Métodos consensuais

"Sem resolução do CNJ, solução de conflitos era feita de forma despreparada"

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19 de abril de 2020, 8h02

A Justiça do Trabalho tem o pioneirismo reconhecido no Brasil pelo prestígio aos métodos consensuais. Isso está posto no artigo 764 da CLT: o juiz deve se esforçar para buscar o consenso. Mas nem sempre foi assim.

Conforme conta o juiz Rogerio Neiva Pinheiro, ex-auxiliar na vice-presidência do Tribunal Superior do Trabalho, antes da edição da Resolução 125, do Conselho Nacional de Justiça, em 2010, não havia técnica, as reuniões eram feitas de forma "intuitiva, até mesmo despreparada e não científica. 'Na orelhada' como diz no popular".

"Até então, nunca havia sido cobrado de juiz do trabalho conhecimento técnico sobre isso. A Resolução 125 modernizou isso no Brasil", diz.

Depois de quatro anos como juiz auxiliar da Vice-Presidência do TST, de 2016 a 2020, Neiva agora está de volta ao trabalho na 10ª Região. Com 18 anos de magistratura, é conhecido por dedicar a vida acadêmica e profissional aos métodos consensuais de resolução de conflito. No tribunal superior, pôde colocar em prática todo o conhecimento necessário para evitar greves no país.

Quando chegou ao TST, buscou profissionalizar a prática da resolução adequada de conflitos. "Saio com a sensação de total tranquilidade e sensação, assim, de ultra dever cumprido, pois conseguimos êxito em diversas frentes. Na parte dos conflitos coletivos, profissionalizamos o que era amadorismo. O trabalho que a vice-presidência do TST faz hoje é de ponta", afirma.

Além disso, também é autor do livro Técnicas e estratégias de negociação trabalhista, mestre e doutorando em ciências do comportamento.

Leia abaixo a entrevista:

ConJur — Como avalia as medidas provisórias editadas pelo governo para enfrentar os reflexos da pandemia do coronavírus no mundo do trabalho?
Rogerio Neiva —
As iniciativas precisam ser compreendidas em duas perspectivas distintas: uma envolve políticas públicas de atuação sobre o sistema econômico e outra trata de aspectos normativos das relações de trabalho. Quanto à primeira frente, há unanimidade, inclusive a partir de análises históricas, de que não há outro caminho. Ou seja, cabe ao Estado promover políticas de expansão monetária e incentivo à atividade econômica, o que é louvável, ainda que se possa discutir a magnitude disso. Por exemplo, talvez seja possível questionar o parâmetro limitador do seguro-desemprego para o complemento ou compensação a ser paga no caso da suspensão do contrato de trabalho, como previsto na MP 936. 

Quanto às alterações normativas que envolvem as relações de trabalho, é preocupante a criação de mecanismos que autorizam ajustes pela via individual, que antes dependiam de negociação coletiva, tal como no caso da redução salarial. A análise de alguns é de que a crise está sendo aproveitada para uma nova reforma trabalhista. Porém, a minha grande crítica é que nesse momento o protagonismo deveria ser da negociação coletiva e para isso não precisa de medida provisória. 

ConJur — Então a negociação coletiva deve assumir o protagonismo?
Rogerio Neiva —
Se a Constituição já permite redução salarial por negociação coletiva, qual o sentido de um mecanismo legislativo que permita a redução salarial pela via individual? Não há como negar que há um déficit de protagonismo da negociação coletiva. Temos mecanismos que permitiriam encontrar saídas na negociação coletiva, principalmente com base nas diretrizes do artigo 611-A e 611-B da CLT. Se logo no início da crise a negociação coletiva tivesse assumido esse protagonismo em todos os setores, talvez não houvesse sentido a edição de uma MP prevendo redução salarial pela via individual. E não há como negar que isso vem de um contexto mais amplo e anterior à pandemia, que passa inclusive pelas dificuldades de representação plena por parte das entidades sindicais.

