Opinião

Testemunha nas arbitragens doméstica e internacional

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20 de abril de 2020, 12h39

O sistema jurídico, a partir do século 12, dividiu-se entre o civil law e o common law ante a adoção das diferentes formas de aplicar o Direito e de resolver as disputas. Pelo lado do direito romano (civil law), o sistema é baseado na lei, sendo o magistrado o especialista nela. Assim, as partes levavam a disputa ao magistrado ou ao juiz e estes, como experts legais, definiam o que seria preciso fazer para chegar à decisão final, em especial quais as provas necessárias. Tendo tal compreensão da lei, o juiz colhia das testemunhas e partes o essencialmente necessário para decidir o caso, desprezando o que não conduzia àquele resultado. As partes não precisavam dar muitas explicações orais ao juiz, que buscaria na lei a resposta para o caso (subsunção). O processo, destarte, era inquisitorial, com o juiz adotando postura ativa, até porque era obrigado a dar a sentença no mesmo dia, ante o princípio da imediatidade (one day rule) [1], embora o número de testemunhas fosse importante para demonstrar a "verdade". [2]

No sistema do Direito costumeiro inglês (common law), são as decisões jurisdicionais que firmam os precedentes, estabelecendo como a sociedade deve se comportar, posto que a lei feudal era considerada atrasada e afastada da realidade do povo. Nesse formato, era comum a decisão ser tomada por jurados, pessoas representando a sociedade, que dariam melhor resposta para o caso concreto do que a lei abstrata. [3] As partes tinham de levar todos os elementos de que dispunham (ainda que contrários ao seu interesse) para que os jurados pudessem compreender os aspectos fáticos e legais. Os advogados ofertavam oralmente os argumentos e levavam as pessoas que presenciaram as ocorrências ou soubessem dos documentos. Ter a possibilidade de apresentar o seu caso em corte (day in court), com todos os elementos possíveis, e poder rebater os argumentos contrários, portanto, passa a ser um direito básico para o exercício da cidadania e a garantia do due process of law. O processo, assim, passa a ser adversarial, com as partes se digladiando em suas teses, enquanto o julgador assume uma postura mais observadora, apenas garantindo a igualdade de armas, limitando-se apenas aos elementos trazidos pelas partes. [4]

No common law, assim, todas as pessoas envolvidas com o episódio passam a ser testemunhas, sendo necessário seus depoimentos. E, para que a sociedade (representada pelos jurados) possa tomar uma decisão que passe a ser “precedente”, essas testemunhas devem se obrigar com a verdade (inclusive as partes, sob pena de sanção criminal). [5]

No sistema latino, em que a sentença resolve apenas aquele caso (a lei traz a regra geral de comportamento esperada da sociedade), o jurista compreende que os depoimentos das partes, de parentes próximos, inimigos ou amigos íntimos tendem a não ser completamente isentos, pois faz parte da natureza humana proteger os próximos, sendo considerado despido de sentimento exigir das pessoas que prestem depoimentos que possam prejudicar a si próprio, um filho, o esposo ou seu amigo íntimo (artigos 388 e 448 do CPC). E, para que tais distorções não contaminem o resultado da sentença, a lei processual brasileira [6] impede (art.igo 447 do CPC) o depoimento ou impõe ao juiz a valoração diferenciada dele (de acordo com as técnicas jurídicas e as circunstâncias do caso), inclusive dispensando o compromisso de dizer a verdade (artigo 447, § 5º, do CPC). [7]

Embora bastante superficial a narrativa (até porque os países acabaram adotando práticas do outro sistema ou mesmo experiências distintas, de acordo com o seu próprio desenvolvimento histórico) [8], percebemos que as audiências do civil law tendem a ser mais enxutas, durando por vezes apenas alguns minutos, enquanto no common law podem durar semanas. No civil law os advogados expõem previamente por escrito e em detalhes os seus argumentos e provas, ao passo que no common law eles fazem a maior parte desse trabalho de modo oral, na audiência. [9]

Seguindo o sistema adotado pela common law (Arbitration Act 1996, s. 38(5)), as regras de arbitragem da CIArb (Chartered Institute of Arbitrators) e da Associação dos Advogados Internacionais (IBA Rules on the Taking of Evidence in International Arbitration), apenas para mencionar algumas, permitem que qualquer pessoa possa prestar depoimento como testemunha, incluindo a própria parte ou seu representante (IBA, artigo 4.2, and CIArb 27.2), inclusive sob o compromisso de dizer a verdade (IBA, arts. 4.5.d e 8.4 — Ciarb Managing Arbitrations and Procedural Orders, endnotes nº 15), o que difere muito do padrão brasileiro.

