Direitos Fundamentais

"Ainda existem juízes em Berlim"? – O STF e a liberdade de expressão

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21 de setembro de 2019, 11h35

Mesmo sabendo que o conto do Moleiro de Sans-Souci, imortalizado por François Andrieux, tem sido invocado ad nauseam em diversos contextos e não raras vezes de modo distorcido (consciente ou inconscientemente), vez por outra faz sentido tomá-lo como ponto de partida para alguma reflexão sobre algum tema. Note-se, à partida, que a despeito do nosso propósito com o presente texto, não se trata de protagonizar uma apologia genérica e irrefletida do Poder Judiciário e nem da nossa Corte Suprema. Muito menos – e por várias razões – comparar Berlim com Brasília, sem que com isso se esteja a sugerir um juízo de valor positivo ou negativo.

Dito isso, antes de adentrarmos o contexto brasileiro, calha rememorar o teor do prestigiado conto. A narrativa de Andrieux refere-se a acontecimento ocorrido no século XVIII, na Prússia do rei Frederico II, conhecimento como “o Grande” (Friedrich der Grosse), quando este decidiu edificar um palácio de verão na cidade de Potsdam, nas proximidades de Berlim, junto a uma colina onde existia, já há tempo, um moinho de vento, conhecido como o moinho de Sans-Souci, designação dada também ao novo palácio real.

Conta-se, ainda, que quando Frederico II resolveu ampliar o palácio, em virtude de o moinho estar impedido os trabalhos, o rei decidiu adquiri-lo, esbarrando, contudo, na inabalável recusa do moleiro, que invocou o fato de que tanto ele, quanto seu pai ali falecido, mas também os seus filhos, lá tiveram, tinham e teriam sua morada. À vista de tal obstinação, Frederico seguiu insistindo tendo chegado a sugerir ao moleiro, em tom de ameaça, que se assim quisesse poderia confiscar o moinho e as respectivas terras inclusive sem indenização, ao que o corajoso moleiro retrucou que isso não o demoveria e que ainda existiriam juízes em Berlim. Diante disso e da tenacidade do moleiro, Frederico II recuou e, mesmo tendo ampliado o palácio, respeitou os limites do moinho que até hoje se encontra no local.

É claro que a famosa frase do moleiro – ainda há juízes em Berlim – tem sido invocada geralmente quando se busca enaltecer a independência e imparcialidade do Poder Judiciário, bem como da isonomia na aplicação das leis, sem levar em conta a maior ou menor riqueza, a natureza do cargo das partes, entre outros fatores. Também é verdade que já naquela quadra começou a se desenvolver na Prússia a concepção de um Estado legal de Direito e de um devido processo legal formal, assim como de fato Frederico II, também compositor, musicista, literato e inspirado por elementos do iluminismo e jusracionalismo (sem abrir mão, é claro, de sua posição de déspota esclarecido) era conhecido como – ao menos em regra – afeito à legalidade.

Da mesma forma, sabe-se que a mesma frase não raras vezes é agitada de modo irônico e que pode ser corretamente posta – em relação ao mesmo Poder Judiciário (ou um órgão de tal poder) ou a um determinado tema – mas não ser adequada em outros momentos e julgamentos dos mesmos juízes e tribunais.

Mas mesmo no Brasil, onde cada vez mais se evidencia uma profunda crise de confiança – portanto desconfiança – em relação às instituições, que crescentemente também atinge o Poder Judiciário, é de se reconhecer que em não poucas matérias ainda é possível acreditar nos nossos Juízes, ainda que para muitos a intervenção judicial em alguns domínios, como no controle das políticas públicas, por exemplo, tenha pecado pelo excesso, em outras pela leniência ou submissão a interesses políticos e econômicos.

No que diz com as liberdades comunicativas, liberdade de manifestação do pensamento, informação, liberdade artística, religiosa e de reunião – e este precisamente o mote do presente texto – nos parece possível, ainda mais em face dos desenvolvimentos mais recentes, afirmar que, em geral e aqui também e em especial nos tribunais superiores, invocar a frase do moleiro de Sans-Souci no sentido de que ainda há juízes em Berlim, no caso, em Brasília.

Bastaria lembrar os dois episódios mais recentes, um ocorrido no Rio Grande do Sul, outro no Rio de Janeiro, sem prejuízo dos precedentes, como, por exemplo, a decisão sobre a liberação do humor na campanha eleitoral de 2018 (embora a proscrição das assim chamadas fake news) e a reversão das decisões de juízes eleitorais que autorizaram buscas e apreensões e mesmo detenções em universidades e estabelecimentos de ensino.

