Paradoxo da Corte

Direito e cinema: fique em casa e curta um clássico!

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

4 de agosto de 2020, 8h00

Em meados da década de 80, consegui instituir, como professor de direito processual civil na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, atividade acadêmica complementar (Cinema e Direito), destinada à discussão com meus alunos, após atenta apresentação, de questões jurídicas que emergiam de filmes famosos.

Anos depois, esse profícuo e instrutivo exercício acabou sendo implantado, por considerável tempo, no âmbito do programa cultural da operosa Associação dos Advogados de São Paulo, em benefício de seus respectivos associados.

Bem mais recentemente, o meu amigo e ilustre advogado carioca, José Roberto de Castro Neves, organizou um belíssimo volume (Os advogados vão ao cinema, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2019), reunindo 39 ensaios sobre justiça e direito, retratados em filmes inesquecíveis.

O cinema, enfim, não raro, mostra diversas situações passíveis de controvérsias intersubjetivas que chegam ao proscênio dos tribunais.

Observo, por outro lado, que, na última quinta-feira (30/7), o Estadão publicou interessante matéria sobre o pensamento de Yuval Noah Harari, professor israelense, que prega, como antídoto para a pandemia, não apenas o isolamento, mas, em particular, a cooperação e solidariedade entre as pessoas. Se cada um de nós puder dividir informação e experiência pessoal, certamente estará prestando relevante auxílio para suportar o nosso dia-a-dia de forma menos penosa!

Lembrei-me então de recomendar sobretudo aos colegas mais jovens, segregados em suas casas e possivelmente com mais tempo disponível para o lazer, dentre muitos outros, 6 filmes clássicos, de fácil acesso, que não podem deixar de ser assistidos por quem faz do direito a sua profissão.

1 – Destaco, em primeiro lugar, o insuperável Testemunha de acusação (Witness for the Prosecution), de 1957, em preto e branco, dirigido por Billy Wider, com Tyrone Power, Marlene Dietrich, Elza Lanchester e Charles Laughton, no magnífico papel de advogado (Sir Wilfrid Robarts). É um filme que enche os olhos pelo desempenho dos atores e pelo drama, baseado num conto da escritora britânica Agatha Christie, sobre o julgamento de um homem, Leonard Vole (personagem de Tyrone Power), acusado de assassinato.

Divulgação
Sir Wilfrid Robarts, experiente advogado (barrister) com frágil saúde, aceita Leonard Vole como seu cliente, apesar dos protestos de sua enfermeira, Srta. Plimsoll (Elsa Lanchestes), já que o médico lhe havia aconselhado tirar férias e afastar-se de todos os casos criminais. Vole é acusado de ter assassinado Emily French (Norma Varden), uma mulher mais velha e rica que se apaixonou por ele, a ponto de transformá-lo em seu principal herdeiro. Contundentes evidências circunstanciais apontam Leonard Vole como o assassino. A testemunha chave é a esposa alemã do acusado, Christine (Marlene Dietrich).

Os esforços para manter o segredo do final não pouparam nem o elenco. O diretor Billy Wilder não forneceu aos atores as últimas dez páginas do roteiro até o dia em que as cenas derradeiras fossem ser filmadas.

Foi indicado para o Oscar de melhor ator (Charles Laughton), melhor atriz coadjuvante (Elsa Lanchester), melhor diretor, melhor edição, melhor filme e melhor som (Gordon E. Sawyer).

2 – Recomendo, também, o formidável Justiça para todos (… And Justice for All), de 1979, dirigido por Norman Jewison, com Al Pacino e Jack Warden.

Arthur Kirkland (Al Pacino) é um advogado de Baltimore, idealista e sonhador, que já teve vários desentendimentos (inclusive detido por desacato) com Henry Fleming (John Forsythe), um juiz grosseiro e extremamente formalista, até que um dia Arthur recebe com surpresa a notícia de que Fleming foi preso, acusado do espancamento e estupro de uma jovem. Irônica e paradoxalmente o juiz quer ser defendido por ele, pois como todos sabem da rivalidade que existe entre os dois, Kirkland só o defenderia se tivesse certeza de sua inocência. Em retribuição, Fleming promete rever um caso no qual Arthur tenta obter a liberdade de um cliente inocente, que está encarcerado há dezoito meses, decorrente de uma decisão ilegal proferida pelo juiz.

