Embargos Culturais

Raymundo Faoro, os donos do poder e o pecado original de nossa condição

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

30 de agosto de 2020, 8h00

Spacca
É preciso estudarmos os autores brasileiros. Raymundo Faoro (1925-2003) deixou-nos uma proposta para interpretação do Brasil. Em “Os donos do poder-formação do patronato político brasileiro” Faoro sustentou que os portugueses transportaram para o Brasil um estamento burocrático que se assenhorou do Estado, de suas instituições e principalmente de seus recursos. Faoro apresentou-nos uma concepção patrimonialista de Estado e de cultura, e de algum modo converge com outros intérpretes do Brasil, a exemplo de Sérgio Buarque de Holanda e de Roberto DaMatta. Entre seus opositores, no entanto, Jessé Souza, para quem Faoro teria utilizado de forma seletiva conceitos de patrimonialismo enunciados na obra de Max Weber. Não é bem assim, afirma Jessé.

Faoro, filho de imigrantes italianos (por isso a pronúncia Fauro) advogou no Rio de Janeiro, foi Procurador do Estado, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil e notabilizou-se como publicista erudito e combativo. Fez oposição à ditadura (a favor do habeas corpus) e lutou pela Constituinte em 1987, que pretendia exclusiva. Politicamente muito ativo, foi cogitado para disputar a vice-presidência nas eleições de 1989, na chapa do Partido dos Trabalhadores. Ainda que também tenha escrito crítica literária (A pirâmide e o trapézio, sobre Machado de Assis) Faoro é jurista de formação. Há, nesse sentido, uma visão normativa e analítica em sua obra. Argumento que os “Os donos do poder” seja também um livro precioso de história do direito. É bem assim, afirmo.

A primeira edição é de 1958, bem menor que as posteriores (menos de 300 páginas). Não há notícias de que tenha sido recebida com algum entusiasmo. Os livros refletem seus tempos e sintonias ideológicas. Ao argumento de que o mercado seria virtuoso e o Estado marcado pelo pecado original do conchavo, a realidade de 1958 respondia com o entusiasmo pela intervenção governamental, de que JK e o otimismo com Brasília e com a industrialização via substituição de importações eram manifestações contundentes. Consta que Faoro pretendia o título “A formação do patronato político brasileiro”, tão somente, pelo que “Os donos do poder”, seguia sugestão editorial. O nome pegou, ainda que o patrimonialismo seja imediatamente identificado no título original, isto é, trata-se de um livro sobre o “patronato político” brasileiro.

A partir da segunda edição, bem mais ampliada (1975, mais de 700 páginas) “Os donos do poder” alcança a posição de “clássico de nossa literatura política”. Em 1958 tem-se a impressão que sociedade e Estado não se opunham tão emblematicamente, a contrário do que ocorria em 1975. Ao indicar um servidor público que se entendia como proprietário dos meios de coerção administrativa o livro de Faoro tornou-se uma reserva moral e conceitual para o pensamento liberal. Sugiro, a leitura de Faoro pode ser seguida pela leitura de José Guilherme Merquior (O liberalismo antigo e moderno, originalmente em inglês, no fim dos anos 80), bem como pelo monumento de memórias de Roberto Campos (Lanterna na popa).

O encontro (ou o reencontro, o livro é um clássico, e clássicos nunca são lidos, são relidos) com Faoro sugere o enfrentamento de algumas questões: nossas mazelas predicariam, de fato, na herança portuguesa? Qual o conceito de patrimonialismo em Faoro? Há identidade com o conceito enunciado por Weber, ainda que em outro contexto? Pode-se mesmo opor um mercado virtuoso a um Estado pecaminoso? Até que ponto transportamos nossas instituições jurídicas do direito arcaico português?

O livro é dividido em 16 capítulos, lineares, que transitam das origens do Estado Português ao período de Vargas. No capítulo final, “Viagem redonda: do patrimonialismo ao estamento”, Faoro consolida o argumento central, que traduz pela metáfora do vinho novo nos odres velhos. Isto é, os arranjos institucionais presentes apenas reiterariam as fórmulas estamentais e patrimoniais construídas no contexto da formação do estado português.

Para Faoro a guerra fundamentou a ascensão de uma dinastia originária portuguesa, com a qual se confundia toda a propriedade disponível no Reino. O direito romano surgia como o fundamento ideológico, normativo e organizacional dessa empreitada. Obviamente, tem-se um acolhimento meramente seletivo da ordem antiga. Os conceitos de município, municipalidade e concelho municipal, adaptados pela monarquia na luta contra a nobreza, seriam, na visão de Faoro, tomados diretamente da tradição jurídica romana.

O argumento é vigoroso, e pode ser sustentado por Marcelo Caetano (jurista português ligado a Salazar que viveu no Brasil). Exemplificando com o Concelho de Lisboa, Caetano explica-nos que os funcionários do rei controlavam a vida na cidade. O “mordomo” tratava dos interesses fiscais, o “alcaide” comandava as tropas e julgava os respectivos pleitos que havia[1]. A monarquia valeu-se do domínio sobre os concelhos para impor-se junto ao clero e a nobreza.

