deve ser transportada para as doenças pandêmicas, pois, se quando a doença é recorrente em determinado local ou determinado povo, o legislador entendeu por não estabelecer a presunção de nexo, o que se dirá quando a doença está totalmente fora de controle, contaminando em qualquer localidade e qualquer povo.

A regra a ser aplicada, portanto, e pelo método analógico, é da ausência de nexo, salvo prova em contrário, que, sem dúvida, ficará também em regra a cargo do trabalhador (artigo 818, I da CLT) por se tratar de fato constitutivo de seu direito.

Essa conclusão fica reforçada quando não se observa qualquer comprovação estatística de que o fator trabalho tenha alterado, para mais ou para menos, os níveis de contaminação, sequer existindo consenso oficial sobre o sucesso das políticas adotadas por cada esfera da administração no combate à doença.

Embora também não haja dados disponíveis para uma análise científica, a percepção empírica do aumento de casos neste final de ano indica que não foi a retomada do trabalho o principal fator. No Rio de Janeiro, onde vivo, o trabalho de forma geral foi retomado em agosto ou setembro e somente agora, em novembro e dezembro, os números voltaram a subir, o que indica ter sido o comportamento do cidadão e não necessariamente o trabalho o fator da disparada da nova onda de contaminação.

Claro que haverá casos de estabelecimento de nexo causal com o trabalho, bastando haver prova nesse sentido, até sendo possível a atribuição do encargo ao empregador, quando, por exemplo, a atividade faz presumir a contaminação (pessoal da saúde) ou quando o empregador não observar o dever de produzir um ambiente de trabalho saudável, fornecendo os equipamentos e produtos necessários para evitar a contaminação.

O que não podemos esquecer, conforme a dura lição que eu mesmo recebi, é que, antes de buscar a responsabilidade dos outros, precisamos admitir nossa própria parcela de culpa pelos resultados que colhemos. Se não tive a sorte de evitar a contaminação, que pelo menos tenha a humildade de entender uma lição.

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