Contratações públicas para o enfrentamento da situação de emergência
1 de abril de 2020, 17h05
Estamos acompanhando um exponencial aumento de contaminações advindas do novo coronavírus, não só no Brasil, mas no mundo inteiro.
Não por menos, no dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde — OMS decretou a pandemia da Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2), em razão do aumento do número de casos e a disseminação global dele resultante.
Naturalmente, uma situação de pandemia dá ensejo a um colapso não só no sistema de saúde pública, mas também no privado, assim como acarreta reflexos negativos no cenário econômico, tal como temos acompanhado nos últimos tempos.
Neste contexto, ao Poder Público incumbe a difícil tarefa de planejar, com urgência, ações excepcionais e temporárias para a resolução de problemas extraordinários, com a finalidade de controlar a disseminação do vírus e a contaminação das pessoas.
Antes, porém, da citada declaração, pela OMS, de pandemia da Covid-19, o Governo brasileiro já havia introduzido ações importantes para o enfrentamento e prevenção do Coronavírus em território nacional.
Nesse sentido, o Poder Executivo Federal prontamente enviou à Câmara dos Deputados um projeto contendo as citadas ações, o qual foi recepcionado em 04/02/2020 (PL 23/2020), votado em regime de urgência e devidamente aprovado na mesma data. O mesmo procedimento foi adotado no âmbito do Senado Federal, de forma que, já no dia 05/02/2020, o projeto foi aprovado e, em 06/02/2020, encaminhado à sanção presidencial.
Com a sanção ao citado projeto, ocorrida em 06/02/2020, foi publicada a Lei nº 13.979, que, dentre diversas ações de enfrentamento ao Coronavírus, introduziu, no cenário das contratações públicas, a hipótese de dispensa de licitação para as aquisições de bens e insumos e contratação de serviços na área da saúde destinados ao enfrentamento de saúde pública, a qual será tratada no presente arrazoado.
Regra geral, consoante preconiza o artigo 2º do Decreto-Lei nº 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro — LINDB), uma lei vigora até que outra a modifique ou revogue, salvo se destinada à vigência temporária, o que é o caso da norma a ser tratada neste artigo, consoante se previu em seu artigo 8º.
Pois bem. A citada lei permitia a contratação direta, por dispensa de licitação, exclusivamente para bens e insumos e serviços exclusivos na área da saúde, não trazendo, por outro lado, qualquer detalhamento a ser observado pelo gestor público.
Ocorre que, em 20 de março de 2020, foi editada, pelo Presidente da República, a Medida Provisória nº 926[2], a qual alterou e incluiu disposições antes previstas na Lei nº 13.979, as quais passo a abordá-las, de forma sintetizada.
O primeiro ponto a ser destacado é que a Medida Provisória em análise excluiu a necessidade de a contratação dos bens e insumos e serviços serem restritos à seara da saúde, passando, nesse sentido, a possibilitar a contratação direta de qualquer necessidade urgente de que precise a Administração Pública para o enfrentamento da situação de emergência em saúde pública decorrente do novo coronavírus. Permitiu-se, ainda, para tal finalidade, a contratação direta de serviços de engenharia.
Vale destacar que está excluída da hipótese de contratação direta versada pela novel legislação a execução de obras, assim entendida como “toda construção, reforma, fabricação, recuperação ou ampliação, realizada por execução direta ou indireta” (artigo 6º, inciso I, da Lei nº 8.666/93).
Em regra, as contratações diretas, decorrentes de dispensa ou inexigibilidade de licitação, além da demonstração dos requisitos das hipóteses que as autorizem, devem atender às regras de instrução dispostas nos incisos do parágrafo único do artigo 26 da Lei nº 8.666/93.
No entanto, foi prevista, no artigo 4º-B, da MP 926/2020, a presunção de atendimento das condições relativas à: (i) ocorrência da situação de emergência; (ii) necessidade de pronto atendimento da situação de emergência; (iii) existência de risco a segurança de pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos e outros bens, públicos e particulares; e (iv) limitação da contratação à parcela necessária ao atendimento da situação de emergência.