Lex arbitri
A cláusula que rege a arbitragem, como princípio internacionalmente aceito, possui vida independente e autônoma em relação ao contrato do negócio no qual ela foi inserida (artigo 8º da Lei de Arbitragem brasileira — LA). [10] A lei que rege a cláusula da arbitragem (lex arbitri) vai depender do local onde a arbitragem será sediada (seated). [11] Se a arbitragem for sediada em Londres, será aplicável a lei inglesa (Arbitration Act 1996). Se a arbitragem for sediada em São Paulo, será regida pela Lei de Arbitragem brasileira, pouco importando qual foi a língua ou o direito escolhido pelas partes para a solução da disputa de fundo. Uma arbitragem sediada no Brasil pode ser feita em inglês, adotar a regulamentação de uma instituição francesa para a sua operacionalidade (a respeito dos procedimentos da arbitragem) e ter a Convenção da ONU sobre Comércio Internacional (CISG) como a fonte jurídica para resolver a disputa (ou seja, a norma que será utilizada para a decisão final do litígio).

Ao definirem onde será sediada a arbitragem (seat), as partes escolhem como consequência a lei que regulamentará seus princípios mínimos (lex arbitri): capacidade para contratar a arbitragem (arbitrabilidade subjetiva) ou para ser árbitro, requisitos de validade, objeto (arbitrabilidade objetiva), tutelas emergenciais, mecanismos de intervenção judicial, entre outros. No nosso exemplo, sediada no Brasil (ainda que em outra língua, com algumas audiências realizadas em outro país, utilizando regulamento de uma instituição internacional e aplicando uma legislação estrangeira para a solução do conflito), a lei que regerá os princípios básicos do procedimento será a LA brasileira.

Jurisdição contratual e definição quanto à oitiva de testemunhas
A arbitragem é aplicável para direitos patrimoniais disponíveis [12] (as partes podem deles dispor livremente). Se assim o é, elas são livres para definir o procedimento que será utilizado para o modo de resolução de eventual conflito, inclusive podendo limitar o número ou mesmo dispensar o uso de testemunhas (tratando-se de regra consensual, aplicável a todas as partes, não se encontra violado o princípio da ampla defesa). Embora os árbitros possam determinar a realização das provas de ofício (artigo 22 da LA), só poderão fazê-lo naquelas possibilidades acordadas pelas partes ou no caso de omissão regulamentar, pois do contrário estariam agindo fora dos limites da convenção arbitral.

A Lei de Arbitragem, que regerá as arbitragens sediadas no Brasil, diz pouco sobre a colheita de depoimentos testemunhais, mas deixa clara a separação deles da tomada do depoimento pessoal (artigo 22). A parte, portanto, numa arbitragem sediada no Brasil (sob a sua lex arbitri), não pode ser ouvida como testemunha, ainda que o regulamento assim o preveja. E a recusa ou a ausência da parte não acarreta a confissão (aplicando-se a regra do artigo 22, § 2º).

Quanto às testemunhas, ausente acordo das partes disciplinando o procedimento ou inexistente regulamento específico da instituição arbitral, cabe aos árbitros escolher o procedimento mais adequado para a demanda (artigo 21, §1º, da LA). No entanto, tratando-se do direito de provar as alegações, aos litigantes que não renunciaram a ele deve ser garantido a ampla defesa (artigo 5º, LV, da CF). Assim, ausente regra definida pelas partes, os árbitros não podem impedir o uso de prova testemunhal (salvo nos casos de sua dispensabilidade — artigo 443 do CPC) e devem observar de modo subsidiário o procedimento previsto no CPC (artigo 318), inclusive quanto aos impedimentos ou suspeições (artigo 447). [13]

Se as partes decidiram aplicar as regras de alguma instituição de arbitragem ou regulamento estrangeiro, essa será a norma aplicável. Se tal regulamento definir que até mesmo seus parentes, inimigos ou amigos ou íntimos podem servir como "testemunhas", o tribunal arbitral não poderá indeferir tal prova com base no CPC, e deve valorá-la quando do julgamento. Como já referido, tratando-se de direito disponível, a livre vontade das partes deve ser respeitada. Ainda que aquelas pessoas possam ser ouvidas, o tribunal arbitral sediado no Brasil não poderá exigir-lhes o compromisso de dizer a verdade, mesmo que o regulamento assim o determine.

