Embargos Culturais

Direito e Cinema: modos de usar — parte I

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

12 de abril de 2020, 8h00

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Não se sabe até que ponto Direito “e algo mais” identificaria uma força irradiadora do Direito, que tudo alcançaria ou se, pelo contrário, revelaria sua fragilidade e consequente necessidade de busca de outros campos. Midas ou Ícaro? Esse enigma alcança selos como “Direito e Economia”, “Direito e Literatura”, “Direito e Psicanálise”, “Direito e História” e, para os termos do presente texto, “Direito e Cinema”. O problema aqui colocado não é tão simples assim. O trânsito em outros campos, sem que se tenha preparo e treinamento formal e adequado, pode apresentar resultados pífios. Mas há também fascinante nicho interdisciplinar a ser explorado. Há más e há boas notícias.

Exemplifico. Ligar Direito e Economia, por parte do advogado ou juiz, ou do professor de Direito, exige que se conheça Economia, com algum nível de segurança e profundidade. Ao que parece, o estudo sério da Economia exige estudo também sério da Matemática. A citação recorrente de noções básicas, por parte do advogado, irrita o economista, que já não tem tanta paciência para conosco. Razões óbvias. Buscam eficiência enquanto procuramos (com dificuldade de encontrar) justiça e outras categorias metafísicas. Não se pode explorar Direito e Economia sem que se estude Economia com a seriedade que a disciplina exige.

O mesmo é válido para Direito e Literatura. Corre-se o risco de se praticar uma crítica literária frustrada (eu acho que posso ser um deles). Direito e Psicanálise é campo que pode fazer do pesquisador (que não conheça as teorias psicanalíticas, bem entendido) um ventríloquo do freudismo de terceira mão. Direito e História, ou mais propriamente a História do Direito, pode engatar uma relação equivocada que, em poucas páginas, pule do Código de Hamurábi (sempre), para a Lei das XII Tábuas (quase sempre), para a Magna Carta (sucessivamente) e então para a Revolução Francesa, desaguando na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Esse pessimismo metodológico tem limites. Há pesquisador sério fazendo Direito e Economia e também Direito e outros campos. Percebe-se pela qualidade dos trabalhos, pelo foco, pela abordagem vertical e essencialmente profunda dos campos que se pretende aproximar do Direito. E o Direito também não pode ser descuidado. Caso contrário, não é nem Direito e nem o que se queira explorar. Desagrada-se a todos. Não há espaço aqui para nominar, sem injustiça para com os esquecidos, o conjunto de pesquisadores sérios que avançam o Direito com outros campos do saber.

E como fica o Direito e Cinema? Misto de irmão mais novo e de “enfant terrible” do Direito e Literatura, o selo Direito e Cinema também convoca para uma cruzada. Um ponto de partida seguro é o livro de Gabriel Lacerda (da FGV-Rio), O Direito no Cinema, que se sobressai também como um relato de uma experiência didática no campo do Direito. Do ponto de vista da sistematização das abordagens o livro de Gabriel Lacerda lhe garante uma indiscutível posição de um dos pais fundadores da disciplina. A introdução de Joaquim Falcão ilumina o caminho. Gabriel Lacerda também lançou monografia ligando Direito, nazismo e cinema.

Há também recente coletânea de comentários de filmes organizada por José Roberto de Castro Neves, que além disso se notabilizou por seus estudos sobre Shakespeare e o Direito. Pode-se começar também com os estudos de Cristiano Paixão (um dos pais fundadores do tema, do ponto de vista metodológico), bem como com os trabalhos de André Karam Trindade, Henriete Karam, Lenio Streck, Fernando Armando Ribeiro, Luciana Pimenta e Carmela Grune. Há disponíveis monografias de excelente qualidade. Citando alguns, e correndo o risco de deixar trabalhos importantes de lado, Débora Dahas, José Luiz Quadro de Magalhães, Maria Antonieta Rigueira Leal Gurgel, Angela Barbosa Fontes, João da Cruz Gonçalves Neto, José Ernani Carvalho Pacheco, José Luiz Quadro de Magalhães, Mara Regina de Oliveira, Mortom Medeiros, Renata Balbino Soares. Há também o seminário de Direito e Cinema de Juliana Neuenschwander, entre tantos outros.

De algum modo, invade-se o terreno da crítica cinematográfica. Necessário o estudo sério e comprometido dos grandes críticos do cinema. Roger Egbert, o maior deles, não pode faltar na lista. Seguem, entre outros, Ruy Castro, José Lino Grunewald, Sérgio Augusto, Tuio Becker, Antonio Moniz Vianna, Claude Beylie, Rubens Ewald Filho, Pablo Villaça, Arthur Tuoto, Marcelo Janot, Humberto Pereira da Silva. Há também cineastas que foram críticos, como François Truffaut (Os filmes da minha vida), Glauber Rocha (O século do cinema). Há ainda a coletânea da Folha de São Paulo (100 anos de cinema). Um grupo de youtubers também comenta freneticamente.

Paro por aqui. Devo ter esquecido muita gente. Na semana que vem apresentarei um conjunto de justificativas conceituais que sugerem que a aproximação entre Direito e Cinema é pedagógica e metodologicamente uma alternativa para um saber jurídico elevado e diferenciado.

Em tempo. Quem se interessa pelo assunto, não perca o olhar de Vinicius de Moraes, O Cinema de meus olhos. Para o nosso Poeta, o cinema é uma evasão formidável. Segundo Vinícius, “essa coisa de ser o cinema uma sucessão de imagens na escuridão é muito importante. A escuridão é um estado altamente sedativo, quando tem a fecunda-lo algum princípio luminoso. Um foguinho brilhando na treva, que coisa fascinante!”.

Direito e Cinema pode ser esse foguinho brilhando na treva. E porque, ainda segundo Vinícius, “o cinema é a fecundação da imagem subjetiva pelo fogo na treva”, acredito que há um fortíssimo liame antropológico que liga o esperanto das imagens ao esperanto das normas.

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