Multa agravada por embaraço à fiscalização e suas condições de aplicação
19 de agosto de 2020, 8h00
O tema das multas tributárias é recorrente no âmbito da jurisprudência do Carf: praticamente todos os processos decorrentes de autos de infração implicam na aplicação de sanções, acompanhadas da cobrança do tributo devido. Entretanto, a matéria sancionatória não se encerra em uma chave binária — aplicar ou não aplicar —, mas comporta uma série de nuanças e graduações, de acordo com a presença de determinadas circunstâncias concretas[1].
Essa multa (chamada de multa básica) pode ser objeto de circunstâncias qualificadoras (artigo 44, §1º[2], da Lei 9.430/96, aplicável nos casos de sonegação, fraude ou conluio) ou agravantes (artigo 44, §2º, da Lei 9.430/96[3], sem prejuízo outras hipóteses específicas, a exemplo da Lei nº 4.502/64). As qualificadoras tem o condão de dobrar multa básica, enquanto as agravantes implicam o seu aumento em 50%, impactando sobremaneira o montante de crédito tributário que será cobrado ao final, daí a elevada relevância prática do tema.
Pois bem, na coluna de hoje trataremos especificamente da forma como o Carf tem aplicado o artigo 44, §2º, da Lei nº 9.430/96, que estabelece como agravante o não atendimento pelo sujeito passivo, no prazo marcado, de intimação para prestar esclarecimentos e apresentar registros eletrônicos de atividades econômicas ou financeiras, escrituração contábil digital e arquivos magnéticos dos sistemas de processamento de dados, no curso de procedimentos de fiscalização.
A matéria foi enfrentada recentemente pela 1ª CSRF, por meio do Acórdão nº 9101-005.012[4], favorável à exclusão do agravamento. Ele se destaca, entretanto, pela presença de diversas posições encampadas no voto vencedor e em três declarações de voto apresentadas. No caso, o contribuinte fora intimado a apresentar determinados documentos que tinham sido solicitados por meio de intimações fiscais, tendo atendido apenas parcialmente a exigência da fiscalização. Inclusive, em razão da não apresentação de extratos bancários, a fiscalização solicitou a emissão de RMF (Requisição de Movimentação Financeira), de acordo com a LC nº 105/01 e sua regulamentação, obtendo assim documentos suficientes ao lançamento.
A tese sobre a qual girava a divergência dizia respeito à exigência ou não de dolo do contribuinte de embaraçar a fiscalização, ou se bastaria o não atendimento no prazo determinado na intimação, para a prestação de esclarecimentos.
O voto do relator, bastante minucioso na análise fática, ressaltou que o caso concreto não era de total inércia do contribuinte, mas apenas parcial atendimento e a apresentação tardia de algumas respostas — o que afetaria a própria tipicidade do agravamento da multa. Essa circunstância da inércia do contribuinte ser total ou parcial é juridicamente relevante, sendo utilizado como fundamento para afastar o agravamento no Acórdão nº 3402-003.109[5] (no mesmo sentido, acórdãos 10194.715 e 10194.711), no qual se pontuou que a hipótese ocorreria apenas quando o contribuinte ignorasse absolutamente as intimações fiscais.
Prosseguindo, o relator aponta que a omissão do contribuinte não gerou qualquer prejuízo à atividade fiscalizatória, tampouco implicou em base tributável mais favorável, vez que o RMF serviu à obtenção de todas as informações necessárias para a quantificação da receita omitida. Aponta, na sequência, optar por uma leitura "subjetiva e consequencial" da hipótese de agravamento, em desfavor de uma aplicação "literal", por entender que este sentido afastaria a regra do valor por ela tutelado. Além disso, sustenta também que havendo dúvida quanto ao alcance do dispositivo agravante da multa, seria cabível a aplicação do artigo 112 do CTN, que estabelece prioridade ao sentido mais benéfico ao contribuinte. Desse modo, e sob tais argumentos, o relator resolveu o tema admitido, afastando os argumentos da Fazenda Nacional, que defendiam uma leitura objetiva da hipótese de agravamento da norma.
Na primeira declaração de voto apresentada, a Conselheira aduz que concorda com os pontos do relator, mas ressalta que, no seu entender, o agravamento estabelecido pelo artigo 44, §2º, da Lei nº 9.430/96, depende da demonstração do dolo do contribuinte em não apresentar os documentos e informações solicitados, com a finalidade de prejudicar a fiscalização, o que poderia ter sido feito, pela fiscalização, com a indicação de reiterados pedidos de extensão de prazo, por exemplo. Em não havendo a comprovação do dolo, a multa agravada não subsistiria. Não há aqui, entretanto, nenhuma contestação específica relacionada ao artigo 136 do CTN, que, salvo expressa previsão legal, estabelece a desnecessidade da verificação da intenção do agente em infrações tributárias.
