Opinião

STF afronta literalidade da Constituição e normaliza o retrocesso

Autor

  • Viktor Ruppini Prado

    é advogado no escritório Ruppini Advocacia e Consultoria Jurídica doutorando em Derecho Económico y de la Empresa na Universidad de Deusto (Bilbao Espanha) e subcoordenador do Grupo de Estudos Direito Constituição e Justiça na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

30 de abril de 2020, 13h29

Como constante nas últimas duas décadas, as atenções dos espaços públicos se voltaram ao Supremo Tribunal Federal no julgamento de questões de grande impacto na sociedade brasileira, a exemplo do que fora realizado no último dia 17, tratando sobre a liminar monocrática concedida parcialmente pelo ministro Ricardo Lewandowski no âmbito da ADI n° 6.363/DF.

A ADI 6.363/DF, movida pela Rede Sustentabilidade, questiona a constitucionalidade de diversos dispositivos e expressões na Medida Provisória n° 936, de 1º de abril, que traz medidas trabalhistas complementares para o enfrentamento da calamidade pública causada pelo estado atual de emergência de saúde pública relativa ao coronavírus (Covid-19).

Entre os dispositivos questionados na MP n° 936/2020, destaca-se o §4° do artigo 11, que permite a celebração de "acordos individuais" promovendo a redução de jornada e de salário. O artigo 12 da Medida Provisória também prevê que a redução proporcional de jornada de trabalho e salários poderá ser celebrada por meio de acordos individuais no caso de: I) empregados com salário igual ou inferior a R$ 3.135; ou II) portadores de diploma de nível superior e que recebam salário mensal igual ou superior a duas vezes o teto dos benefícios do Regime Geral da Previdência Social, limite este que hoje é de R$ 6.101,06.

Inicialmente, o relator concedeu parcialmente liminar monocrática ao pedido cautelar formulado na ADI, para dar interpretação conforme a Constituição ao artigo 11, §4°, da MP, devendo os empregadores então comunicar aos respectivos sindicatos de trabalhadores a celebração dos acordos individuais no prazo de dez dias, contados da celebração, para que, caso queiram os sindicatos, deflagre-se negociação coletiva.

Não obstante a restrição promovida na liminar do relator não preservar a integralidade do texto constitucional, o Tribunal Pleno do STF sequer referendou os termos da liminar monocrática, restando vencidos o próprio relator e os ministros Rosa Weber e Edson Fachin, estes últimos que entendiam pela concessão integral da medida cautelar, para suspender integralmente o artigos 11, §4°, e 12 da Medida Provisória, bem como as expressões referentes a acordo individual previstas nos artigos 7°, 8º e 9° da MP nׄ° 936/2020.

Ao decidir dessa forma, a Corte Constitucional afrontou diretamente a literalidade da Constituição do Brasil quanto às garantias mínimas aos trabalhadores, representando verdadeira "normalização" de um processo de retrocesso em direitos sociais, a partir de uma jurisdição constitucional "de exceção", recheada de traços solipsistas.

Ora, se a literalidade dos incisos VI e XIII do artigo 7° da Carta Política condicionam a possibilidade de redução dos salários e da jornada de trabalho somente por meio de acordo ou convenção coletiva, é flagrantemente inconstitucional qualquer legislação que permita a celebração de acordos individuais envolvendo essas cláusulas econômicas dos contratos de trabalho, ainda que em tempos de graves crises.

Mesmo que não seja novidade na jurisdição constitucional como no total imbróglio jurisprudencial sobre a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, resolvida no julgamento das ADCs 43, 44 e 54 , o STF ignorou a literalidade da Constituição de forma (mais uma vez) excepcional, sob os argumentos de que o marco legal proposto busca uma "solução da atual crise" e uma "proteção do emprego".

Por algum motivo que me ainda é incompreensível, aparentemente nossa Corte Constitucional promove um enunciado muito danoso em termos de interpretação e teoria do direito no Brasil. A Constituição não deve servir apenas em tempos de "normalidade institucional", e sim deve pautar sempre todas as decisões públicas na jurisdição brasileira.

