Opinião

Medida Provisória 905: revogação e proibição de reedição

Autor

  • Gustavo Filipe Barbosa Garcia

    é livre-docente e doutor pela Faculdade de Direito da USP pós-doutor e especialista em Direito pela Universidad de Sevilla professor advogado e membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho e membro pesquisador do IBDSCJ. Foi juiz procurador e auditor fiscal do Trabalho.

25 de abril de 2020, 13h52

A Medida Provisória 955, de 20 de abril de 2020, revoga a Medida Provisória 905, de 11 de novembro de 2019, que institui o contrato de trabalho verde e amarelo e altera a legislação trabalhista.

A referida Medida Provisória 955/2020 entra em vigor na data de sua publicação, ocorrida no Diário Oficial da União de 20/04/2020, edição extra.

A Medida Provisória 905/2019, que teve o período de vigência prorrogado pelo prazo de 60 dias, na forma do art. 60, § 7º, da Constituição Federal de 1988, tem vigência até 20 de abril de 2020.

Quanto ao processo legislativo, o Projeto de Lei de Conversão 6/2020, proveniente da Medida Provisória 905/2019, foi aprovado pela Câmara dos Deputados, em 14 de abril de 2020, com modificações quando comparado com o texto original, e remetido ao Senado Federal, em 15 de abril de 2020, mas não chegou a ser por este votado[1].

De todo modo, na tarde do último dia de vigência da Medida Provisória 905/2019, a Medida Provisória 955/2020 foi publicada, dispondo que fica revogada aquela.

Como a Medida Provisória 905/2019 tem a vigência encerrada justamente em 20 de abril de 2020, é possível questionar se a Medida Provisória 955/2020, editada na mesma data, preenche os requisitos de relevância e urgência (art. 62 da Constituição da República).

Em tese, como as medidas provisórias têm força de lei, pode ocorrer revogação de lei ou de medida provisória por medida provisória posterior convertida em lei.

De modo mais preciso, segundo esclarece a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: “2. Medida provisória não revoga lei anterior, mas apenas suspende seus efeitos no ordenamento jurídico, em face do seu caráter transitório e precário. Assim, aprovada a medida provisória pela Câmara e pelo Senado, surge nova lei, a qual terá o efeito de revogar lei antecedente. Todavia, caso a medida provisória seja rejeitada (expressa ou tacitamente), a lei primeira vigente no ordenamento, e que estava suspensa, volta a ter eficácia” (STF, Pleno, ADI 5.709/DF, Rel. Min. Rosa Weber, DJe 28.06.2019).

Há notícias de que se objetiva editar uma medida provisória específica sobre o contrato de trabalho verde e amarelo para o período de pandemia da covid-19[2] e que a revogação teria ocorrido para permitir a reapresentação este ano em novo texto[3].

Entretanto, o art. 62, § 10, da Constituição Federal de 1988, incluído pela Emenda Constitucional 32/2001, estabelece ser vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo.

Embora a questão possa gerar controvérsia[4], a interpretação teleológica desse preceito indica que se a medida provisória foi editada na sessão legislativa passada, mas foi rejeitada ou perdeu eficácia na sessão legislativa atual, é vedada a sua reedição nesta[5].

A sessão legislativa ordinária inicia-se em 02 de fevereiro e encerra-se em 22 de dezembro, pois nos termos do art. 57 da Constituição da República, o Congresso Nacional reúne-se, anualmente, na Capital Federal, de 02 de fevereiro a 17 de julho e de 1º de agosto a 22 de dezembro.

Além disso, como já decidido pelo Supremo Tribunal Federal: “8. É vedada reedição de medida provisória que tenha sido revogada, perdido sua eficácia ou rejeitada pelo Presidente da República na mesma sessão legislativa. Interpretação do § 10 do art. 62 da Constituição Federal” (STF, Pleno, ADI 5.709/DF, Rel. Min. Rosa Weber, DJe 28.06.2019).

