Opinião

A quarentena da Constituição

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9 de abril de 2020, 6h33

A Constituição não deve ser abandonada por conta do coronavírus. As autoridades de saúde recomendam fortemente um recolhimento das pessoas a suas residências e não um recolhimento da Constituição! Muito ao contrário, a Constituição é uma forma eficaz de proteção jurídica contra o vírus, assim como as medidas sanitárias.

O Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição, indica que se pode flexibilizar a aplicação das leis, se necessário ao combate à crise, mas sempre em sintonia com a Constituição. Na ADI 6.357/DF, proposta pelo Presidente da República para afastar exigências da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000) e da Lei de Diretrizes Orçamentárias (Lei 13.898/2020) — em relação “às despesas necessárias ao enfrentamento do contexto de calamidade inerente ao enfrentamento do Covid-19" —, o ministro Alexandre de Moraes, em liminar de 29/03/2020, acatou o pedido sob o fundamento de “proteção à vida, à saúde e a subsistência de todos os brasileiros, com medidas sócio econômicas protetivas aos empregados e empregadores”.[2] Portanto, enfrentar o coronavírus pode demandar um ajuste na aplicação da legislação, desde que isso se traduza numa afirmação da Constituição.

É reconhecida a atribuição de poderes ao Executivo para fazer face à crise do coronavírus, porém por meios institucionais e sem dispensar a competente a fiscalização, igualmente institucional. No caso, o próprio Governo submeteu a questão ao STF.

O Congresso Nacional aprovou rapidamente a decretação do estado de calamidade pública proposto pelo Governo Federal (Decreto Legislativo 6, de 20/03/2020), “notadamente para as dispensas do atingimento dos resultados fiscais previstos”.[3] O Executivo pautou-se pela lei e solicitou a devida autorização ao Parlamento.

Diversas e relevantes “medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus” careciam de lei autorizativa e o Congresso também havia aprovado rapidamente a Lei 13.979, de 06/02/2020, de iniciativa do Presidente da República. Essa lei estabelece, exemplificativamente, medidas a serem adotadas, como o isolamento, a quarentena, a realização compulsória de exames médicos, a restrição excepcional e temporária de entrada e saída do País e locomoção interestadual e intermunicipal. Nessa lei, há o reconhecimento da autoridade científica da Organização Mundial da Saúde, visto que está determinado que “a duração da situação de emergência de saúde pública… não poderá ser superior ao declarado” pela OMS.

Num ambiente democrático, pautado pelo respeito aos direitos fundamentais e pelo controle do poder, algumas dessas medidas podem ser tomadas por meio de atos administrativos e não exigem prévia disposição legal. Ainda assim, a submissão de tais medidas à previsão legislativa, com a aprovação do Congresso Nacional, reforça a democraticidade e a fiscalização próprias de uma república.

Destoam dessa perspectiva as decisões liminares do STF nas ADPF 661/DF (proposta pelo Partido Progressista) e 663/DF (proposta pelo Presidente da República com o objetivo de prorrogar os prazos de validade das medidas provisórias editadas em razão do estado de calamidade pública), que questionam atos das Mesas Diretoras das Casas do Congresso que estabelecem medidas para o funcionamento parlamentar durante a crise do coronavírus, dispensando o comparecimento de parlamentares em situações de vulnerabilidade (idosos, gestantes, imunodeprimidos, portadores de doenças crônicas) e restringindo o acesso às dependências físicas do Parlamento, bem como instituindo o Sistema de Deliberação Remota.

Aparentemente sob a mesma lógica da urgência imperiosa, o Min. Alexandre de Moraes deferiu liminares em 27/03/2020 para autorizar que medidas provisórias editadas em função do estado de calamidade pública decorrente do coronavírus não precisem ser examinadas por comissão mista do Congresso Nacional, podendo a instrução ser realizada pelos plenários da Câmara e do Senado.[4] Ocorre que a Constituição dispõe expressamente que as medidas provisórias devem ser examinadas por uma comissão mista de Deputados e Senadores, “antes de serem apreciadas, em sessão separada, pelo plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional” (art. 62, § 9º).

A decisão liminar do STF baseia-se na razoabilidade e no princípio da eficiência. Essas não parecem ser razões suficientemente argumentadas para deixar de cumprir a Constituição.   

