Pensando em Habeas

Os novos desafios ao cabimento de Habeas Corpus no Supremo Tribunal Federal

Autor

  • Mariana Madera Nunes

    é advogada ex-assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e é professora de Processo Penal da Universidade Católica de Brasília (UCB).

13 de agosto de 2020, 8h01

A partir do segundo semestre judiciário deste ano, um novo mecanismo de restrição ao cabimento de Habeas Corpus poderá ser utilizado para frear a distribuição de processos entre os ministros do STF: a filtragem de impetrações inadmissíveis pela presidência da corte. É que, na sessão administrativa virtual ocorrida em 1º de julho, foi aprovada emenda regimental que confere ao presidente poderes para despachar, como relator, até eventual distribuição, os Habeas Corpus manifestamente incabíveis no tribunal, com encaminhamento dos autos ao órgão considerado competente.

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O receio é de que a atuação da presidência extrapole os casos específicos em que o impetrante chega ao STF apontando como autoridade coatora juiz singular ou tribunal de segundo grau (HC 162.184/SP, j. 18/9/2018) para alcançar hipóteses consagradas pela jurisprudência defensiva do tribunal, a exemplo do óbice descrito na Súmula 691, segundo a qual "não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de Habeas Corpus impetrado contra decisão do relator que, em Habeas Corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar".

A medida já é amplamente adotada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça para indeferir liminarmente Habeas Corpus voltados contra impetrações que não tiveram o mérito julgado na origem (HC 592.213/SP, j. 29/6/2020), com fundamento no artigo 21-E, IV, do Regimento Interno do STJ, que possui redação semelhante à modificação promovida no RISTF. Na sequência, afasta-se, de maneira superficial e não justificada, a possibilidade de concessão da ordem de ofício, ofendendo-se, a um só tempo, os princípios constitucionais da proteção judicial efetiva (artigo 5º, XXXV, CF) e da motivação das decisões judiciais (artigo 93, IX, CF).

De fato, o imenso e sempre crescente volume de novas impetrações formalizadas a cada ano no STF — saltaram de 3.736 HCs em 2008 para 13.364 em 2018 — fez com que novos entraves processuais ao cabimento do writ fossem se consolidando nas decisões colegiadas e monocráticas do tribunal. A dificuldade reside em compreender até que ponto essas limitações desvirtuam a essência do instituto, caracterizado pela simplicidade e celeridade, e resultam em mitigação da própria garantia constitucional.

Além do já referido óbice da Súmula 691, subsiste o entendimento consolidado do Supremo acerca da impossibilidade de se manejar Habeas Corpus para atacar ato de ministro da corte (HC 130.620/RR, j. 4.5.2020), apesar das sucessivas discussões sobre esse tema. Isso porque, historicamente, o tribunal admitia o ajuizamento do writ em face de decisões monocráticas proferidas por relator (HC 85.099/CE, j. 9/8/2007), apesar de não conhecer quando impetrados contra provimentos colegiados em geral (Súmula 606/STF), quando, então, o referido enunciado sumular passou a ser aplicado analogicamente para abarcar tais hipóteses (HC 86.458/SP, 16/10/2008).

No entanto, com vistas à fomentação do debate no seio da composição atual, a presidência passou a distribuir os Habeas Corpus impetrados contra decisões monocráticas dos membros do tribunal (HC 175.642/DF, j. 17.9.2019), o que poderá ser modificado a partir de setembro, com a troca das cadeiras entre os ministros Dias Toffoli e Luiz Fux, já que este último interpreta a competência do STF para análise de HC de maneira mais restritiva.

De igual modo, tanto o Pleno quanto a 1ª e a 2ª Turmas adotam a perspectiva de que são inadmissíveis os Habeas Corpus formalizados contra decisão monocrática em face da qual caberia agravo regimental (HC 169.068-AgR/PI, j. 29/4/2019), ante a falta de exaurimento da jurisdição antecedente, e os impetrados em substituição de revisão criminal, por não se constituir meio adequado à revisão dos elementos de fato que dão suporte às condenações acobertadas pela preclusão maior (HC 154.973-AgR/SP, j. 17/5/2019).