Na segunda declaração de voto apresentada, a conselheira pontuou — em sentido contrário ao defendido ao voto do relator — que a aplicação do agravamento não pressupõe efetivo embaraço à atividade fiscal, rechaçando a tese do efetivo prejuízo como condição de tipicidade da sanção, mas pondera que a sua aplicação também não pode ser dada ao descumprimento de intimações imotivadas ou desnecessárias.
No caso concreto, a fiscalização, por meio do cruzamento de declarações, verificou uma omissão de receita tributável do contribuinte, que autorizaria a aplicação das regras de presunção de omissão de receita, e que, diante disso, a inércia do contribuinte teria como efeito exatamente a manutenção da força probatória dos indícios que autorizariam o lançamento com base nas presunções, na esteira do que determina a Súmula Carf nº 133 ("A falta de atendimento a intimação para prestar esclarecimentos não justifica, por si só, o agravamento da multa de ofício, quando essa conduta motivou presunção de omissão de receitas ou de rendimentos"). Esse mesmo entendimento foi endossado, por exemplo, no acórdão nº 9202-004.290[6].
Por fim, a terceira declaração de voto adotou a linha de que o atendimento parcial às intimações fiscais, desde que o Fisco possa obter as informações buscadas por outro modo, como o RMF, não dariam ensejo ao agravamento da multa aplicada. Essa linha de raciocínio, por sua vez, já fora utilizada também em outras decisões, como no Acórdão nº 9303-001.727[7].
Como se vê, por trás de uma singela regra de agravamento de multas, há diversas camadas de discussão, a saber:
a) Relacionados à tipicidade da conduta do contribuinte:
a.i) discussão objetiva de tipicidade, a fim de determinar se o agravante depende da inércia absoluta do agente, ou se basta um não prestação parcial de esclarecimentos, para que a multa agravada seja devida;
a.ii) discussão subjetiva de tipicidade, para determinar se o dolo específico do agende, na não prestação de esclarecimentos, é necessário para que o agravamento seja ou não aplicado;
a.iii) discussão de tipicidade material, em torno da exigência ou não de que haja algum nível de embaraço à fiscalização, por meio da inação do contribuinte, expressando efetiva lesão ao bem jurídico protegido pela regra infracional;
b) Relacionado à interpretação da regra infracional: a existência de dúvidas quanto à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, em razão das discussões apontadas acima, conduz à problemática da aplicação ou não do artigo 112 do CTN ao caso.
c) Relacionado à efetiva necessidade dos esclarecimentos solicitados: discute-se se o fato da existência de indícios probatórios já ser suficiente ao lançamento tributário, em especial com base em regras legais de presunção, tornaria despicienda a intimação posterior do contribuinte, o que não justificaria a aplicação da sanção agravada em caso de não atendimento.
É preciso observar, ao se discutir o presente tema, os efetivos argumentos que estão permeando o debate em concreto, sob pena de se confrontarem aspectos distintos da discussão — em outras palavras, confrontar argumentos que não se opõem diretamente, podendo gerar um debate confuso e conduzindo a um resultado final com menor clareza.
O artigo dessa semana, mais do que apontar uma tendência favorável ao contribuinte na análise da referida hipótese de agravamento, é um alerta para a complexidade subjacente à discussão, a demandar um maior amadurecimento — direcionado ao enfrentamento direto de cada um dos pontos elencados acima — da jurisprudência do Carf.
[1] Sobre o tema, para maior aprofundamento, recomendamos duas obras recentes, que analisam com muita profundidade o tema das multas tributárias: FAJERSZTAJN, Bruno. Multas no Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2019;e LIMA JÚNIOR, João Carlos de. Interpretação e aplicação das multas de ofício, de ofício qualificada, de ofício agravada e isolada. São Paulo: Noeses, 2018.
[2] Art. 44. (…) § 1º O percentual de multa de que trata o inciso I do caput deste artigo será duplicado nos casos previstos nos arts. 71, 72 e 73 da Lei no 4.502, de 30 de novembro de 1964, independentemente de outras penalidades administrativas ou criminais cabíveis.
[3] Art. 44. (…) § 2º Os percentuais de multa a que se referem o inciso I do caput e o § 1º deste artigo serão aumentados de metade, nos casos de não atendimento pela sujeito passivo, no prazo marcado, de intimação para:
I – prestar esclarecimentos;
II – apresentar os arquivos ou sistemas de que tratam os arts. 11 a 13 da Lei no 8.218, de 29 de agosto de 1991;
III – apresentar a documentação técnica de que trata o art. 38 desta Lei.
[4] Relator Cons. Caio Nader Quintella, julgado em 09/07/2020.
[5] Redator Designado Cons. Carlos Augusto Daniel Neto, julgado em 22/06/2016.
[6] Relator Cons. Gerson Macêdo Guerra, julgado em 19/07/2016.
[7] Redatora Designada Cons. Nanci Gama, julgado em 07/11/2011.
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