Segunda Leitura

Políticas públicas reclamam a atenção do Direito

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

23 de agosto de 2020, 8h00

As notícias nos meios de comunicação e nas redes sociais repetem sistematicamente a necessidade disto ou daquilo necessitar de políticas públicas. Superficialmente, dão a noção de que é preciso maior atuação do poder público em determinada área. Mas pouco se vai além disto. Poucos sabem o que são, realmente, políticas públicas, quem as exerce e seus limites.

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A matéria, originariamente, pertence à área da Gestão e Administração Pública. Por exemplo, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) criou em 2009 o  curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social, cuja finalidade é formar Gestores Públicos capacitados para a elaboração, implementação, gestão, monitoramento e avaliação de políticas, planos, programas e projetos de desenvolvimento econômico e social em diferentes escalas, seja em agências governamentais ou não governamentais, isto é, no Setor Público e no Terceiro Setor”.[1]

Todavia, nos cursos de Direito nada se fala a respeito da matéria. As obras de Direito Administrativo não costumam dedicar uma só linha ao assunto. Na verdade, a obra pioneira e clássica sobre o tema é da autoria de Maria Paula Dallari Bucci, "Direito Administrativo e Políticas Públicas". Depois dela, poucas foram publicadas, cabendo citar "O Direito na fronteira das Políticas Públicas"[2] e "Políticas Públicas e Direitos Fundamentais".[3]

Uma reação à inércia se esboça nos cursos de pós-graduação stricto sensu em Direito (mestrado e doutorado), onde há pesquisas interessantes a respeito, principalmente discutindo a necessidade e aplicação das políticas públicas na área da saúde.

Ocorre que, assegurando a Constituição inúmeros direitos sociais e não conseguindo o poder público cumpri-los, o resultado é ser o Judiciário acionado permanentemente por aqueles que se sentem prejudicados. São milhares de ações impondo aos juízes a definição de políticas públicas, tema que não lhes é próprio, cabendo, na verdade, ao Poder Executivo.

Se o tema já é complexo no âmbito público, mais ainda se torna quando se cogita das ações privadas que complementam as políticas públicas. Como ensinam Jaciane Santos e Micheline Oliveira, "O Estado não é o único fomentador de políticas sociais públicas, o gestor das necessidades sociais nem sempre se identifica com todas as reivindicações ou simplesmente as ações são insuficientes frente à demanda crescente, assim, a oferta de políticas públicas em nenhum momento foi exclusiva da ação estatal, a sociedade civil organizada não deixou de ofertar estes serviços".[4]

Com razão as autoras, pois inúmeras demandas da sociedade são solucionadas ou minimizadas pela ação de associações, sindicatos, fundações e outras entidades. Dois exemplos: a) a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), que desenvolve em todo o território nacional um serviço público de bem estar e desenvolvimento de pessoas com deficiência, tendo, só no Paraná, cerca de 350 sedes que atendem aproximadamente 41 mil pessoas.[5]; b) a Pastoral da Criança, vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que promove o desenvolvimento  e atende cerca de 1,8 milhões de crianças de 0 a 6 anos e quase 94 mil gestantes em 42 mil comunidades pobres, de 5.570 municípios brasileiros.[6]

Portanto, a questão mais complexa é até onde pode ou deve o Poder Judiciário intervir nas políticas públicas.

Maria Paula Dallari Bucci não hesita em reconhecer ao Poder Judiciário a possibilidade de intervenção, com base no artigo 5º, XXXV da Constituição.[7]Nagibe de Melo Jorge Neto complementa,reconhecendo que o Poder Judiciário pode, sim, "conformar ou modificar os objetivos a serem atingidos com as políticas públicas”, mas, por não terem os juízes uma visão global sobre as políticas públicas, objetivos do governo, disponibilidade de recursos orçamentários, etc., devem deixar ao poder público “as questões acerca de 'como' fazer".[8]

No entanto, muito embora antigo o problema, a jurisprudência não deu, ainda, as balizas de como deve o Poder Judiciário conduzir-se. A dificuldade fica evidente em dois precedentes do Supremo Tribunal Federal.