Embora o próprio Congresso tenha proposto que as medidas provisórias fossem “instruídas perante o Plenário da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, ficando excepcionalmente autorizada a emissão de parecer em substituição à Comissão Mista por parlamentar de cada uma das Casas designado na forma regimental”, o regime constitucional das medidas provisórias foi indevidamente afastado pelo STF. Nem o próprio Parlamento pode afastar a incidência da Constituição e transgredir o procedimento constitucional de tramitação das medidas provisórias, a não ser que haja uma reforma da própria Constituição por via de emenda.

Na ADPF 663/DF, havia também o pedido de “suspensão da contagem dos prazos de conversão de medidas provisórias durante a situação de excepcionalidade dos trabalhos do Congresso Nacional”. Felizmente, esse pedido não foi deferido. Nesse ponto, o Min. Alexandre de Moraes voltou a aliar-se ao texto da Constituição (art. 62, § 3º), ao admitir “uma única hipótese excepcional de suspensão do prazo decadencial de 120 (cento e vinte) dias, que ocorre durante o recesso do Congresso Nacional (CF, § 4º, art. 62)”, e que “mesmo nas mais graves hipóteses constitucionais de defesa do Estado e das Instituições Democráticas – Estado de Defesa (CF, art. 136) e Estado de Sítio (CF, art. 137) – inexiste qualquer previsão de suspensão do prazo decadencial de validade das medidas provisórias, pois o texto constitucional determina a continuidade permanente de atuação do Congresso Nacional”.[5]

A medida provisória é um instrumento muito sensível na dinâmica da separação de poderes. Ela própria deveria ser uma alternativa legislativa excepcional para casos de relevância e urgência (art. 62 da Constituição). Tanto é que o Presidente da República editou, por exemplo, a MP 926, de 20/03/2020, para alterar a Lei 13.979. Portanto, pode-se utilizar medida provisória para uma legislação de emergência. O que não é dado é excepcionar a exceção e adotar para as medidas provisórias um regime diverso daquele expressamente determinado pela Constituição, em que resta diminuído o controle parlamentar sobre o poder legiferante excepcional do Presidente da República.

Também por meio de uma medida provisória (MP 928, de 23/03/2020), o Presidente da República alterou a Lei 13.979 para limitar o acesso às informações prestadas por órgãos públicos durante a emergência de saúde pública provocada pelo coronavírus, suspendendo os prazos de resposta a pedidos dirigidos a órgãos cujos servidores estejam em regime de quarentena, teletrabalho ou equivalentes e que dependam de agente público ou setor envolvido no combate à doença, bem como impedindo a aceitação de recursos contra negativa de resposta a pedido de informação.

Ocorre que o direito fundamental de informação potencializa o esclarecimento da população e a adoção de medidas corretas para enfrentar a crise sanitária. Por conseguinte, a MP 928 agride a Constituição e em nada contribui para combater o vírus. O STF foi instado a realizar o controle judicial por meio da ADI 6.351/DF, apresentada pelo Conselho Federal da OAB, e suspendeu liminarmente a eficácia do dispositivo (relator Min. Alexandre de Moraes, decisão de 26/03/2020), com base nos princípios da publicidade e da transparência.[6]

Em contradição com o escopo das medidas de enfrentamento do coronavírus, o Presidente da República editou o Decreto 10.292, de 25/03/2020, que alterou o regulamento da Lei 13.979/2020, para incluir entre os “serviços públicos e atividades essenciais… indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população” — liberando portanto — as atividades religiosas de qualquer natureza e as unidades lotéricas.

Esse exercício presidencial de poder violou acintosamente os direitos fundamentais em risco e a adequada aplicação das medidas de combate ao coronavírus, tendo representado um sério descumprimento da Constituição. A forma institucional de controle que se apresentou foi a interposição de uma ação civil pública pelo Ministério Público Federal[7], que teve liminar deferida pela Justiça Federal no Rio de Janeiro em 27/03/2020.[8]

