Opinião

Notas sobre proteção de dados, prova digital e o devido processo penal — parte II

Autor

  • Geraldo Prado

    é investigador do Instituto de Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e do Ratio Legis — Centro de Investigação de Desenvolvimento em Ciências Jurídicas da Universidade Autónoma de Lisboa professor visitante da Universidade Autónoma de Lisboa advogado criminal e autor de livros e artigos sobre processo penal.

25 de agosto de 2020, 21h25

Continuação da parte I

Na sequência das notas sobre proteção de dados, prova digital e devido processo penal, relativamente à comunicação de 10 de julho passado, por ocasião do VI do Seminário Internacional: "Proteção de dados pessoais na segurança pública e investigação criminal", realizado no âmbito da Câmara dos Deputados do Congresso Nacional Brasileiro, apresentam-se considerações atualizadas a respeito de preditividade e controle social.

O processo penal e as práticas de segurança pública no mundo digital: preditividade e controle social
1) No mencionado contexto, a redefinição dos limites da disciplina Processo Penal implica considerar ao menos três aspectos que merecem ser avaliados em conjunto com os temas estruturantes tradicionais:

a) O "policiamento preditivo" [1]. O policiamento preditivo avança sobre as técnicas de investigação não apenas em função da possibilidade de aplicação da inteligência artificial, mas pela admissão na prática de que, por exemplo, a feição preventiva tradicional das cautelares processuais penais possa ser modificada para dar lugar ao modelo de preventividade do cometimento de delitos, confundindo técnicas e objetivos a ponto de levar o processo penal à encruzilhada entre método de hipervigilância e técnica de garantia da liberdade. O caráter preventivo das cautelares está relacionado à proteção das provas e salvaguarda de um resultado proveitoso de um virtual processo criminal, tutelas que podem correr perigo em virtude do mau uso da liberdade pelo investigado ou acusado. O caráter preventivo associado à segurança pública, no entanto, é de outra ordem e está associado à ideia de evitar a prática de crimes em determinados lugares e em precisas circunstâncias;

b) Os embates relativos à extraterritorialidade das normativas. A característica evidentemente transfronteiriça do uso trivial das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) provoca reações normativas, ora de defesa das soberanias estatais, no âmbito das quais situam-se os poderes judiciários, MPs e polícias — como na hipótese do Cloud Act [2] —, ora de harmonização multinível, como na Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo às ordens europeias de entrega ou de conservação de provas eletrônicas em matéria penal [3];

c) A redefinição dos sujeitos do processo penal. O papel desempenhado pelos sujeitos privados no processo penal — ao lado de polícia, MP, defesa e juiz — com as grandes corporações de mídia social convertendo-se em players decisivos na gestão das condições concretas de autodeterminação informativa, proteção da segurança e cooperação nas investigações e processos criminais, altera sobremaneira a lógica de funcionamento do sistema e afeta a capacidade de intervenção dos agentes públicos.

2) O sistema social intricado e dinâmico, típico do mundo digital, projeta esse mesmo dinamismo e complexidade no subsistema processual penal, e, claro, influencia as matérias que devem ser reguladas em um Código de Processo Penal contemporâneo.

O atravessamento dos procedimentos de apuração da infração penal e sua autoria por práticas de policiamento preditivo, como referido na alínea "a" supra, por certo é um exemplo significativo de como a combinação entre o "fetiche da prova técnica" [4] e o controle social de insubmissos, dissidentes e vulneráveis potencializa a marginalização ilegítima de segmentos expressivos em todas as comunidades.

Os "algoritmos" cumprem a missão que no passado recente, nos sistemas de justiça criminal ainda inspirados na ontologia aristotélico-tomista, era desempenhada pela arcaica noção de "verdade real", a um tempo determinando a realidade (como signo de conhecimento atual, vivo) e revelando o passado (a infração penal a que os sujeitos do processo em geral não tiveram acesso diretamente). Passado e presente fundem-se na fórmula resultante da aplicação das TICs de modo semelhante ao que ocorria, ilusoriamente, com a convicção de que as sentenças criminais determinavam a "verdade real".