A Constituição representa, nesse aspecto, um marco civilizatório mínimo  que contém, desde sua concepção, mecanismos que promovam medidas institucionais nos tempos de crise como a intervenção federal, o estado de defesa e o estado de sítio , não havendo qualquer coerência ou integridade do Supremo Tribunal Federal em afastar a literalidade da Constituição ad hoc sob o argumento de enfrentamento de uma crise, como a atual. Se não preservamos a Constituição, sob quais escombros nós nos ergueremos após o fim da crise?

A excepcionalidade do momento sequer justificaria, de forma técnica, a necessidade de celebração dos acordos individuais, tendo em vista os avanços tecnológicos na deflagração de negociações entre trabalhadores e empregadores. Nesse ponto, de acordo com estudo do Dieese [1], acordos coletivos celebrados desde o início da crise econômica causada pela pandemia da Covid-19 já atingiram 2,4 milhões de trabalhadores.

Destarte, com a chancela da precarização e do retrocesso pelo Tribunal Pleno do STF em face às medidas tomadas pelo Governo Federal na MP n° 936/2020, que afrontam a literalidade dos direitos fundamentais de irredutibilidade do salário e redução da jornada senão por meio de negociação coletiva de trabalho, configura-se cenário de notório retrocesso em termos de direitos econômicos e sociais, bem como situação de afronta aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil em termos de proteção do trabalho.

Caso o Supremo não reveja sua posição ao julgar definitivamente a ADI n° 6.363/DF, pode-se configurar situação de retrocesso, incompatível com o comprometimento do Estado brasileiro em promover o desenvolvimento progressivo sobre direitos econômicos e sociais, previsto no Artigo 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH).

Sob esse ponto, o Protocolo Adicional à CADH em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador) garante o direito às condições justas, equitativas e satisfatórias de trabalho, com proteção ao salário e à jornada de trabalho (artigo 7) e direitos sindicais para promover os interesses dos trabalhadores (artigo 8), não podendo o Brasil promover mitigação desses direitos em relação à proteção fundamental estabelecida em sua Constituição, sob o argumento de excepcionalidade.

Igualmente, a posição brasileira poderá refletir em descumprimento das Convenções n° 98 (Direito de Sindicalização e Negociação Coletiva) e nº 154 (Fomento à Negociação Coletiva) da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ambas ratificadas pelo Brasil, o que abre a possibilidade de denúncias do país junto à Repartição Internacional do Trabalho da OIT por não assegurar satisfatoriamente a execução das ditas convenções.

De acordo com as Convenções n° 98 e nº 154 da OIT, o Brasil se comprometeu a "fomentar e promover o pleno desenvolvimento e utilização dos meios de negociação voluntária" nas relações de trabalho (artigo 4 da Convenção n° 98) e a tomar medidas de estímulo à negociação coletiva (artigo 5 da Convenção n° 154), que representam ações em sentido contrário àquela adotada na MP n° 936/2020 e provisoriamente chancelada pelo STF, apesar dos termos constitucionais.

Assim, a excepcionalidade que rejeita a literalidade da Constituição não representa somente um desrespeito à ordem constitucional brasileira, mas também infere em uma violação dos compromissos do país para com direitos pactuados no cenário internacional, o que implica, ainda mais, na necessidade do Supremo Tribunal Federal de agir como verdadeiro guardião da Carta Política, precipuamente nesses tempos de crise, sob possibilidade de, caso contrário, cairmos em uma barbárie vulgar e autoritária da excepcionalidade.

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  • é advogado no escritório Ruppini Advocacia e Consultoria Jurídica, doutorando em Derecho Económico y de la Empresa na Universidad de Deusto (Bilbao, Espanha) e subcoordenador do Grupo de Estudos Direito, Constituição e Justiça na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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