Opinião

E se a Lei de Drogas fosse alterada para definir com exatidão quem é usuário...

Autor

  • Thiago Hygino Knopp

    é especialista em Criminologia Direito e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes advogado criminalista com foco em casos de consumo pessoal e tráfico de drogas. Editor do blog pergunteaocriminalista.com.br.

27 de agosto de 2020, 6h34

A atual Lei de Drogas brasileira (nº 11.343/2006) diferencia o usuário do traficante inspirada em um modelo médico-jurídico, considerando o consumidor de drogas ilícitas como dependente e o produtor/comerciante como criminoso, com reflexo no tratamento legal das condutas.

Para o usuário, nesse sentido, adotam-se medidas preventivas quanto ao uso daquelas substâncias, enquanto que sobre o traficante recai a repressão do sistema de Justiça criminal, com rigor punitivo pela produção e/ou comercialização de drogas arbitrariamente proibidas no território nacional.

Ocorre que adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar são ações que podem configurar o crime de porte para consumo pessoal (artigo 28) ou o de tráfico de entorpecentes (artigo 33).

As sanções, porém, são diferentes: medidas alternativas para o usuário (advertência sobre os efeitos das drogas; prestação de serviços à comunidade; e/ou medida alternativa de comparecimento a programa ou curso educativo) e reclusão de cinco a 15 anos e multa para o traficante, bem como a equiparação de sua conduta aos crimes hediondos, com todas as consequências daí advindas (maior tempo de cumprimento de pena para progredir de regime e obter livramento condicional, impossibilidade de concessão de indulto etc.).

Daí a importância de se realizar o adequado enquadramento típico da conduta do usuário, ou seja, aquele que adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou traz consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

O legislador, para tanto, adotou o sistema do reconhecimento judicial ou policial, cabendo ao juiz ou à autoridade policial analisar cada caso concreto e decidir se a droga apreendida era para destinação pessoal ou tráfico (Gomes, 2013, p. 147).

A Lei nº 11.343/2006, nesse sentido, estabelece uma série de critérios, vejamos: "Artigo 28  (…) §2º. Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente".

Ao contrário de países como Portugal, que estabelece quantidades exatas para que o porte de drogas seja considerado para consumo pessoal (no caso da maconha, por exemplo, é levado em consideração o consumo da substância pelo período de dez dias, ou seja, 25 gramas), no Brasil, por outro lado, não há previsão legal de uma quantidade determinada de drogas para distinguir o usuário do traficante.

Em outras palavras, incumbe ao juiz analisar as circunstâncias fáticas do caso concreto e decidir se se trata de porte de drogas para consumo pessoal ou tráfico (Lima, 2020, p. 1030).

Mas suponhamos que se defina no Brasil quantidade máxima de drogas para configuração do porte para consumo pessoal, seja através de alteração legislativa ou tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal quando da conclusão do julgamento do RE nº 635.659/SP, relator ministro Gilmar Mendes, em que se discute, à luz do artigo 5º, X, da Constituição Federal, a compatibilidade, ou não, do artigo 28 com os princípios constitucionais da intimidade e da vida privada.

Nesse cenário, o sujeito surpreendido portando drogas até aquele limite objetivo seria considerado usuário e responderia pelo artigo 28 da Lei de Drogas.

O problema surgirá quando a prisão ocorrer em razão do porte de substâncias ilícitas em quantidades maiores que as indicativas de consumo pessoal…

E agora, responderia o agente por tráfico de drogas (artigo 33)?

Pensar assim aumentaria o espectro de punição por tráfico de entorpecentes, com impacto ainda maior no estado de coisas inconstitucional que é o sistema penitenciário brasileiro, ao contrário do que se imaginava ao estabelecer critério objetivo para a distinção das condutas do usuário e do "traficante". ⁣⁣

Acreditamos, portanto, que a finalidade atualmente exigida pelo artigo 28 ("para consumo pessoal") é que definirá o enquadramento típico do comportamento, independentemente da quantidade (Carvalho, 2013. p. 333).

O critério objetivo serviria, nesse caso, como limite às agências de criminalização secundária ao realizarem a subsunção típica, de modo que até aquela quantidade máxima inadmissível a imputação do crime de tráfico de drogas (o que, é bem verdade, poderia criar uma espécie de tráfico ilícito "formiguinha", com comerciantes portando quantidades até o limite permitido para a identificação como usuário a fim de evitar a criminalização sob o rótulo de traficante…).

Ultrapassada, porém, essa definição legislativa ou jurisprudencial objetiva, imprescindível a análise do elemento subjetivo do tipo ("para consumo pessoal"), de modo a se concluir ou não pela prática do crime de porte de drogas para uso próprio.

Raciocínio semelhante, a propósito, poderia ser realizado nos casos em que houvesse a descriminalização do porte de drogas para quantidades previamente estabelecidas.

 

Referências Bibliográficas
CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 6ª. Edição. São Paulo: Saraiva, 2013.

GOMES, Luiz Flávio. Lei de Drogas Comentada. 5ª. Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. 8ª. Edição. Bahia: Juspodivm, 2020.

Autores

  • é especialista em Criminologia, Direito e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes. Advogado Criminalista com foco em casos de consumo pessoal e tráfico de drogas. Editor do blog pergunteaocriminalista.com.br.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!