Trata-se de um processo — em sentido vulgar — de presentificação do passado e do futuro. Na imaginação, passado e o futuro são atraídos para o presente. Os dispositivos de inteligência artificial hipoteticamente, por meio do tratamento massivo de dados e da produção de "relatórios especiais", estabelecem cenários prováveis de acontecimentos passados e preveem, por igual, supostamente, com certo grau de probabilidade, eventos futuros.

Mais uma vez experimenta-se uma sorte de ilusão semelhante àquela, quando em 1215, no IV Concílio de Latrão, Inocêncio III supôs que racionalidade inspiradora do modelo inquisitório corrigiria os defeitos inerentes às (há tempo praticamente abandonadas) ordálias [5].

A crença na capacidade dos algoritmos de entregarem a verdade ignora a advertência de Levy a respeito do funcionamento do processo penal inquisitorial no continente europeu:

"Em suma, 'Abandonai toda a esperança, vós que entrais' melhor descreveu as chances de uma pessoa acusada sob o sistema inquisitorial de processo penal que operou ao longo do continente" [6].

Sobre o fetiche tecnológico que imbrica essas distintas funções — prevenção e apuração de delitos —, cabe considerar ainda com maior atenção a advertência de Shoshana Zuboff que, investigando os processos de hipervigilância em curso, rastreia até as formas avançadas do capitalismo o desenvolvimento e emprego das tecnologias de informação e comunicação digitais por corporações privadas e governos.

A convergência de sofisticadas tecnologias transformou os dispositivos digitais em ferramentas de controle social altamente precisas, mas também manipuláveis e opacas, que se escoram no uso disseminado das redes sociais para viabilizar a constituição e dominação de mercados. Sublinha Zuboff:

"O capitalismo de vigilância reivindica unilateralmente a experiência humana como matéria-prima gratuita para tradução em dados comportamentais" [7].

O caráter manipulável e a opacidade dessas ferramentas encobrem decisões políticas e técnicas de seres humanos concretos que no âmbito dos sistemas complexos e dinâmicos são aqueles que detêm o poder de delimitar o conteúdo e funcionamento de programas eletrônicos.

Interesses de mercado, na disputa pelo monopólio das mídias digitais, com tudo o que isso significa, ditam os termos e o ritmo de funcionamento das instituições oficiais dedicadas a prevenir e evitar delitos e apurar infrações penais, responsabilizando seus autores.

Não por outra razão, identificam-se vieses na aplicação das TICs que reiteram as práticas de seletividade penal denunciadas ao longo do século passado pelas diversas correntes da criminologia crítica.

Ao tratar da ascensão das ações de policiamento e prevenção de crimes à base das tecnologias de preditividade e o viés racial detectado no emprego dessas TICs, Andrew Ferguson destaca o seguinte em passagem paradigmática:

"Este livro ilumina os 'dados pretos' resultantes do policiamento que utiliza 'big data': 'pretos' no sentido de opacos, porque os dados existem extensivamente escondidos dentro de algoritmos complexos; 'pretos' no sentido de codificados racialmente, porque os dados impactam diretamente comunidades não brancas; 'pretos' no sentido da próxima novidade, dada a legitimidade e proeminência decorrentes da percepção de que qualquer coisa orientada por dados é legal, bem recebida — em termos tecnológicos — e futurista; e, finalmente, 'pretos' no sentido de deturpadores, criando sombras legais e lacunas constitucionais em áreas nas quais a lei costumava enxergar nitidamente. Dados pretos importam porque têm impactos no mundo real" [8].

O racismo estrutural se fortalece na esfera digital quando o aparato digital concebido para atingir mercados lucrativos compostos por grupos sociais privilegiados é redirecionado, em sua vertente de detecção dos indesejáveis, para "localizar" e "monitorar" estes "indesejáveis", excluídos a priori da condição de consumidores relevantes do mercado.

Ressalta Zuboff que o controle social exercido por meio das TICs é amplo. Seu horizonte de incidência envolve praticamente todo o planeta dada a difusão das aplicações tecnológicas e da rede mundial de computadores.

Em pesquisa nacional por amostra de domicílios, realizada em 2018, tendo por objeto o acesso à internet e posse de telefone móvel, o IBGE constatou que 93,2% das pessoas com mais de dez anos de idade tinham telefone móvel celular no Brasil [9].