De modo semelhante, surpreendeu a muitos a divulgação abrupta, pelo Governo Federal, de uma campanha que estimula a volta ao trabalho (“O Brasil não pode parar”), em sentido contrário à recomendação de permanência em domicílio. Também aqui houve menoscabo a direitos fundamentais tais como os relacionados à saúde, à boa governança e à confiança no governo, em confronto com a Constituição. Houve reação jurídica com o oferecimento de outra ação civil pública pelo MPF no Rio de Janeiro, para “proibir a União de veicular, por rádio, televisão, jornais, revistas, sites ou qualquer outro meio, físico ou digital, peças publicitárias relativas à campanha ‘O Brasil não pode parar’, ou qualquer outra que sugira à população brasileira comportamentos que não estejam estritamente embasados em diretrizes técnicas, emitidas pelo Ministério da Saúde, com fundamento em documentos públicos, de entidades científicas de notório reconhecimento no campo da epidemiologia e da saúde pública”, entre outros pedidos.[9] O Judiciário prontamente deferiu a liminar em 28/03/2020.[10]

Foi evocada como estratégia derradeira de enfrentamento da crise de saúde pública a decretação do estado de sítio com base em “comoção grave de repercussão nacional” (art. 137, I, da Constituição). Afinal, para situações anormais, a Constituição prevê um tratamento excepcional por ela mesma disciplinado, como um conjunto de normas que, ao darem uma resposta controlada à crise, conferissem proteção reflexa à própria Constituição, evitando-se que ela seja abandonada.

Até agora, contudo, a aplicação normal da Constituição, o funcionamento das instituições e o acionamento dos mecanismos regulares têm-se apresentado com disposição e capacidade de enfrentamento do coronavírus, e nada indica que lhes venham a faltar tais condições. A evocação dos institutos excepcionalíssimos de defesa do Estado e das instituições democráticas não resiste ao cumprimento ordinário da Constituição para essa situação extraordinária de crise sanitária. O estado de sítio é absolutamente subsidiário em relação a outras medidas possíveis, que estão sendo e serão adotadas. Por isso mesmo, a Ordem dos Advogados do Brasil, por exemplo, pronunciou-se contrariamente à decretação do estado de sítio[11], e o Min. Edson Fachin, do STF, também escreveu na imprensa em sentido contrário (“A esperança não é um estado de exceção”)[12], assim como o jurista Paulo Iotti Vecchiatti[13].

Em entrevista coletiva no dia 20/03/2020, o Presidente da República deu a entender que seria “fácil” a decretação do estado de sítio: “Ainda não está no nosso radar isso, não. Até porque isso, para decretar, é relativamente fácil de fazer uma medida legislativa para o Congresso. Mas seria o extremo isso aí, e acredito que não seja necessário. Bem como estado de defesa. Isso aí você não tem dificuldade de implementar. Em poucas horas você decide uma situação como essa. Mas daí acho que estaríamos avançando, dando uma sinalização de pânico para a população. Nós queremos sinalizar a verdade para a população”.[14]

É certo que, nessa fala, o Chefe do Executivo negou a intenção de decretar o estado de sítio. Mas, ao dizer que a instauração do estado de sítio seria simples, o Presidente da República parece uma vez mais estar propenso a descumprir a Constituição, que prevê tal possibilidade somente como alternativa última e excepcionalíssima, dotada de um procedimento complexo e de medidas drásticas que implicam a limitação severa de diversos direitos fundamentais. O estado de sítio é, do ponto de vista constitucional, tudo menos fácil.

Atos que enfraqueçam os esforços de combate à crise decorrente da pandemia do coronavírus e impliquem ostensivo descumprimento da Constituição, por atentar contra o exercício dos direitos fundamentais, a segurança interna do país e o livre exercício dos Poderes Legislativo e Judiciário, bem como do Ministério Público, caracterizam crime de responsabilidade. Então, o afastamento do Presidente da República seria uma afirmação constitucional.

Direitos fundamentais, democracia e funcionamento institucional são perfeitamente compatíveis com as restrições demandadas pelo enfrentamento da crise de saúde pública. Para lutar contra o coronavírus, precisamos de mais Constituição e não de menos Constituição. Enquanto se pede que muitos de nós nos recolhamos às nossas casas, a Constituição não pode ficar em quarentena. 

 


[1] Livre-docente pela USP, Mestre e Doutor pela UFPR, Pós-graduado pela Universidade de Paris II, Procurador Regional da República, Professor do CEUB/ITE.

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