Nesse sentido, presumem-se demonstradas as circunstâncias autorizadoras da hipótese de dispensa de licitação em si, o que não dispensa o gestor de justificar a escolha da empresa a ser contratada e do preço a ser pago para a execução do objeto (incisos II e III do parágrafo único do artigo 26 da Lei nº 8.666/93).
Ainda, na forma do artigo 4º-C, foi dispensada, na hipótese ora tratada, a elaboração de estudos preliminares quando o enquadramento do objeto estiver alcançado pelo conceito de bens e serviços comuns[3].
Também por força da situação de urgência, a etapa de gerenciamento de risco apenas será exigida na fase de gestão de contrato, não havendo a obrigatoriedade, portanto, de sua composição ocorrer na fase de planejamento — até porque, tal fase, inexiste diante de uma situação de urgência (vide artigo 4º-D).
Seguindo a lógica de que a situação de emergência impõe ao gestor uma ação imediata, muitas das vezes impossível de ser planejada, foi admitida, pelo artigo 4º-E, a apresentação de termo de referencia e/ou projeto básico simplificados, os quais deverão conter, minimamente: (i) declaração do objeto; (ii) fundamentação simplificada da contratação; (iii) descrição resumida da solução apresentada; (iv) requisitos da contratação; (v) critérios de medição e pagamento; (vi) estimativas de preços; e (vii) adequação orçamentária.
No que pertine à estimativa de preços, foi prevista a necessidade de utilização de, no mínimo, um dos parâmetros estabelecidos pelas alíneas do inciso VI do § 1º do artigo 4º-E, quais sejam: a) Portal de Compras do Governo Federal; b) pesquisa publicada em mídia especializada; c) sítios eletrônicos especializados ou de domínio amplo; d) contratações similares de outros entes públicos; ou e) pesquisa realizada com os potenciais fornecedores.
Como medida excepcionalíssima, e mediante justificativa da autoridade competente, poderá ser dispensada a estimativa de preços acima tratada. Outrossim, foi previsto que os preços obtidos por meio das fontes antes indicadas não impedem que a contratação seja efetivada com valores superiores decorrentes de oscilações ocasionadas pela variação de mercado, hipótese na qual tal situação deverá ser justificada nos autos.
Outra novidade trazida pela MP 926, e aplicável enquanto perdurarem os efeitos da emergência em questão, é que poderá o Poder Público contratar empresas que estejam com idoneidade declarada ou suspensas do direito de licitar e contratar, quando se tratar, comprovadamente, de única fornecedora do bem ou serviço a ser adquirido.
Também na hipótese de haver restrições mercadológicas (de fornecedores e/ou prestadores), poderá a Administração Pública, excepcionalmente e mediante justificativa da autoridade competente, dispensar a apresentação de regularidade fiscal e trabalhista, bem como o cumprimento de um ou mais requisitos de habilitação, ressalvadas as exigências de regularidade perante à Seguridade Social e a prova de atendimento ao inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal.
No campo das contratações empreendidas por meio de procedimento licitatório, especificamente na modalidade pregão, realizada na forma presencial ou eletrônica, previu a MP 926/2020 que, na aquisição de bens e insumos ou contratação de serviços necessários ao enfrentamento da emergência em saúde pública ora comentada, os prazos de tal procedimento serão reduzidos pela metade, sendo que, quando se tratar de número ímpar, o arredondamento ocorrerá para o número inteiro antecedente (ex vi art. 4º-G)
Nesse sentido, o prazo fixado para a apresentação das propostas, contado a partir da publicação do aviso, que, normalmente, é de 8 (oito) dias úteis, passa a ser de 4 (quatro) dias úteis, assim como os prazos para apresentação de razões recursais e de contrarrazões, atualmente de 3 (três) dias úteis cada, passarão a ser de apenas 1 (um) dia útil. Ademais, nas situações ora evidenciadas, o recurso passa a ter o caráter meramente efeito devolutivo, sem haver a necessidade de suspensão do procedimento licitatório, como ocorre ordinariamente.
Também será de 1 (um) dias útil o prazo para impugnação aos termos do instrumento convocatório[4].