Testemunhas vinculadas à parte e o compromisso de dizer a verdade
O compromisso com a verdade em depoimento prestado na arbitragem acarreta um efeito gigantesco para as testemunhas, pois o não cumprimento dele acarreta a caracterização de crime, com pena de reclusão de 2 a 4 anos e multa (artigo 342 do Código Penal). Só que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei (artigo 5º, II, da Constituição Federal), e a lei brasileira dispensa parentes próximos, as partes, representantes ou amigos íntimos de se comprometer com a verdade e de responder criminalmente por isso (artigo 447, § 5º, do CPC). E nenhum regulamento ou ajuste privado pode exigir dessas pessoas que façam o juramento de dizer a verdade perante o árbitro (muito menos sob risco de sanção penal). Como referido, há a premissa de vínculo emocional bastante forte dessas pessoas com as partes, e não poderia um regulamento privado exigir delas, sem qualquer previsão legal, que viessem a prestar depoimento que pudesse prejudicar a si próprios ou seus familiares (artigo 448 do CPC).

Caso o regulamento preveja a possibilidade de ouvir tais pessoas, mesmo que o depoimento seja impedido pelas normas do CPC, o tribunal arbitral pode colher tais declarações, eis que diante de um procedimento em jurisdição privada e sobre direitos disponíveis. Não pode, no entanto, exigir o compromisso de dizer a verdade, mesmo que o regulamento assim o estabeleça. É vedado tentar impor às pessoas uma obrigação contrária às suas garantias pessoais expressamente estabelecidas em lei. Admitir isso seria criar tipo penal por regra privada, o que é de todo inadmissível no Brasil (artigo 5º, XXXIX, da C.F).

Caso o tribunal arbitral, conhecendo da condição pessoal protegida legalmente [14], venha a providenciar a condução judicial coercitiva ou compromissar a testemunha, esses atos não terão validade legal. Além disso, os árbitros que assim procederem podem acarretar danos indevidos às pessoas (morais ou materiais), o que pode fazer surgir a obrigação de sua reparação.

Assim, seria mais adequado que as arbitragens sediadas no Brasil simplesmente seguissem o padrão adotado pelo CPC quanto à oitiva de testemunhas, até porque os profissionais do direito se encontram familiarizados com o procedimento. De todo modo, não está impedido o uso de regulamento diverso e, portanto, caso assim esteja previsto, qualquer pessoa pode ser ouvida como testemunha. Todavia, nessa hipótese, o tribunal arbitral não poderá exigir do depoente o compromisso ou juramento de dizer a verdade, caso ele se encontre nas hipóteses de dispensa dessa formalidade (normalmente nos casos de suspeição ou impedimento previstos no artigo 447 do CPC).

Reconhecimento de sentença arbitral estrangeira
Caso a sentença arbitral tenha sido resultado de um procedimento arbitral sediado no estrangeiro e cuja lex arbitri permita o depoimento, sob compromisso, de qualquer pessoa, ela poderia ser reconhecida e executada no Brasil? E se ela foi baseada exclusivamente em fatos trazidos ao tribunal arbitral por uma testemunha que, pela legislação brasileira, seria impedida (o pai de uma das partes, por exemplo) ou suspeita (amiga íntima) para ter o seu depoimento tomado sob compromisso? Não seria considerada uma questão de ordem pública ou de quebra da imparcialidade?

Caso o sistema estrangeiro preveja aquele proceder (de colher depoimento testemunhal de qualquer pessoa mediante compromisso), a condução do caso perante os contornos da lex arbitri estaria de conformidade com a ordem jurídica, e isso não seria motivo para o STJ negar reconhecimento à sentença arbitral estrangeira. Se a lei local admite que um familiar preste depoimento como testemunha, mediante compromisso, tal procedimento eventualmente adotado pelos árbitros preencheria o comando da legalidade aplicável ao caso. Se o sistema local admite aquela prova como válida e aplicável a todas as partes, indistintamente, não há quebra da imparcialidade ou do devido processo legal.