Na mesma pesquisa apurou-se que a internet era realidade em 79,1% dos domicílios.

As condições para a concretização da hipervigilância estão dadas: disseminação de tecnologias sofisticadas, sistemas opacos em constante modificação [10], sistemas que pertencem e estão sob domínio de poucas corporações privadas economicamente poderosas [11] e a ascensão de governos interessados em concentrar estas informações, delas fazendo uso em detrimento de parcela da população. O somatório representa risco real à democracia que emergiu na sequência da Segunda Guerra Mundial e, na América Latina, com o fim das ditaduras, entre os anos 80 e 90 do século passado.

Continua na parte III

Clique aqui para ler a parte I

 


[1] FERGUSON, Andrew Guthrie. The rise of big data policing: surveillance, race, and the future of law enforcement. New York: New York University, 2017.

[2] CÂMARA DOS DEPUTADOS DO 115º CONGRESSO DOS ESTADOS UNIDOS. H.R. 4943 – CLOUD Act. Projeto de lei. Apresentado em 6 de fevereiro de 2018. Disponível em: https://www.congress.gov/bill/115th-congress/house-bill/4943/text. Consultado em: 9 de julho de 2020.

[3] PARLAMENTO EUROPEU E CONSELHO. Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo às ordens europeias de entrega ou de conservação de provas eletrónicas em matéria penal. Estrasburgo, 17 de abril de 2018. Disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/ES/TXT/?uri=COM:2018:225:FIN. Consultado em 09 de julho de 2020.

[4] Expressão empregada por Antonio do Passo Cabral. CABRAL, Antonio do Passo. Questões processuais no julgamento do mensalão: valoração da prova indiciária e preclusão para o juiz de matérias de ordem pública. Revista do Ministério Público. nº 53 (jul/set 2014). Rio de Janeiro: Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. p. 9.

[5] LEVY, Leonard W. The palladium of justice: origins of trial by jury. Chicago: Ivan R. Dee, 1999. p. 24 e 31-34.

[6] Tradução livre. No original: “In sum, ‘Abandon hope, all ye who enter here’ best described the chances of an accused person under the inquisitorial system of criminal procedure that operated throughout the Continent.” LEVY, Leonard W. The palladium of justice: origins of trial by jury. Chicago: Ivan R. Dee, 1999. p. 35.

[7] Tradução livre. No original: “Surveillance capitalism unilaterally claims human experience as free raw material for translation in behavioral data”. ZUBOFF, Shoshana. Chapter one: Home or Exile in the Digital Future. In: The age of surveillance capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power. Nova Iorque: PublicAffairs, 2019. p. 8.

[8] Tradução livre. No original: “This book shines light on the ‘black data’ arising from big data policing: ‘black’ as in opaque, because the data exists largely hidden within complex algorithms; ‘black’ as in racially coded, because the data directly impacts communities of color; ‘black’ as in the next new thing, given legitimacy and prominence due to perception that data-driven anything is cool, techno friendly, and futuristic; and, finally, ‘black’ as distorting, creating legal shadows and constitutional gaps where the law used to see clearly. Black data matters because it has real-world impacts.” FERGUSON, Andrew Guthrie. The Rise of Big Data Policing: Surveillance, Race, and the future of Law Enforcement. Nova Iorque: New York University Press, 2017. p. 3.

[9] INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Acesso à internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal 2018. Rio de Janeiro, 2020. Informativo, 12 p., e Notas Técnicas, 115 p Catálogo disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101705. Informativo disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101705_informativo.pdf. Notas técnicas disponíveis em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101674_notas_tecnicas.pdf. Consultado em: 23 de junho de 2020.

[10] O fluxo contínuo peculiar ao machine learning restringe a capacidade externa de acompanhar as alterações do próprio processamento e tratamento de dados.

[11] Nesta semana apenas o valor de mercado da Apple alcançou montante superior ao PIB de 95% dos países. BBC. Apple vale US$ 2 tri: valor de empresa nascida em garagem já é maior que PIB de 95% dos países. BBC, 20 de agosto de 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-53847955. Consultado em: 21 de agosto de 2020.

Autores

  • é sócio da Geraldo Prado Consultoria Jurídica, desembargador aposentado do TJ-RJ e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!