Opinião

Os precatórios e a miséria nossa de cada dia

Autor

14 de dezembro de 2020, 17h36

O noticiário, estupefato, conclui que o país está no purgatório; outros, mais otimistas, afirmam que está morrendo, mas ainda não chegou lá. São termos usados ante a inépcia na condução da crise pandêmica, crise de vários matizes, um deles, a miséria material. Em todo o mundo as finanças públicas sofreram os revezes da contração econômica do momento. No Brasil, no entanto, não soubemos implementar reformas estruturantes que nos permitissem, agora, olhar de frente para os problemas que nos cercam. A gestão caótica que constatamos ganha contornos fantasiosos quando o ministro da Economia, no lugar de voltar seus esforços a por a economia no prumo, acusa, sabe-se lá quem, por uma chamada "indústria de precatórios", que, na sua visão, destruirá o país.

Trocando em miúdos, ao ministro parece que o fato de o Judiciário condenar o Estado a reparar lesão sofrida pelo particular e, assim, emitir ordem de pagamento, o chamado precatório, que põe o coitado do credor em lista de espera para ver seu direito satisfeito, constituiria uma "indústria" danosa à nação. E, ainda, a adimplência do Estado e sua subserviência às decisões judiciais o levaria à bancarrota.

Em todo o mundo e sob quaisquer circunstâncias, credibilidade, honradez e seriedade são virtudes consagradas àqueles — Estados, instituições e pessoas — que cumprem com suas obrigações em dia, furtando-se de transferir a terceiros a responsabilidade por suas condutas. Se o Estado agiu mal, se o particular sofreu um dano em razão dessa ação e se o mesmo Estado, por meio do Judiciário, reconheceu a existência dessa lesão, há um único caminho ao erário: cumprir a ordem judicial e reparar o mal feito.

O Estado, quando em litígio, conta com combativa advocacia a garantir a lhaneza de todo o processo que, se lhe condenar, dará origem ao precatório. Para além do privilégio de não pagar imediatamente a seu credor, mas, sim, pagar mediante precatório, o que pode implicar em até 18 meses de espera, as ações nas quais o Estado é parte ainda conta com a sempre bem-vinda vigilância do Ministério Público. Descabe, assim, após condenação final, ir, o Executivo, questionar a legitimidade de ordem emanada do Judiciário.

No canhestro esforço de conferir objetividade a seu discurso, o ministro Paulo Guedes sugere variação no volume de pagamentos que daria lastro a suas afirmações. Em suas palavras, "será que é razoável uma 'indústria de precatórios' que não existia e, de repente, aparece: R$ 15 bilhões em um ano; aí no governo seguinte pula para R$ 25 bilhões, R$ 30 bilhões, R$ 35 bilhões, R$ 40 bilhões?…".

Em primeiro lugar, essa sistemática privilegiada de pagamento conferida ao Estado, o precatório, existe entre nós há muitas décadas O Judiciário, soberano em sua competência, sempre condenou, se o direito do particular se mostrar hígido, o Estado e, dessa forma, expedição de precatórios sempre houve.

Em segundo lugar, variação nos volumes das condenações, sejam aquelas impostas ao erário, seja aqueles suportadas pelos particulares, também sempre houve. Para além de não haver novidade, essa oscilação, antes de legitimar qualquer desconfiança, tem origem na variação dos fatos e das circunstâncias que são enfrentadas por todos nós e, em consequência refletem nos valores atribuídos a vencidos e a vendedores. Danos causados pelo Estado atingem, em geral, um universo considerável de pessoas/instituições, a regra não é que o Estado prejudique só um ou outro cidadão. Em decorrência, essas ações, ajuizadas no mesmo período de tempo e concluídas quase concomitantemente, geram impacto a um só tempo no fluxo de condenações. Ademais, o Judiciário implementou vários mecanismos tendentes a superar crítica de morosidade que reiteradamente lhe é atribuída. Assim é que hoje funciona, paralelamente ao plenário de julgamentos do STF, o chamado plenário virtual, que só no ano de 2020 está dando conta de um volume de julgamentos que, antes dessa sistemática, consumiria 12 anos. É o que a ABDF chamou de "furacão tributário".

Em terceiro lugar, a oscilação de valores também opera em favor das burras estatais. É assim que, durante o furacão tributário, o contribuinte passou a experimentar, em matéria fiscal, um índice de derrotas até então desconhecido. O empate que sempre marcou a disputa com o Fisco, passou a oferecer um placar de 80 a 20 a favor do Estado. É preciso, assim, para atribuir validade à afirmação, medir também o índice de vitórias que impedem o crescimento do saldo devido pelo Estado.

Em quarto lugar, os dados oficiais refutam a "acusação" de aumento vertiginoso nos valores objeto de precatório. Levantamento realizado pelo Conselho da Justiça Federal indica que — excluídos os RPVs, títulos de baixo valor e usualmente destinados à subsistência dos credores — a curva de crescimento das dívidas Judiciais tem se dado de maneira estável (e não exponencial) desde 2013. Exceção feita ao ano de 2019, em que efetivamente o aumento foi mais significativo, destacando-se, contudo, que em 2020 houve queda dessa despesa.

Essa série de equívocos já levou a indignação anterior, do ex-ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega, demonstrando a falta de compromisso com a realidade e, sobretudo, com a estrutura de um Estado de Direito, no qual um poder deve, se não em respeito à Constituição, ao menos em respeito a seus cidadãos, nunca invadir competência exclusiva de outro, como o é a competência do Judiciário de condenar ou não o Estado.

É sob o alerta de Ana Arendt, para quem o "mal é um fenômeno superficial", é que conclamamos a um estudo um pouco mais detido do tema, para que possamos ter esperanças de que os esforços serão voltados a garantir meios de superação da miséria a que hoje nos vemos condenados. Não esperamos por milagres — ainda que acreditemos neles —, mas, ao menos, que o Executivo, no lugar de atacar o Judiciário, procure fazer sua parte.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!