E mesmo que houvesse alguma violação à lex arbitri, caberia à parte interessada, ao menos em regra, questionar o procedimento ou o julgado diretamente no Judiciário daquele país, pois no reconhecimento de sentença estrangeira o STJ não avalia o contorno da legalidade do procedimento em face da lei local, mas tão somente se a convenção de arbitragem estava conforme aquela lei (artigo 38, II, da LA). Apenas outras circunstâncias mais graves é que poderiam ser utilizadas como fator impeditivo à homologação (artigos 38 e 39 da LA).

Os profissionais do Direito acostumados ao seu sistema e à sua cultura podem se assustar com o procedimento adotado pelo outro, mas isso é simplesmente o resultado de diferentes costumes, e que cada vez mais precisa ser objeto de atenção daqueles envolvidos com a arbitragem internacional.

 


[1] Ernest Metzger, “Roman Judges, Case Law, and Principles of Procedure”, LHRS, 2004, p. 265-270

[2] John H. Wigmore, “Required Numbers of Witnesses; A Brief History of the Numerical System in England”, HLV, 1901.

[3] George Burton Adams, “The origin of the common law”, YLJ, 1924

[4] Veja: Anna Kubalczyk, “Evidentiary Rules in International Arbitration – A Comparative Analysis of Approaches and the Need for Regulation” (JGIL, 2015)

[5] As regras do procedimento civil inglês preveem no formulário da inicial ou contestação o compromisso, assinado pela respectiva parte, de que os fatos são verdadeiros (Practice Direction 22 – Statements of Truth).

[6] A lei processual de Portugal impede de depor como testemunha apenas as partes. Os parentes, cônjuges e companheiros possuem o direito de recusar-se a depor (arts. 496 e 497 do Código de Processo Civil), mas os amigos não possuem tal privilégio. A argentina impede o depoimento de parentes próximos (Código de Processo Civil, art. 427), e os demais devem prestar o compromisso (art. 440).

[7] Nesse ponto específico o CPC acabou deslizando. Explica-se: A parte ou seu representante é impedida de ser testemunha (art. 447, §2º, II e III), sendo interrogada (art. 379, I) e, no entanto, é aqui (art. 447, § 5º) tratada como testemunha.

[8] Veja: Nuno Garoupa & Andrew P. Morriss, “The Fable of the Codes: The Efficiency of the Common Law, Legal Origins, and Codification Movements”, 2012 U. Ill. L. Rev. 1443

[9] Clémence Prevot, “The Taking of Evidence in International Commercial Arbitration: A Compromise Between Common Law and Civil Law”, DRJ 71(2), 2016

[10] José Lucio Munhoz, “Princípio Competência-Competência na Arbitragem”, 2020, in: https://www.conjur.com.br/2020-jan-24/jose-munhoz-principio-competencia-competencia-arbitragem

[11] E aqui não estamos falando do local onde é produzida a sentença arbitral, que também pode ser diverso da sede da arbitragem, tendo efeitos distintos quanto ao reconhecimento ou execução (art. 34, par. único, da LA).

[12] Ou, ainda, os direitos indisponíveis transigíveis, em algumas hipóteses.

[13] Entendemos que o rol dos impedimentos ou suspeições do art. 447 do CPC não é taxativo, pois a testemunha deve ser imparcial, com as mesmas causas de suspeições e impedimento de magistrados (arts. 144 e 145 c/c art. 148, III, todos do CPC).

[14] Apenas em relação às perguntas que deve fazer de ofício, antes do depoimento (art. 457 do CPC)

Autores

  • é advogado, Juiz do Trabalho aposentado, PhD em curso pela Universidade de Strathclyde, Pós-graduando em Arbitragem Internacional pela Universidade de Aberdeen, mestre em Direito pela Universidade de Lisboa e vice-presidente da União Ibero-Americana de Juízes. Foi conselheiro do CNJ (2011-2013) e vice-presidente da AMB (2008-2010).

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