Opinião

Persistem os problemas de abordagem penal em relação ao bitcoin

Autores

  • Gamil Föppel

    é advogado professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) pós doutor em Direito Penal pela USP doutor em Direito pela UFPE e membro das comissões de Reforma da Lei de Lavagem de Dinheiro do Código Penal e da Lei de Execução Penal nomeado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado.

  • Yuri Rangel

    é advogado criminalista especialista em Direito Penal Econômico pela USP pós-graduando em Ciências Criminais pela USP e membro associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

31 de agosto de 2020, 6h34

Falar e escrever sobre bitcoin, há não muito tempo, era uma tarefa adstrita aos curiosos, especuladores e talvez até porta-vozes de algum esquema de pirâmide financeira. Hoje, na medida em que os criptoativos chamam, cada vez mais, atenção, o interesse, outrora limitado às classes supramencionadas, passou a se difundir e a criar, entre os integrantes do sistema de Justiça criminal, uma espécie de onda teórica, na qual muitos dos que nela surfam falam sobre, porém poucos enfrentam, com ponderada racionalidade jurídica, o tema.

Dizia Renato de Mello Jorge Silveira [1], com a conhecida lucidez que nele faz morada, que há, em torno das criptomoedas, três gerações problemáticas de abordagem penal: a primeira delas, entre 2009 e 2010, quando a Polícia Federal ainda tinha severas dúvidas sobre a noção de dinheiro virtual e o misturava ao conceito de moeda falsa; a segunda, em suma, ligada à ideia de estelionato; e a terceira, a qual estamos insertos, seria formada pela relação das moedas virtuais com as noções de evasão de divisas, sonegação fiscal e lavagem de dinheiro. Arriscar-se-ia, nesse contexto, pedir vênias para sugerir a existência de uma quarta — e perigosa geração: a do invencionismo abstrato.

Tem-se, desde os primórdios da história, que, em um terreno pouco ou nada explorado, quem chega primeiro costuma ditar o ritmo do plantio, do cultivo e das colheitas. Isso poderia funcionar em qualquer área fértil. Mas não no Direito Penal. Uma coisa é reinterpretar os tipos penais, sob pena de esvaziamento da proteção do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora. Outra, completamente distinta, é tentar reescrevê-los, relacionando-se, por analogia, à tarefa de finalizar um quebra-cabeça que está faltando uma peça. Ou melhor: várias.

Quando o assunto é bitcoin, há uma inequívoca ânsia em regulamentar o que é desconhecido, mesmo que, para isso, se atropelem princípios penais, ignorando elementares do crime como se de enfeite estivessem. Tentou-se com a lavagem de dinheiro, ignorando o requisito de um delito antecedente, tentou-se com a sonegação fiscal, exigindo-se a comunicação de transações insignificantes, e, por último, tentou-se com a evasão de divisas, fechando os olhos aos conceitos de divisa e depósito. A criatividade é tamanha que, inclusive, inventou-se uma nova terminologia: a do bitcoin-cabo.

Conceituando os limites que gravitam em torno do que se entende por dólar-cabo, o Supremo Tribunal Federal, na Ação Penal 470, compreendeu que:

"Por conseguinte, mesmo aceitando-se a alegação de que os depósitos em conta no exterior teriam sido feitos mediante as chamadas operações 'dólar-cabo', aquele que efetua pagamento em reais no Brasil, com o objetivo de disponibilizar, através do outro que recebeu tal pagamento, o respectivo montante em moeda estrangeira no exterior, também incorre no ilícito de evasão de divisas". (STF, Tribunal Pleno, Rel. Joaquim Barbosa, j. 17/12/2002).

Vê-se, a partir do momento em que se estabelece a imprescindibilidade de uma moeda estrangeira para concretização do tipo, que não há ao contrário da reputada linha argumentativa adotada pelo insigne Leandro Bastos Nunes [2] como encampar o bitcoin no mesmo hall que se localiza o dólar-cabo ou o euro-cabo. Primeiro pelo fato de que os criptoativos não são moedas, não têm curso forçado e, como tal, não são sequer reconhecidos pelo Banco Central do Brasil, inexistindo qualquer vinculação às instituições financeiras e aos entes do Sistema Financeiro Nacional. E, em segundo plano, além de não ser moeda, o bitcoin sequer pode ser catalogado como estrangeiro, máxime porque os criptoativos, por existirem num plano virtual, não obedecem a fronteiras nacionais, mas, sim, sobrepairam a essas [3].