No primeiro caso referido, um magistrado da Justiça Estadual gaúcha, Cristiano Vilhalba Flores, autor de obra sobre o controle de convencionalidade das leis, determinou, mediante decisão de cunho liminar, a reabertura de exposição chamada Independência em risco, que apresentava charges críticas ao governo federal, em especial ao presidente Bolsonaro (entre elas caricatura mostrando o presidente Bolsonaro lambendo os sapatos do presidente Trump, dos EUA), mostra suspensa em virtude de pedido formulado pela presidente da Câmara de Vereadores de Porto Alegre.

Já no Rio de Janeiro, o que deu azo à intervenção do STF foi a manutenção pelo TJ-RJ de intervenção determinada pelo prefeito Marcelo Crivella, na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, ordenando que fiscais da Secretaria Municipal de Ordem Pública percorressem os estandes para recolher obras com temas de natureza homossexual, em especial um livro gráfico da Marvel, que retrata uma relação homoafetiva e contém gravuras do casal protagonista se beijando. Segundo Crivella, a ordem de busca e apreensão tinha por objetivo cumprir as exigências do ECA no sentido de que publicações contendo material impróprio e inadequado a crianças e adolescentes deve ser comercializado em embalagem lacrada com a advertência de seu conteúdo (artigo 78).

Depois de uma curta, mas intensa, batalha judicial no Rio de Janeiro, o STF – a partir de pedido da Procuradoria-Geral da República – acabou por encerrar a querela proscrevendo, por manifestamente atentatória à liberdade de expressão, a ação de Marcelo Crivella. Na decisão que em sede de liminar suspendeu decisão monocrática do presidente do TJ-RJ que havia chancelado a ação do prefeito municipal, o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, sublinhou que ao justificar a apreensão das obras por conta da retração explícita de uma relação homoafetiva, como sendo matéria imprópria a crianças e adolescentes, ainda mais em face do reconhecimento da livre orientação sexual e da equiparação das uniões homoafetivas com uniões heterossexuais, configurou manifestação de preconceito e discriminação, bem como pode ser equiparada à censura.

Da mesma forma, na Reclamação 36.742, aforada pela empresa organizadora da Bienal, o relator, ministro Gilmar Mendes, igualmente concedeu medida em sede de liminar, sublinhando que se tratou de típica censura, com o intuito de patrulhamento do conteúdo e da expressão artística, invocando o precedente da ADPF 130, que considerou a Lei de Imprensa do regime militar como incompatível com a ordem constitucional vigente. Ainda nesse contexto, é de se destacar a dura e pública manifestação do ministro Celso de Mello, ao afirmar que medidas como a tomada pelo prefeito do Rio de Janeiro são típicas do período de “trevas que dominam o Estado” brasileiro.

À vista do exposto, em que pese não se deve e nem se possa ofuscar o fato de que também no Poder Judiciário diversas correntes sobre os limites da liberdade de expressão (sem falar, em certas ocasiões, de uma pelo menos implícita chancela da censura, como se deu no caso da Bienal do RJ – decisão do presidente do TJ-RJ), o que se verifica é que também há um número significativo (poderíamos arriscar, com pouca margem de erro, que atualmente se trata da maioria) de magistrados vigilantes e engajados em proscrever medidas como as patrocinadas pela presidente da Câmara dos Vereadores de Porto Alegre e pelo prefeito da cidade do Rio de Janeiro.

Mas se nas instâncias ordinárias ainda grassa o dissídio, o fato é que pelo menos até a presenta quadra, o STF, quando se trata da defesa da liberdade de expressão, em regra tem superado até suas conhecidas divergências internas, posicionando-se por unanimidade em prol das liberdades comunicativas.

Quando se trata de apresentar o caso do Brasil, embora se verifique uma tendência de gradual fortalecimento da liberdade de expressão, inclusive no sentido de uma posição preferencial, a situação, especialmente no concernente ao discurso do ódio, ainda não está bem definida, quando ao conteúdo da noção, e, por via de consequência, em relação a qual os limites que podem ser impostos às liberdades comunicativas, em particular as liberdades de expressão e reunião.

Note-se que, em um primeiro momento, a lista de direitos fundamentais prevista no artigo 5º da Constituição Federal, pelo menos numa primeira aproximação e com base no teor literal dos respectivos preceitos, aparentemente, atribui idêntico valor tanto à proteção à intimidade, privacidade, honra e imagem, quanto à liberdade de manifestação de pensamento e de expressão artística, intelectual, científica e de comunicação[1].