Ou seja, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: “5. Impossibilidade de reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória revogada, nos termos do prescreve o art. 62, §§ 2º e 3º. Interpretação jurídica em sentido contrário importaria violação do princípio da Separação de Poderes. Isso porque o Presidente da República teria o controle e comando da pauta do Congresso Nacional, por conseguinte, das prioridades do processo legislativo, em detrimento do próprio Poder Legislativo. Matéria de competência privativa das duas Casas Legislativas (inciso IV do art. 51 e inciso XIII do art. 52, ambos da Constituição Federal)” (STF, Pleno, ADI 5.709/DF, Rel. Min. Rosa Weber, DJe 28.06.2019).

Na mesma linha, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal: “5. O sistema instituído pela EC nº 32 leva à impossibilidade – sob pena de fraude à Constituição – de reedição da MP revogada, cuja matéria somente poderá voltar a ser tratada por meio de projeto de lei. 6. Medida cautelar indeferida” (STF, Pleno, MC-ADI 2.984/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 14.05.2004).

Mesmo que a Medida Provisória 955/2020 (norma revogadora) não seja convertida em lei, como a Medida Provisória 905/2019 teria o seu prazo de vigência encerrado na mesma data daquela, sem ter sido convertida em lei, ocorreria a sua perda de eficácia desde a edição (art. 62, § 3º, da Constituição Federal de 1988). Nessa hipótese, o Congresso Nacional deve disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas dela decorrentes. Entretanto, se não for editado o mencionado decreto legislativo até 60 dias após a rejeição ou perda de eficácia da Medida Provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante a sua vigência conservar-se-ão por ela regidas (art. 62, § 11, da Constituição da República).

É importante o registro de que nas informações sobre a tramitação da Medida Provisória 905/2019 no Congresso Nacional consta, como último estado, “sobrestada”, com o esclarecimento, em 23.04.2020, de que: “Os prazos de tramitação e a vigência da MPV 905/2019 ficarão suspensos até que seja ultimada a votação da MPV 955/2020 nas duas Casas do Congresso Nacional”[6].

A previsão parece seguir a diretriz indicada na seguinte decisão do Supremo Tribunal Federal: “1. Porque possui força de lei e eficácia imediata a partir de sua publicação, a Medida Provisória não pode ser ‘retirada’ pelo Presidente da República à apreciação do Congresso Nacional. Precedentes. 2. Como qualquer outro ato legislativo, a Medida Provisória é passível de ab-rogação mediante diploma de igual ou superior hierarquia. Precedentes. 3. A revogação da MP por outra MP apenas suspende a eficácia da norma ab-rogada, que voltará a vigorar pelo tempo que lhe reste para apreciação, caso caduque ou seja rejeitada a MP ab-rogante. 4. Consequentemente, o ato revocatório não subtrai ao Congresso Nacional o exame da matéria contida na MP revogada” (STF, Pleno, MC-ADI 2.984/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 14.05.2004).

Cabe fazer referência, entretanto, ao seguinte julgado, posterior, do Supremo Tribunal Federal: “3. De outra parte, o ato de revogação pura e simples de u’a medida provisória outra coisa não é senão uma auto-rejeição; ou seja, o autor da medida a se antecipar a qualquer deliberação legislativa para proclamar, ele mesmo (Poder Executivo), que sua obra normativa já não tem serventia. Logo, reeditá-la significaria artificializar os requisitos constitucionais de urgência e relevância, já categoricamente desmentidos pela revogação em si” (STF, Pleno, MC-ADI 3.964/DF, Rel. Min. Carlos Britto, DJe 11.04.2008).

Se, por hipótese, a revogação da Medida Provisória 905/2019 ficar consolidada por conversão em lei da Medida Provisória 955/2020 (embora esta, como mencionado, pareça não preencher os requisitos de relevância e urgência), sem entrar no mérito quanto a questões relativas à constitucionalidade material da Medida Provisória 905/2019, é possível dizer que esta produz efeitos durante a sua vigência, e, embora não mais em vigor, como princípio, deve-se respeitar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal de 1988 e art. 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) que possam ter se formado no período de vigência da Medida Provisória 905/2019.