Forçoso reconhecer, ainda, que não haveria razão para a existência de um "doleiro" que intermediasse o câmbio entre os criptoativos, vez que a transferência de propriedade ocorre a um custo virtualmente nulo esvaziando, nesse aspecto, a procura por meios alternativos de compensação e sem depender de um terceiro intermediário, haja vista que são os usuários, sem a participação de quaisquer autoridades públicas, quem gerenciam todo o sistema. Titubeantes estariam, por conseguinte, os alicerces que servem de sustentação aos argumentos categoricamente trazidos com a seriedade que lhe é inerente por Leandro Bastos Nunes, no qualificado artigo que deu ensejo a essa respeitosa réplica, e que, por autêntico incentivo ao debate, estão sendo aqui abalizados.

A rigor, mesmo nos casos em que as negociações são feitas por moedas reconhecidas pelo Banco Central, sequer há operação de câmbio. Há, em verdade, uma transferência de quantias aqui e a percepção de valores, enquanto conclusão do ato, estaria no estrangeiro. Malgrado o Supremo Tribunal Federal entenda que a operação dólar-cabo atue como uma forma escamoteada de promover evasão de divisas, numa análise de tipicidade fechada, os valores sequer saíram do Brasil. Se já há, no caso do dólar-cabo, uma situação que propicia a perigosa reinterpretação de tipos penais mal escritos, a mesma problemática persiste, com ainda mais intensidade, no bitcoin-cabo.

É de todo imprescindível asseverar, portanto, que, se não há como sequer enxergar o bitcoin como uma equiparação ao conceito de divisa ou depósito, não há, por consequência, como observar a consumação do crime de evasão de divisas, mesmo quando o criptoativo tiver sido utilizado para o intermédio de câmbio. O princípio da legalidade serve ou, ao menos em tese, serviria para obstar, justamente, qualquer grau de interpretação extensiva quando a norma incriminadora assim não dispuser.

Imperioso suscitar, nesse ínterim, o conflito de competência julgado, à unanimidade, pelo Superior Tribunal de Justiça [4] que, em síntese, reconhece o prosseguimento das investigações, em caso envolvendo criptomoedas, no âmbito da Justiça Estadual pelo fato de existirem indícios da prática de estelionato. Seria esse um julgado qualquer, não fosse pela escassez jurisprudencial que gravita em torno das criptomoedas e pela noção de que, ao ser aventada a hipótese de incidência do artigo 171 do Código Penal, extrai-se uma importante noção: a inequívoca licitude do objeto, qual seja, nesse caso, o bitcoin, fulminando toda e qualquer tentativa de enxergá-lo, per se, como um instrumento criminoso.

Consoante advertido em artigo anterior sobre o mesmo tema [5], não se trata, aqui, de uma ode à impunidade dos atos ilícitos que, por ventura, venham a ser praticados por meio dos criptoativos. Ao revés: trata-se, em verdade, de um clamor para que sejam cessadas as incongruentes tentativas de criminalização que, conforme visto, carecem de racionalidade jurídica, fomentando o debate e cedendo espaço para que uma nova regulamentação, capaz de compreender as particularidades das criptomoedas, possa emergir e oferecer, com maior lucidez, uma proteção aos bens jurídicos atingidos pelo mau uso dos ativos digitais criptografados.

Os problemas de abordagem penal em relação ao bitcoin persistem e, pior, as soluções apontadas miram no sintoma, ao invés de avaliarem a causa. No Direito Penal e na vida, antecipar-se às intempéries nos reservam chances maiores de resolução. Como bem compreendia Henrique Gimbernat Ordeig [6], uma das principais funções da dogmática e da tipicidade é a de antever a jurisprudência, jogando o tipo penal numa necessária projeção para o futuro, traçando adiantados contornos de como o julgador vai, possivelmente, interpretá-lo. Quando os tipos penais perdem o grau de certeza, as funções de garantia, automaticamente, se perdem. E, ao contrário do que alguns pensam, tais funções, quando perdidas, não são achadas em invencionismos abstratos, que tentam reescrever as normas penais como se rascunhos de pouca importância fossem. Porque não são.