Esse filme revela, de forma bem nítida, as decepções de um advogado com o sistema. A declaração de abertura de Kirkland no tribunal, no final do filme: “Você está fora de ordem!” é simplesmente sensacional!

Al Pacino foi indicado ao Oscar de melhor ator. O filme também recebeu a indicação na categoria de melhor roteiro original.

3 – Outro clássico imperdível (eu já o assisti inúmeras vezes), O sol é para todos (To Kill a Mockingbird), de 1962, em preto e branco, dirigido por Robert Mulligan, baseado no romance homônimo da escritora Harper Lee. A performance de Gregory Peck como advogado é antológica.

Após a crise econômica de 1929, os habitantes da pacata cidade Maycomb, no estado do Alabama, são na grande maioria pequenos agricultores. Em 1932, vivem ali os irmãos Jem e Scout Finch, órfãos de mãe criados pela babá negra Calpurnia e o pai Atticus Finch (Gregory Peck), advogado viúvo, íntegro e respeitado na cidade, que atende gratuitamente aos mais pobres. A infância de seus filhos dividida entre a escola e as fantasias acerca do vizinho, o "malvado" Sr. Radley, cede espaço ao contato com a discriminação quando Finch resolve defender o negro Tom Robinson, acusado de ter estuprado uma moça branca. A conservadora cidade se revolta contra ele, apesar da inocência do rapaz ser evidente.

Igualmente fã desse filme, o colega Francisco Müssnich explica que a tradução livre do título em inglês, “Matar um rouxinol”, constitui “uma metáfora singela do conflito exposto no filme: cometer uma injustiça contra alguém mais fraco. Em diálogo, o pai explica aos filhos que é uma enorme covardia ou pecado matar um rouxinol, um pássaro que não faz mal algum, apenas canta graciosamente para nossa admiração. O filme, enfim, nos ensina como reagir diante de uma sociedade hostil!” (Os advogados vão ao cinema, cit., p. 42-43).

Gregory Peck arrebatou o Oscar de melhor ator. O filme, que teve 8 indicações, ainda ganhou a estatueta de melhor roteiro adaptado e melhor direção de arte em preto e branco.

4 – Em especial, para os operadores do direito na área de família, Kramer vs. Kramer, de 1979, baseado no romance de Avery Corman, é de tirar o fôlego.

Com memorável performance, Dustin Hoffman e Meryl Streep encenam o drama dos impactos sobre suas vidas gerados pelo divórcio do casal, com foco no duelo judicial pela guarda do filho de tenra idade.

Para Ted Kramer (Dustin Hoffman), o trabalho vem antes da família e Joanna (Meryl Streep), sua mulher, deprimida com o comportamento do marido, abandona o lar, deixando Billy, o filho do casal, com o pai. Ted então tem que se preocupar com o menino, dividindo-se entre o exerício profissional, o cuidado com o filho e as tarefas domésticas. Quando consegue se ajustar a estas novas responsabilidades, Joanna reaparece exigindo a guarda da criança. Ted porém se recusa e os dois vão para o tribunal lutar pela guarda de Billy.

Em 1980, Kramer vs. Kramer venceu o Globo de Ouro como melhor filme. É um dos filmes com maior premiação do Oscar. De 9 indicações, ganhou nas categorias de melhor filme, melhor diretor (Robert Benton), melhor roteiro adaptado. Dustin Hoffman foi considerado o melhor ator e Meryl Streep ganhou o Oscar de melhor atriz coadjuvante.