ConJur — O senhor diz que a resolução adequada de disputas deve ser entendida como política pública. Em que sentido?
Rogerio Neiva —
A Resolução 125 do CNJ trouxe para o Brasil a resolução adequada de disputas em 2010. Ou seja, antes do atual Código de Processo Civil. A dimensão de política pública quer dizer que o Judiciário, a partir dessa resolução, passou a ter a obrigação de atuar como um gestor de políticas públicas, como um produtor de políticas públicas voltadas ao fomento dos métodos consensuais e da resolução adequada de disputas. Todo ano acontece a Semana Nacional de Conciliação, que tanto a do CNJ quanto a do trabalhista, é um programa em que se promove uma série de atos e esforços para sensibilizar a sociedade. E aí os órgãos de imprensa têm um papel importantíssimo para que a sociedade entenda que é possível resolver os seus conflitos de forma consensual. 

ConJur — Mas cada vez mais questões do dia a dia são judicializadas. O que fazer para reverter esse cenário?
Rogerio Neiva —
A sociedade brasileira vem sendo cada vez mais conflituosa e, mais do que isso, perdendo essa capacidade de se resolver sem depender de um terceiro. Se você briga com um vizinho, qual a primeira coisa que vem a sua mente? “Eu vou te processar!” E isso é colocado para resolver na Justiça. É um atestado de fracasso em termos de capacidade de resolver os problemas. Uma das coisas que diversos estudiosos sustentam é que a dignidade da pessoa humana, que está lá no artigo 1º, inciso 3º da Constituição, precisa ser compreendida no sentido de que se deve empoderar as pessoas para que elas sejam donas do próprio destino. Soluções de consenso passam por aí. 

ConJur — A resolução consensual de conflitos é uma área autônoma dentro do Direito?
Rogerio Neiva — 
Pode se dizer que sim. Do ponto de vista epistemológico, considera-se que a resolução de disputas foi inaugurada com a Conferência Pound, que aconteceu nos Estados Unidos, em 1976, em homenagem a um dos precursores e estudioso do acesso à Justiça, Roscoe Pound. O evento foi organizado pelo então presidente da Supremo Corte americana e aconteceu no estado de Minnesota, que é considerado o marco inaugural dos métodos da resolução adequada de disputas, inclusive enquanto área de saber. É uma área interdisciplinar que faz paralelo com o Direito Processual, mas que tem influência de várias outras áreas do conhecimento, como psicologia, economia, a matemática aplicada envolvida na teoria dos jogos, as relações internacionais, dentre outras. 

ConJur — Foi daí que surgiu o termo "Justiça multidoor"?
Rogerio Neiva —
Nesse evento, em 1976, o professor Frank Sander apresentou a ideia do fórum de múltiplas portas, que resumidamente é essa forma de oferecer dentro do sistema de Justiça vários mecanismos de solução de conflitos. Falecido recentemente, Sander é o pai da ideia da Justiça multidoor, que hoje está na moda e que o atual Código de Processo Civil incorporou. O professor Kazuo Watanabe é o nosso Pound brasileiro. Ele fala que o artigo 5º, inciso 35, da Constituição, que fala do acesso à Justiça tem que ser interpretado também como acesso a um serviço de Justiça consensual de qualidade.

ConJur — O processo do trabalho e a resolução adequada de disputa eram harmônicos até então?
Rogerio Neiva — 
Sempre houve uma resistência muito grande por parte dos representantes da Justiça do Trabalho em relação aos métodos alternativos. A Justiça do Trabalho tem o pioneirismo reconhecido no Brasil do prestígio aos métodos consensuais e isso está no artigo 764 da CLT: que o juiz deve se esforçar para buscar o consenso. Mas nem sempre foi assim. Quer dizer, a gente fez a coisa de forma não técnica e intuitiva, até mesmo despreparada e não científica… “na orelhada” como diz no popular. Nunca foi cobrado de juiz do trabalho conhecimento técnico sobre isso. 