Da leitura desses dispositivos constitucionais, não há – com o devido respeito a posições divergentes – como se identificar uma prioridade necessária de um conjunto de proteções em relação ao outro, na medida em que a previsão constitucional desses direitos fundamentais visa apenas a afirmar – ainda de um modo relativamente indeterminado – a existência desses dois focos de liberdades humanas básicas, as quais não poderão ser abolidas, desprezadas nem gravemente penetradas por outras pretensões jurídicas. Os limites do seu exercício e as situações em que, uma e outra, cederão em sua relevância deverão ainda ser objeto de especificação e de análise casuística.

Por isso, partindo-se dessa exegese constitucional, deve-se iniciar reconhecendo que os dois conjuntos de direitos fundamentais encontram-se, aprioristicamente, em pé de igualdade, na medida em que essas esferas protetivas visam a resguardar e proteger duas instâncias distintas de imensurável valor humano, nenhuma delas, porém, absoluta: uma, com propósito de viabilizar o pleno desenvolvimento espiritual e autônomo de cada indivíduo, no que tange à proteção do plano interno de sua consciência e dignidade, resguardando-o de uma exposição pública desnecessária ou estigmatizante, enquanto que a outra visa a viabilizar o pleno desenvolvimento no plano externo não só de cada indivíduo, por meio da possibilidade desse manifestar, publicamente, a sua visão de mundo, garantindo assim a sua auto expressão – que também representa uma das dimensões da sua dignidade –, como também, por meio do livre fluxo de ideias e opiniões, estabelecer e efetivar o próprio sistema democrático que a nossa Constituição estabelece o qual não se desenvolve sem a possibilidade de externalização de um pluralismo de ideais[2].

Todavia, mesmo que, em um primeiro momento, a Constituição assegure um idêntico status protetivo à privacidade e à garantia da liberdade de manifestação e expressão, percebe-se que, em relação à segunda, o texto constitucional entendeu por bem ser mais explícito e detalhista no que se refere aos critérios de controle e de restrição dessa liberdade, tal como se vê das regras constitucionais contidas nos artigos 220 e 221. Isso porque a Constituição, além de fixar de antemão impedimentos legislativos (parágrafo 1º e parágrafo 3º do artigo 220), entendeu por bem já prever a proibição categórica à censura (parágrafo 2º do artigo 220), assim como fixar princípios diretivos que deverão guiar a produção publicitária, de rádio e de televisão (parágrafos 4o, 5º e 6º do artigo 220 e artigo 221).

Tal opção constitucional pode ser interpretada como sendo um sinal de que o Constituinte foi mais seletivo no que se refere às restrições que poderão ser aplicadas à liberdade de imprensa, de manifestação de pensamento e de expressão do que foi em relação à proteção da intimidade e da privacidade, a qual deverá contar com uma ponderação a posteriori para identificar as situações de grave e intolerável interferência na esfera de proteção privada. Ou seja, os limites (e consequentes restrições) de tais liberdades já estão, em grande parte, pré-fixadas na Constituição, ao passo que eventuais restrições aos direitos de personalidade foram deixadas para especificação posterior, não só pelo legislador, como pela apreciação equitativa do Judiciário. Essa opção do constituinte de 1988 pode ser interpretada como indicando a escolha constitucional por tratar restrições à liberdade de manifestação e expressão como sendo algo excepcional, exigindo que eventuais restrições adicionais necessitem de um esforço argumentativo diferenciado e mais intenso que consiga justificar a necessidade particular de uma nova limitação[3].

É nessa perspectiva que se pode afirmar que, mediante uma interpretação sistemática – aliada ainda ao fato de ser a liberdade de expressão e informação indispensável (e mesmo estruturante) a um regime democrático – a Constituição assegurou a tais liberdades uma posição (relativa) preferencial em face dos direitos de personalidade, que pode ser compreendida como uma preferência prima facie. Aliás, esse tem sido – ao menos até o momento – o entendimento que tem prevalecido na literatura nacional (embora a existência de significativo dissenso)[4] e na jurisprudência, em especial nos tribunais superiores, com destaque aqui para o STF, ao menos em se levando em conta os principais casos julgados nos últimos anos, tem apontado para uma posição preferencial da liberdade de expressão e informação.