No dia 1º de abril de 2014, acórdão relatado pelo ministro Dias Tofolli decidiu que é possível o Poder Judiciário intervir na implementação de políticas públicas ambientais, através de ação civil pública, nisto não havendo violação do princípio da separação dos poderes.[9] No entanto, segundo notícia da imprensa, no mês de julho passado o mesmo ministro afirmou "que as medidas do Judiciário a respeito dos impactos do coronavírus não podem substituir a atuação dos poderes responsáveis pela elaboração de políticas públicas de combate ao vírus".[10]

Por vezes, a ordem judicial suscita dúvida sobre ser autêntico ato de administração. Por exemplo, notícia de 4 de abril de 2019 informa que no Tocantins "A Justiça acatou pedido do Ministério Público Estadual (MPE) e expediu, na terça-feira, 2, liminar que obriga o município de Darcinópolis, no Bico do Papagaio, a adotar todas as providências necessárias para a construção de uma ponte sobre o Rio Manga, na zona rural. O prazo estipulado para a conclusão da obra é de 60 dias, sob pena de aplicação de multa diária de R$ 500 em caso de descumprimento"[11]

Cabe ao juiz estabelecer prazo ao administrador para uma obra complexa, que pode depender de variados fatores? Têm os juízes conhecimentos técnicos para tanto?

Por vezes, a controvérsia antecede a propositura da ação, situando-se entre a atuação do agente do Ministério Público e a da autoridade administrativa. Em setembro de 2019, em Goiás, através de Decreto, "O prefeito de Posse, Wilton Barbosa Andrade (PSDB), proibiu o promotor de Justiça Douglas Chegury de realizar investigações na sede da prefeitura”.[12] Na comarca de Maracanã, Pará, o agente do Ministério Público propôs ação civil pública contra o município, para obter "a imediata suspensão da realização do show artístico da cantora SHIRLEY CARVALHAES previsto para o dia 28 de maio de 2019".[13]

Como se vê, são muitas as dúvidas sobre o tema em discussão. Não há limites mínimos para a ação do Ministério Público,cuja importância ninguém nega. Nem para as decisões judiciais, que, se equivocadas, podem resultar em problemas irreversíveis. Tal situação, que a ninguém interessa, pode levar o administrador à inércia e o empreendedor a evitar novos negócios, optando simplesmente por aplicar o seu capital, com isto diminuindo os empregos e as relações comerciais, tudo com manifesto prejuízo social.

Em meio a este quadro, revela-se necessário e aqui se propõe: a) implementar o estudo de políticas públicas nos cursos de graduação em Direito; b) incentivar que mestrandos e doutorandos cursem matéria em programas de pós-graduação em gestão pública e, assim, tomem conhecimento das exigências e dificuldades administrativas; c) incentivar estudos do papel das pessoas privadas no âmbito das políticas públicas;d) fixarem os órgãos de cúpula do Ministério Público, com a participação dos agentes que atuam na primeira instância, balizas mínimas convergentes para a ação de seus agentes no trato das políticas públicas;e) estabelecerem os Tribunais, através de súmulas de sua jurisprudência consolidada, as fronteiras das decisões judiciais.

Segurança jurídica é preciso, avançar também é preciso.


[1] UFRJ. Disponível em: http://gpdes.ufrj.br/. Acesso em 19/8/2020.

[2] SMANIO, Gianpaolo P. et alli. São Paulo: Mackenzie, 2019.

[3] FONTE, Felipe de Melo. Políticas Públicas e Direitos Fundamentais. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

[4] SANTOS, Jaciane Geraldo dos e OLIVEIRA, Micheline Ramos de. A relação público X privado: cofinanciamento da Política de Assistência Social. Revista Brasileira de Tecnologias Sociais, v.3, n.1, 2016 doi: 10.14210/rbts.v3.n1, p. 55.

[6] Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pastoral_da_Crian%C3%A7a. Acesso em 20/8/2020.

[7] Op. Cit., pp. 58.

[8] JORGE NETO, Nagibe de Melo. O controle jurisdicional das políticas públicas. Poduim. Salvador: 2008, p. 155.

[9] STF, Ag. Reg. RExt. 658.171/DF, rel. Dias Tófolli, j. 1/4/2014.

Autores

  • é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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