Caso uma nova Medida Provisória seja editada na atual sessão legislativa, ao versar sobre matéria tratada na Medida Provisória 905/2019, poderá ter a sua constitucionalidade formal questionada, inclusive perante o Supremo Tribunal Federal, em razão da vedação de reedição estabelecida no § 10 do art. 62 da Constituição Federal de 1988[7].

Como se pode notar, a edição de diversas medidas provisórias, sobre temas variados e complexos, inclusive com o objetivo de revogação de uma por outra, tem gerado nítida instabilidade legislativa e consequente insegurança jurídica.

 


[1] Cf. BRASIL. Congresso Nacional. Medida Provisória n° 905, de 2019. Disponível em: <https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/139757>. Acesso em: 22 abr. 2020.

[2] Cf. BRASIL. Câmara dos Deputados. Bolsonaro anuncia revogação da medida provisória que criou o Contrato Verde e Amarelo, 20 de abril de 2020. Fonte: Agência Câmara de Notícias. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/655313-bolsonaro-anuncia-revogacao-da-medida-provisoria-que-criou-o-contrato-verde-e-amarelo/>. Acesso em: 21 abr. 2020.

[3] Cf. BRASIL. Câmara dos Deputados. Governo revoga MP do contrato verde e amarelo e vai editar novo texto, 22 de abril de 2020. Fonte: Agência Câmara de Notícias. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/655639-governo-revoga-mp-do-contrato-verde-e-amarelo-e-vai-editar-novo-texto/>. Acesso em: 22 abr. 2020.

[4] Cf. BRASIL. Senado Federal. Governistas querem votação da MP do contrato verde e amarelo; Davi pede reedição. Rodrigo Baptista, 20 de abril de 2020: “Segundo entendimento da Mesa reforçado pelo presidente do Senado, não há empecilho para o governo reeditar a MP neste ano, já que o texto original foi editado em 2019, na sessão legislativa passada”. Fonte: Agência Senado. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/04/20/governistas-querem-votacao-da-mp-do-contrato-verde-e-amarelo-davi-pede-reedicao>. Acesso em: 24 abr. 2020.

[5] “9. O problema jurídico que ora se põe, enfatizo, está circunscrito à observância do § 10 do art. 62, que veicula proibição de reedição de medida provisória na mesma sessão legislativa em que tenha ocorrido sua rejeição ou perda de eficácia, como mecanismo procedimental de limitação do abuso no exercício da função legiferante pelo Poder Executivo da União” (STF, Pleno, ADI 5.709/DF, Rel. Min. Rosa Weber, j. 27.03.2019, voto da Ministra Relatora).

[6] BRASIL. Congresso Nacional. Medida Provisória n° 905, de 2019. Disponível em: <https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/139757>. Acesso em: 24 abr. 2020.

[7] “7. Qualquer solução jurídica a ser dada na atividade interpretativa do art. 62 da Constituição Federal deve ser restritiva, como forma de assegurar a funcionalidade das instituições e da democracia. Nesse contexto, imperioso assinalar o papel da medida provisória como técnica normativa residual que está a serviço do Poder Executivo, para atuações legiferantes excepcionais, marcadas pela urgência e relevância, uma vez que não faz parte do núcleo funcional desse Poder a atividade legislativa” (STF, Pleno, ADI 5.709/DF, Rel. Min. Rosa Weber, DJe 28.06.2019).

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    é livre-docente e doutor pela Faculdade de Direito da USP, pós-doutor e especialista em Direito pela Universidad de Sevilla, professor, advogado e membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho e membro pesquisador do IBDSCJ. Foi juiz, procurador e auditor fiscal do Trabalho.

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