Opinião

Não pode mais haver espaço para o desrespeito às prerrogativas da advocacia

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6 de agosto de 2020, 7h12

A importância da advocacia está estampada em diversos manuais de direito constitucional, sendo uma obviedade se tratar de função essencial à justiça. Justamente por isso o constituinte cuidou de tratar expressamente dessa atividade, de forma sucinta, óbvia e sem margens para interpretação diversa  "O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei" [1].

A essencialidade da advocacia para o funcionamento da Justiça vai muito além da defesa do interesse do jurisdicionado posto ao escrutínio do órgão julgador. Cuida, na verdade, da própria permeabilidade do sistema, da capacidade do Direito posto de respirar novas teses, ideias, enfrentar os problemas contemporâneos da sociedade e se manter, dentro de suas limitações, atual e legítimo diante das expectativas sociais. Em suma, o necessário para que o Poder Judiciário seja capaz de perseguir sua missão de pacificação social na solução de litígios.

Entretanto, são lamentavelmente recorrentes os episódios de verdadeiro desrespeito ao exercício da advocacia.

De forma emblemática, assinalo o recente episódio de um juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, que, após a sustentação oral da advogada, proferiu o seguinte comentário: "Isso, faz essa carinha de filha da p…" [2]. O episódio rendeu atuação incisiva da OAB, repudiando o fato, que infelizmente não é isolado e sequer teve até o momento a repercussão necessária.

Em 2018, a OAB-GO [3] publicou nada menos que nove notas de desagravo, em um período de aproximadamente nove meses, pelo desrespeito a prerrogativas da advocacia. Honestamente, a providência não é suficiente, não por culpa da entidade, sempre combativa, mas pela contínua inobservância das prerrogativas da classe. É necessário respeito, e essa luta é antiga.

Dentro dessa toada, tivemos acalorado debate na doutrina e no parlamento acerca da criminalização do desrespeito a prerrogativas dos advogados.

Relator das medidas contra a corrupção (PL 4850/16), o deputado Onyx Lorenzoni foi firme ao defender o que entendia como absurdo na emenda que previa a criminalização:

"Por que a desatenção à prerrogativa do advogado seria crime se nenhuma outra profissão tem esse tratamento, inclusive parlamentares? É desarrazoado, criaria uma casta intocada no país. Não há condição de dar curso a isso" [4].

A reação não se limitou ao meio parlamentar, expoentes da magistratura também questionaram a criminalização, receosos de possível responsabilização em casos de inobservância, ainda que entendessem justificadas, exemplificam:

"O inciso V assegura ao advogado o direito de não ser recolhido preso, antes de sentença transitada em julgado, senão em sala de Estado Maior, com instalações e comodidades condignas, e, na sua falta, em prisão domiciliar. Porém, se o caso for grave e não houver sala adequada, o juiz se arriscará a manter o advogado preso, ainda que por poucos dias, aguardando sua remoção? Com risco de ser processado? Não, por certo" [5].

Indaga ainda o autor do comentário: "Quais os riscos? Teremos juízes acovardados, que tudo farão, a fim de não incompatibilizar-se com os advogados e terem que responder criminalmente" [6]. Parece insustentável o raciocínio. A prática nos mostra o contrário, muitas são as reclamações de advogados constrangidos em sua atuação [7], quase nunca o contrário. Juízes, promotores, delegados de polícia, defensores públicos, procuradores e demais carreiras jurídicas de Estado devem se compatibilizar efetivamente com a ausência de hierarquia entre eles e respeitar outros atores. A criminalização é uma medida extrema? Sim, mas, convenhamos, veio de forma leve.

Incluída entre as alterações da nova Lei de Abuso de Autoridade [8] o desrespeito a prerrogativas previstas nos incisos II, III, IV e V do caput do artigo 7º do Estatuto da Advocacia prevê penas de três meses a um ano de detenção, além de multa.

Aponta-se que não se trata do desrespeito a toda e qualquer prerrogativa, apenas aquelas previstas nos incisos II, III, IV e V [9]. O mínimo para garantir a dignidade do ofício profissional que sofre diuturnamente ataques no exercício de seu múnus. Os casos escapam o mundo jurídico, estão nos noticiários [10].

A reação de parcela das carreiras de Estado na verdade parece apaixonada e quiçá corporativista, não apenas pela criminalização do desrespeito as prerrogativas profissionais, mas pela superação, pela via legislativa, de entendimento que afastava a incidência plena da antiga Lei de Abuso de Autoridade a alguns agentes públicos, como juízes e promotores de Justiça [11]. Tanto parece ser o caso que antes mesmo de sua entrada em vigor um juiz de Campinas negou pedido de penhora online, no curso de uma ação de execução, em virtude da novidade legislativa. O desembargador Andrade Neto do TJ-SP, ao reformar a decisão, chamou o magistrado de "infantil" e "imaturo", uma vez que sua determinação fez referência a uma norma que sequer estava em vigor. Ainda assim, quatro dias depois do fato, uma decisão, também com base na lei, foi tomada por uma juíza de Santa Catarina [12].

Ainda não se tem um caso emblemático em que o desrespeito à figura do advogado tenha tido consequências exemplares. É necessário que a burocracia estatal não crie entraves e constrangimentos ao exercício livre e combativo da advocacia, uma das forças de transformação e atualização do Direito aplicado. Sua presença e efetiva participação em inquéritos policiais, procedimentos administrativos ou processos judiciais atribuem credibilidade e valor a seu conteúdo, e consequentemente a sua decisão sua atuação deve ser valorizada.

Advogados são verdadeiros protagonistas da aplicação do Direito e da solução dos litígios, e como tal devem ser tratados. A criminalização do desrespeito a prerrogativas da advocacia é possivelmente um recurso extremo para equilibrar essa balança no cenário contemporâneo, e é uma pena que essa medida tenha se feito necessária.

 


[1] "Artigo 133 — O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei". (CR/1988).

[9] "II — a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia. III — comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis. IV — ter a presença de representante da OAB, quando preso em flagrante, por motivo ligado ao exercício da advocacia, para lavratura do auto respectivo, sob pena de nulidade e, nos demais casos, a comunicação expressa à seccional da OAB. V — não ser recolhido preso, antes de sentença transitada em julgado, senão em sala de Estado Maior, com instalações e comodidades condignas, e, na sua falta, em prisão domiciliar". (Lei 8;906/94).

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