Dentre os casos julgados pelo STF envolvendo a liberdade de expressão e indicando sua posição preferencial, podem ser colacionados a declaração da não recepção, por incompatibilidade com a Constituição, da antiga Lei de Imprensa elaborada no curso do regime militar, quando o relator, ministro Carlos Ayres Britto, afirmou que a liberdade de expressão assume uma posição quase absoluta e apenas pode ser objeto de limitação nos casos expressamente estabelecidos pela Constituição, designadamente o direito à indenização e o direito de resposta[5]. Da mesma forma chamam a atenção dois outros casos, o assim chamado caso “marcha da maconha”, no qual o STF entendeu que uma manifestação pública e coletiva em prol da legalização do consumo da maconha não poderia ser enquadrada no tipo penal da apologia ao crime[6]. Mais recentemente, merecem referência os casos das biografias não autorizadas, no qual o STF decidiu ser inconstitucional a existência de prévia autorização do biografado[7], bem como o julgado que traçou uma diferenciação, no que diz com o processo eleitoral, entre críticas veiculadas mediante sátiras e charges e manifestações de humor em geral e as assim chamadas fake news, liberando as primeiras e vedando as últimas[8].

Todavia, nenhum dos casos nominados envolvia a veiculação de informações (manifestações) evidentemente inverídicas ou de caráter em si ofensivo (injúria, difamação e mesmo calúnia), nem mesmo situações em que se possa afirmar com convicção que tenha se tratado de um exemplo do assim chamado discurso do ódio. Em especial no caso do último, não há como deixar de referir o principal precedente do STF, de 2003, envolvendo a confirmação da condenação criminal por racismo de autor e editor de obra que negava o holocausto judeu durante a segunda grande guerra mundial, justamente não sustenta a tese da posição preferencial da liberdade de expressão, ainda que três ministros tenham encaminhado voto divergente[9].

É claro, por outro lado, que a negação do holocausto (já há tempo criminalizada no Brasil) representa um caso muito especial e impactante, a justificar aqui um entendimento diferenciado, mas ao mesmo tempo também se sabe que a depender da prevalência que se der à liberdade de expressão, como é o caso dos EUA, a solução poderia ser diversa.

Por sua vez, há que frisar, também não resulta possível afirmar, de modo categórico, que no caso específico do discurso do ódio, o STF tenha assumido uma posição preferencial da liberdade de expressão nos outros (poucos) julgados sobre a matéria, o que será analisado logo mais adiante.

À vista da breve apresentação sobre como é compreendida e manejada, em termos gerais, mas em especial no que diz com sua posição mais ou menos privilegiada nas ordens jurídicas norte-americana, alemã, europeia e brasileira, a relação entre a liberdade de expressão e outros direitos fundamentais, com destaque para os direitos de personalidade, e cientes de que se trata de questão prejudicial ao exame do problema específico do discurso do ódio, remetemos ao próximo segmento para uma aproximação mais detida desse aspecto, que, de resto, é o objeto precípuo do presente trabalho.

Seja onde for, eventual limitação à liberdade de expressão, em especial a determinados discursos, tem sido justificada com base no seu impacto sobre os direitos de personalidade e o seu conteúdo em dignidade humana (v.g. os direitos à privacidade, honra, imagem, nome, entre outros), mas também quando se trata de conter a segregação, a discriminação de toda a natureza bem como incitação à violência, atingindo grupos vulneráveis e mesmo comprometendo a própria democracia.

[1] Art. 5o (…)

IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

[2] Cf. SARLET, Ingo Wolfgang; FERREIRA NETO, Arthur M., O direito ao “esquecimento” na sociedade de informação, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018, p. 77.

[3] Idem, p. 77.

[4] Em caráter ilustrativo destacam-se aqui, em favor da posição preferencial, BARROSO, Luís Roberto. “Liberdade de expressão versus direitos da personalidade. Colisão de direitos fundamentais e critérios de ponderação”, in: BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional, vol. III, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 103, bem como, mais recentemente, SARMENTO, Daniel. Art. 5º, IV, in: GOMES CANOTILHO, J.J.; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lênio Luiz (Coord.), Comentários à Constituição do Brasil, 2ª ed., São Paulo: Saraiva/Almedina, 2018.

[5] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 130, rel. Min. Carlos Britto. Tribunal Pleno, j. 30.04.2009.

[6] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 187, rel. Min. Celso de Mello. Tribunal Pleno, j. 15.06.2011.

[7] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 4815, relª. Minª. Cármen Lúcia. Tribunal Pleno, julgado em 10.06.2015.

[8] Cf. ADI 4.451/DF, Relator Ministro Alexandre de Moraes, julgamento em 20-21.06.2018.

[9] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas Corpus (HC) 84.292/RS, rel. Min. Moreira Alves, relator p/ acórdão Min. Maurício Corrêa. Tribunal Pleno, j. 17.09.2003.

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