Em “Os donos do poder” tem-se uma ênfase nas raízes portuguesas na formação política brasileira. Creio que esse argumento também pode ser sustentado por Lilia Moritz Schwartz, para quem “as instituições que existiam em Portugal foram transplantadas para o Brasil, com o mesmo espírito de rotina burocrática”[2]. Nas primeiras páginas do livro Faoro parece um entusiasta de Portugal, posição da qual se afasta ao longo do argumento. Faoro insistiu que os reis portugueses entenderam a importância da jurisdição como instrumento de poder, pelo que a aliança com os juristas parecia imprescindível.

Fundamentalmente (e aqui o núcleo do argumento) não se concebia uma distinção entre as rendas particulares do rei e as rendas de atribuição do Estado. Na linguagem da ciência das finanças, percebe-se que não havia distinção entre Erário e Fisco, expressões que tomamos por sinônimas, o que revelaria uma compreensão inconsciente do patrimonialismo.

Para Faoro, não houve feudalismo em Portugal, porquanto barões seriam funcionários do rei, e não senhores locais. Penso que se inspirou na tese de Alexandre Herculano, historiador português. Faoro estudou Herculano. No catálogo da biblioteca de Faoro, hoje na Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro, comprova-se que Faoro possuía os livros desse importante autor de Portugal. No Estado patrimonial o rei é o dono de tudo, enquanto que na ordem feudal a nobreza é quem tudo detém.

Esse argumento, no entanto, parece-me, não é sustentado pela historiografia portuguesa. Ao que consta o regime senhorial e as relações feudo-vassálicas teriam ocorrido em Portugal, no contexto das “honras e coutos”, com atritos frequentes de disputa pela jurisdição, que redundaram em guerras frequentes[3]. Esse tema nos interessa de perto. É que a questão pode ser transposta para nossa trajetória, isto é, houve feudalismo no Brasil.? Faoro nega. Oliveira Vianna, bem antes, sustentava o contrário[4].

Faoro radica o reino português no estado permanente de guerra. Em uma época na qual as rendas eram todas do solo, o rei era o único senhor da terra. Seu patrimônio, assim, consistia em seu vasto reino. Além do que, a Coroa herdava o patrimônio de quem falecia sem deixar herdeiros, um arranjo institucional que segue na tradição do direito privado até hoje, com alguma variação de pormenor. Os cargos que havia dependiam totalmente da escolha régia. O rei mantinha a jurisdição e praticava a voracidade fiscal. Conta Faoro que das prostitutas era cobrado um soldo mensal, em troca da autorização para exercício da profissão. O rei cobrava tributos com nomes hoje bizarros, a exemplo de alcavalas, portagens, almocreverias e fintas. A cobrança era privatizada, mediante arrendamento. O rei adiantava-se nos direitos que se atribuía. Esse modelo foi reproduzido no Brasil colônia.

Terras e tesouro do rei se confundiam em seus aspectos públicos e particulares. O rei explorava diretamente por meio da cobrança de corveias e talhas (trabalho e produção) e explorava indiretamente por meio de arrendamentos de terra (temporários) ou pela oferta do domínio útil do solo (permanente e transmissível). O Estado era uma empresa do príncipe. Tem-se, na perspectiva do autor, um paleocapitalismo dirigido pelo Estado. Não haveria sentido na distinção entre público e privado.

Para Jessé Souza, Faoro pretendia demonstrar um suposto caráter patrimonialista no Estado brasileiro, circunstância que radicaria na experiência medieval portuguesa. Reconhecendo a narrativa de Faoro como elegante e erudita Jessé Souza, porém, insistiu que haveria desacertos na aplicação do conceito de patrimonialismo à realidade brasileira[5]. Veremos o argumento em intervenção futura, no tempo devido. Há muito que se pensar sobre os “O donos do Poder”.

Faoro percebeu o soberano português como senhor do Estado, proprietário de todas as pessoas e bens no Reino. Os juristas do rei teriam construído as colunas desse Estado no direito romano, cujo racionalismo formal e as codificações tardias disciplinavam a ação política. De toda a produção de uma monarquia até então agrária o rei seria um poderoso sócio e patrão, isto é, “tosquia a melhor lã, submetendo o proprietário nominal à missão de cuidar da ovelha”.

Nesse Estado dito patrimonialista a contabilidade pública é atrabiliária. Rendas e despesas reais se confundem, não há discriminação precisa. Gastos de família e gastos em obras e serviços de utilidade pública não se diferenciariam. O Estado subordina integralmente a esfera privada. Radicaria nessa premissa a lógica da troca de favores, que se mostraria como o pecado original de nossa condição. Na linguagem metafórica de Faoro, trata-se do êxito da caça ao tigre por meio da lebre. É esse Estado que fora transposto para o Brasil, do que as Ordenações Filipinas (vigente em direito privado até 1916) seria a maior prova normativa. A transposição para o Brasil de um Estado no qual se confundiam Fisco e Erário, público e privado, seria, nessa interpretação, o nosso pecado original.


[1] CAETANO, Marcello, História do Direito Português (1140-1495), Lisboa: Verbo, 1985, pp. 219 e ss.

[2] SCHWARTZ, Lilia Moritz, Sobre o autoritarismo brasileiro, São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 72.

[3] RAMOS, Rui (coordenador), História de Portugal, Lisboa: A Esfera dos Livros, 2009, p. 65.

[4] VIANNA, Oliveira, Instituições Políticas Brasileiras (vol. 1), Belo Horizonte: Itatiaia, 1987, pp. 161 e ss.5

[5] SOUZA, Jessé, A Elite do atraso, Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019.

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