ConJur — Como foi seu percurso até chegar na Vice-Presidência do TST?
Rogerio Neiva —
Tudo nasceu do relacionamento acadêmico e institucional com um juiz de direito chamado André Gomma de Azevedo. Ele já atuava com o então conselheiro Neves Amorim, desembargador do TJ-SP, à época da gestão do ministro Joaquim Barbosa. Só depois quando veio o ministro Ricardo Lewandowski é que ele passou a atuar como juiz auxiliar do CNJ, para cuidar de políticas públicas de solução adequada. Então o conselheiro Emmanoel Campelo, filho do ministro Emmanoel Pereira, ao assumir a pauta, percebeu que a Justiça do Trabalho estava atrasada e pediu ao André Gomma uma indicação. Então eu fui chamado como representante da Justiça do Trabalho para integrar o comitê de acesso à Justiça. E depois disso nunca me afastei. Cheguei aqui em 2016, na gestão passada do ministro Emmanoel Pereira, que foi vice-presidente. Fiquei com o ministro Emmanoel, fui convidado a continuar com o ministro Renato de Lacerda Paiva, e agora estou encerrando a minha passagem pela Vice-Presidência.

ConJur — Quando você chegou no TST, procurou montar uma estrutura física na Vice-Presidência para promover a mesa de negociação. Como foi isso?
Rogerio Neiva —
  A base do diálogo, de interlocuções em reunião unilaterais e bilaterais, devem ser presididas pelo juiz auxiliar. O ministro vice-presidente não tem tempo para tocar isso, porque ele tem que cuidar de todos os REs, participa de todas as sessões da SDC, da SDI I, da SDI II, do Órgão Especial. Quando cheguei pensei no planejamento da estrutura física para dar condições ambientais de chegar a um acordo. Ou seja, dividir uma sala para cada negociação: uma do empregado, uma do empregador e outra para ficar frente a frente. E o investimento foi baixíssimo, apenas colocamos divisória e utilizamos mesas que já estavam nos tribunais. Mas o sistema brasileiro é um caldeirão. 

ConJur — A que se deve a panela de pressão?
Rogerio Neiva —
 Você junta sindicatos fragilizados, que não conseguem mobilizar as pessoas, pelo individualismo. Há um problema de um certo elitismo que houve no movimento sindical, principalmente com a ascensão do PT, que fez com que muito sindicalista distanciasse da base…

ConJur — O fim da contribuição obrigatória contribuiu para isso?
Rogerio Neiva —
 A contribuição é um problema sério, que dificulta a estrutura, mas o maior problema dos sindicatos não é a falta da contribuição, mas sim a falta de capacidade de mobilização que passa por uma série de aspectos. A começar por essa lógica do individualismo, de meritocracia, que é de achar assim “não, não vou brigar por melhores condições pela via coletiva, eu vou brigar pela vila individual”. Ao brigar pela via individual, eu não tenho interesse em me organizar coletivamente para lutar por nada. Muito pelo contrário. 

ConJur — A sua atuação como juiz auxiliar era lidar exatamente com os conflitos para evitar greves. Você considera que greve de trabalhadores contra a privatização de estatais são sempre políticas?
Rogerio Neiva —
 A Seção de Dissídios Coletivos (SDC) entende há muito tempo que toda a reivindicação que não está no alcance do empregador, assume essa condição de política. Um exemplo concreto foi no caso dos trabalhadores portuários do Porto de Santos que fizeram greve contra uma determinada medida provisória que interfere na legislação portuária. Não é dirigido ao empregador, então é considerada greve política. Ano passado, a SDC teve a possibilidade de rediscutir isso contra a privatização, mas há particularidades porque é uma pauta que impacta nos contratos de trabalho.

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