P.S.: Respeitosa réplica ao artigo "A utilização do bitcoin-cabo na condição de meio para configuração do crime de evasão de divisas", escrito pelo procurador da República e professor Leandro Bastos Nunes, disponível em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/54958/a-utilizao-do-bitcoin-cabo-na-condio-de-meio-para-configurao-do-crime-de-evaso-de-divisas.

 

[1] LEITE, José Antonio. IASP discute limites e vantagens das criptomoedas, seus desafios e formas de prevenção contra crimes. IASP, São Paulo, 5 mar. 2020. Disponível em: https://www.iasp.org.br/2020/03/05/iasp-discutelimites-e-vantagens-das-criptomoedas-seus-desafios-e-formas-de-prevencao-contra-crimes/. Acesso em: 14 ago. 2020.

[2] NUNES, Leandro Bastos. A utilização do bitcoin-cabo na condição de meio para configuração do crime de evasão de divisas. Conteudo Juridico, Brasilia-DF, 17 ago. 2020. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/54958/a-utilizao-do-bitcoin-cabo-na-condio-de-meio-para-configurao-do-crime-de-evaso-de-divisas. Acesso em: 14 ago 2020

[3] FELICIANO, Yuri Rangel Sales. Bitcoin e o trilema penal econômico: a (im)prescindibilidade de uma regulação internacional. IN: Revista de Direito Penal Econômico e Compliance – Vol. 2. São Paulo: RT, 2020, p. 155-184.

[4] CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. INQUÉRITO POLICIAL. JUSTIÇA ESTADUAL E JUSTIÇA FEDERAL. INVESTIGADO QUE ATUAVA COMO TRADER DE CRIPTOMOEDA (BITCOIN), OFERECENDO RENTABILIDADE FIXA AOS INVESTIDORES. INVESTIGAÇÃO INICIADA PARA APURAR OS CRIMES TIPIFICADOS NOS ARTS. 7º, II, DA LEI N. 7.492/1986, 1º DA LEI N. 9.613/1998 E 27-E DA LEI N. 6.385/1976. MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL QUE CONCLUIU PELA EXISTÊNCIA DE INDÍCIOS DE OUTROS CRIMES FEDERAIS (EVASÃO DE DIVISAS, SONEGAÇÃO FISCAL E MOVIMENTAÇÃO DE RECURSO OU VALOR PARALELAMENTE À CONTABILIDADE EXIGIDA PELA LEGISLAÇÃO). INEXISTÊNCIA. OPERAÇÃO QUE NÃO ESTÁ REGULADA PELO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO. BITCOIN QUE NÃO TEM NATUREZA DE MOEDA NEM VALOR MOBILIÁRIO. INFORMAÇÃO DO BANCO CENTRAL DO BRASIL (BCB) E DA COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS (CVM). INVESTIGAÇÃO QUE DEVE PROSSEGUIR, POR ORA, NA JUSTIÇA ESTADUAL, PARA APURAÇÃO DE OUTROS CRIMES, INCLUSIVE DE ESTELIONATO E CONTRA A ECONOMIA POPULAR. (STJ, CC-161123, Rel. Sebastião Reis Junior, 3ª Seção, DJE 05/12/2018).

[5] HIRECHE, Gamil Föppel El; FELICIANO, Yuri Rangel Sales. Bitcoin não é moeda, nem divisa. Revista Consultor Jurídico, 30 jun. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jun-30/foppel-rangel-bitcoin-nao-moeda-nem-divisa. Acesso em: 14 ago. 2020.

[6] ORDEIG, Henrique Gimbernat. ¿Tiene un futuro la dogmatica juridicopenal? IN: Problemas actuales de Derecho penal y procesal, Salamanca, 1971, págs. 15.

Autores

  • é advogado, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro das comissões de Reforma do Código Penal e da Lei de Execução Penal, nomeado pelo Senado Federal.

  • é advogado criminalista, especialista em Direito Penal Econômico pela USP, pós-graduando em Ciências Criminais pela USP e membro associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

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