Vale destacar que os procedimentos mencionados anteriormente, tais como apresentação simplificada de termo de referência e/ou projeto básico, assim como dispensa de estudos preliminares e obtenção de preços estimados, aplicam-se a quaisquer contratações, seja por dispensa ou licitação, para aquisição de bens e insumos ou prestação de serviços que tenham por objetivo o enfrentamento da emergência que trata a Lei nº 13.979/2020.
A Medida Provisória em apreço dispensou, ainda, a realização da audiência pública da qual se refere o artigo 39 da Lei nº 8.666/93, isto é, quando o valor estimado ou o conjunto de licitações simultâneas ou sucessivas forem superiores a R$ 330 milhões.[5].
No âmbito da formalização de contrato, foi prevista a possibilidade de ser estabelecida vigência de até 6 (seis) meses, sendo possível serem realizadas prorrogações por períodos sucessivos, enquanto se estiver diante da situação de emergência de que versa a Lei nº 13.979/2020 (art. 4º-H).
Foi, ainda, estabelecida a possibilidade de a Administração Pública alterar, de forma unilateral, o contrato para o fim de formalizar acréscimos e/ou supressão ao seu objeto em até 50 % (cinquenta por cento) do valor inicial atualizado.
Tal possibilidade (acréscimo e supressão de até 50%), no cenário ordinário, apenas se aplica exclusivamente aos acréscimos necessários em reforma de edifício ou equipamento, sendo vedados as supressões e acréscimos acima dos limites permitidos, salvo, em relação às supressões, se decorrente de acordo celebrado entre os contratantes (ex vi alínea b do inciso I combinada com os §§ 1º e 2º, todos do art. 65 da Lei nº 8.666/93).
As alterações veiculadas pela Medida Provisória ora comentada, a qual, como é cediço, depende de sua aprovação para ser convertida em lei dentro dos prazos e procedimentos previstos em nossa Constituição Federal, trouxe maior segurança ao gestor público para atuar na situação de calamidade pública já decretada e reconhecida em nosso País.
Muitas vezes, combater a urgência com a presteza necessária a minimizar os impactos e prejuízos que dela decorrem, exige a análise de ponderação entre princípios ínsitos à atuação do gestor, como, por exemplo, o de legalidade em face do de eficiência etc.
O cenário de emergência em saúde pública que o Brasil está vivenciando, por si só, leva a conclusão de excepcionalidade de eventuais medidas a serem adotadas no âmbito, sobretudo, de políticas públicas locais.
Não raras as vezes, o gestor público se depara com a total ausência de instrumentos jurídicos legalmente estabelecidos para o enfrentamento de situações excepcionais, como a ora vivenciada, o que me leva a concluir haver total pertinência dos procedimentos trazidos pela MP 926/2020.
Obviamente, não é dado ao gestor público se distanciar do objetivo trazido pela novel legislação que elencou mecanismos para tratar da emergência, de forma a realizar contratações sem pertinência ou com extensões a objetos por ela não amparados, sob pena de responder pela ilegalidade e prejuízos dela decorrentes.
Por fim, os órgãos de controle deverão, na análise dos atos praticados durante o período de emergência e calamidade pública, levar em consideração todos os obstáculos e dificuldades enfrentadas pelos gestores públicos para o enfrentamento das situações locais de emergência, tal como preconiza o artigo 22 do Decreto-Lei 4.657/42 – Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, com suas alterações posteriores.
[1] Advogado-Chefe do Departamento de Consultoria Jurídica em Licitações, Contratos e Ajustes Congêneres, da Advocacia Geral do Município de Cotia (AGM). Especialista em Direito Tributário pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Gestão Pública pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Autor de artigos jurídicos na área de licitações e contratos e palestrante.
[2] Na forma prevista pelo art. 62, da Constituição Federal, “em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.”.
[3] O conceito de bens e serviços comuns se encontra previsto no parágrafo único do art. 1º da Lei nº 10.520/02, qual seja: “Consideram-se bens e serviços comuns, para os fins e efeitos deste artigo, aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado.”
[4] Atualmente, o prazo para a impugnação é de 3 (três) dias úteis, conforme previsto no art. 24, do Decreto Federal nº 10.024/2019.
[5] 100 (cem) vezes o limite previsto no art. 23, inciso I, alínea "c" da Lei nº 8.666/93, com atualização de valor feita pelo Decreto Federal nº 9.412/2018.
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