Por outro lado, o Habeas Corpus substitutivo de recurso ordinário constitucional, alvo de reviravolta jurisprudencial em 2012 (HC 109.956/PR), no presente cenário, goza de trânsito livre dentro da corte. Estando constitucionalmente prevista a competência do tribunal para julgar ambos os instrumentos (artigo 102, I, "i", e artigo 102, II, "a", CF), na apreciação do HC 152.752/PR, em 4/4/2018, o plenário alinhou-se à posição consolidada na 2ª Turma, seguido, mais tarde, da maioria formada na 1ª Turma em idêntico sentido (HC 181.340/PR, j. 29.5.2020), para assentar a viabilidade da impetração originária substitutiva de recurso ordinário constitucional [1].

Curiosamente, a 3ª Seção do STJ ainda não avançou nesse sentido. Apesar de haver divergência entre as turmas responsáveis por julgar matéria criminal da corte Superior, na análise do HC 535.063/SP, em 10/6/2020 o colegiado assentou o não conhecimento da impetração substitutiva do recurso próprio após questão de ordem suscitada pelo ministro Reynaldo Soares da Fonseca, que aludiu ao histórico, porém, superado, entendimento da 1ª Turma quanto à aplicação do óbice.

Como se vê, não são poucas as restrições formais impostas pela jurisprudência do STF para fazer frente ao suposto uso indiscriminado do instituto, o que acabou por instaurar uma verdadeira crise do Habeas Corpus não apenas nos tribunais superiores, na contramão do que defende a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Opinião Consultiva 8) acerca dos prejuízos causados pela limitação do writ nos regimes de exceção da América Latina, no que contribuiu para que ocorressem desaparecimentos, torturas e homicídios tolerados pelos governos que instituíam situações emergenciais.

E pensar que a doutrina brasileira do Habeas Corpus, tantas vezes prestigiada pelo tribunal, pelo menos, a partir do julgamento do HC 410 (j. 16/8/1893), possibilitava o uso da via não somente para defender a liberdade de locomoção, mas em todos os casos de ilegalidade ou abuso de poder que resultem violência ou coação moral.

O Habeas foi e é instrumento de avanços civilizatórios importantes para o país, sendo possivelmente o instituto processual mais debatido em nossa história republicana — e certamente não deixará de ser, como ilustrará essa coluna "Pensando em Habeas" –, tendo no Supremo um importante gestor do leque de suas possibilidades e desafios.

Fato é que não há solução para a questão do Habeas Corpus sem modificação da mentalidade inquisitória e punitivista. É possível se pensar: 1) na ampliação e priorização do uso do Habeas coletivo [2]; 2) na utilização do julgamento virtual como alternativa à jurisprudência defensiva e em atenção à sobrecarga dos tribunais; ou ainda 3) no adensamento do sistema acusatório na legislação ordinária (p.e., restringindo a decretação de preventivas e obrigando a revisão periódica da cautelaridade — Lei 13.964/2019) como atenuante dos danos ao direito de locomoção. Entretanto, o maior obstáculo à garantia constitucional da liberdade reside na difícil superação de uma cultura processual penal autoritária e repressiva, indiferente às garantias individuais do cidadão.

 


[1] Não se verifica, entretanto, a mesma evolução no entendimento da Primeira Turma quanto ao Habeas Corpus substitutivo de recurso extraordinário, prevalecendo a oposição do obstáculo ao conhecimento (HC 110.055/MG; HC 137.131-AgR/RS), diferentemente do que ocorre na Segunda Turma (HC 138.507/SP).

[2] Bem ilustra essa proposição a decisão proferida no âmbito do HC 568.693/ES, pelo ministro Sebastião Reis, do Superior Tribunal de Justiça, que concedeu liberdade para todos os indivíduos reclusos no estado do Espírito Santo, cuja soltura já havia sido autorizada mediante fiança, independente da efetivação do pagamento ou não, tendo em vista a crise sanitária causada pela pandemia da Covid-19.

Autores

  • é advogada, ex-assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal, pós-graduada em Ciências Criminais pela Faculdade Baiana de Direito, professora da pós-graduação em Ciências Criminais da Universidade Católica do Salvador e coautora do livro "Habeas Corpus no Supremo Tribunal Federal".

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