5 – Querem me enlouquecer (Nuts), de 1987, é um filme marcante, dirigido por Martin Ritt. Com elenco de peso, integrado por Barbra Streisand, Richard Dreyfuss (no papel de advogado), Maureen Stapleton, o veterano Karl Malden, Leslie Nielsen (ainda desconhecido) e Eli Wallach, o filme, bem atual, retrata a vida de Claudia Graper (Barbra Streisand), uma prostitura de luxo, que assassina Allen Green (Leslie Nielsen), para se defender de ofensas físicas.

A defesa alega insanidade mental, como excludente de culpabilidade, com apoio dos pais da acusada, Arthur e Rose Kirk (Karl Malden e Maureen Stapleton), pois, imaginam que esta era a estratégia correta para evitar a condenação de sua filha, ainda que o preço fosse sua detenção em instituição de tratamento mental.

Todavia, a cliente discorda veementemente dessa linha de defesa. Assim, Claudia resolve consituir como advogado Aaron Levinsky (Richard Dreyfuss), cujo dever profissional passa a ser o de produzir prova de que sua cliente goza de perfeita sanidade e é inocente.

A ética e a consciência profissional do advogado nessa trama são dignos de reflexão!

O filme ganhou o Globo de Ouro e recebeu 3 indicações para o Oscar, na categoria de melhor filme, melhor atriz (Barbra Streisand) e melhor ator coadjuvante (Richard Dreyfuss).

6 – Por fim, um dos melhores filmes que já assisti é O julgamento final (Class Action), de 1991, que tem como protagonistas Gene Hackman e Mary Elizabeth Mastrantonio, como coadjuvantes, Laurence Fishburne, Colin Friels e Donald Moffat, e como diretor, Michael Apted.

A trama é instigante para quem se interessa não tanto pelo sistema processual norte-americano, mas, muito mais, pelos problemas éticos que são suscitados no desenrolar do filme e que, efetivamente, merecem atenção, até porque são os mesmos que enfrentamos no exercício da profissão de advogado, na esfera do contencioso.

Ambientado na cidade de San Francisco, tem como pano de fundo o relacionamento de amor e ódio entre o experiente e famoso advogado Jedediah Tucker Ward (Gene Hackman), sempre brilhante e irreverente, que dedicou a sua vida em busca de justiça para os mais fracos e às causas inglórias, não obstante à frente de um minúsculo e simples escritório de advocacia, e ninguém menos do que sua filha, a jovem e ambiciosa advogada Maggie Ward (Mary Elizabeth Mastrantonio), associada de uma das mais importantes bancas de advocacia dos Estados Unidos.

O papel de ambos é intenso: o cativante desempenho de Gene Hackman, lembrando aquele maroto, de 20 anos atrás, que lhe fez vencer o Oscar pela atuação de melhor ator em Operação França; o de Mary Mastrantonio, sem dúvida, disparada a melhor de todas as suas atuações, incluindo aquela do mesmo ano de 1991, como a charmosa Lady Mariam, em Robin Hood: o príncipe dos ladrões.

Descortina-se, com efeito, um duelo de todo diferente, no qual o tribunal torna-se o palco de batalha para as rivalidades entre pai e filha, quando se deparam frente a frente numa causa milionária. A rigor, apesar do inusitado da situação, inexiste qualquer impedimento ético ou legal nessa circunstância… Não obstante, no drama do filme, há muito mais do que dinheiro envolvido!

A mensagem que este belo filme deixa, sobretudo aos iniciados em direito, é a tensão dialética entre os advogados que atuam norteados por um comportamento ético desejável e o perfil daqueles profissionais que agem sem quaisquer escrúpulos, demonstrando mínimo conhecimento de deontologia (teoria dos deveres) forense!

Na verdade, a atuação profissional de Maggie, embora fruto de ficção, constitui, em qualquer experiência jurídica do planeta, um verdadeiro padrão, a possibilitar a delimitação objetiva na liberdade de escolha deste ou daquele caminho ético.

Cumprimentando, por fim, meus colegas leitores, tenho certeza de que assistir a estes filmes é divertimento garantido!

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