Opinião

Segurança jurídica: o trade-off entre celeridade e o processo constitucional

Autores

  • Flavio Quinaud Pedron

    é sócio do Pedron Advogados doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) professor na UniFG (Bahia) na PUC-Minas e no IBMEC editor-chefe da Revista de Direito da Faculdade Guanambi e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual da Associação Brasileira de Direito Processual Constitucional da Associação Brasileira de Direito Processual e da Rede Brasileira de Direito e Literatura.

  • Érica Prado Bárbaro

    é acadêmica de direito pela Faculdade IBMEC/BH e estagiária no Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

  • Arthur Gabriel Barroso

    é acadêmico de Direito pela faculdade IBMEC-BH cursando o 6º período do curso.

  • Raissa Stefani Almeida Reis

    é acadêmica em Direito pela faculdade IBMEC-BH cursando o 7º período do curso estagiária na empresa Tecnoloc locações de máquinas e equipamentos S/A.

11 de setembro de 2019, 6h50

O universo acadêmico muitas vezes desinteressa-se pelo que aproxima os dois grandes sistemas jurídicos mundiais: o Common Law e o Civil Law. Via de regra, o enfoque é sempre voltado às divergências. No entanto, ambos os modelos se edificaram ao longo da história com a mesma finalidade: criar um sistema de previsibilidade jurídica, em que se possa obter uma mesma resposta jurisdicional para os casos similares.

No modelo americano, a construção se perfaz a partir da noção dos “writs” em que, pela tradição, fixa-se uma resposta adequada para aquele problema. Já na edificação pátria, a metodologia jurídica articula-se de forma diversa – na falta de um percurso casuístico, o Civil Law adota uma prática dogmática como referência para os padrões decisórios. Assim, no decurso da história, ambos os modelos foram se elaborando e se desenvolvendo rumo a um mesmo sentido: criar uma justiça capaz de legitimar-se pela isonomia e pela segurança jurídica.

Neste contexto, foi criado o sistema de precedentes no Common Law e no Civil Law. Aquele foi criado a partir de uma construção histórica, teoricamente validada por uma “tradição imemorial que, contudo, nunca existiu[1]”. Em um primeiro momento – no contexto medieval de centralização do poder – os tribunais reais itinerantes criavam decisões válidas e vinculantes somente pela força da imposição política. Com o tempo, os julgadores reproduziam essas decisões simplesmente em respeito e submissão ao modelo dito como correto pelos representantes do rei. No entanto, ao longo dos séculos essa tradição inventada ganhou solidez e transformou-se no atual modelo de amparo para que haja coerência e previsibilidade jurídico-decisória.

No ordenamento brasileiro, a primeira alusão a essa mecânica de padrão decisório surge com a criação das ações de amparo, instituídas pela CR/88. Algum tempo depois essa visão é reforçada pela promulgação da Emenda Constitucional nº 45, que inaugurou o instituto das súmulas vinculantes e a figura da repercussão geral para o recurso extraordinário. Adiante, o Código de Processo Civil de 2015 instituiu a aplicação de provimentos erga omnes a serem observados pelos julgadores na tomada de decisões judiciais. Nesse momento, entra em voga a discussão sobre a aplicação do sistema de precedentes e sobre quais institutos de direito comparado seriam cabíveis nesse respectivo estudo.

Diante disso, reinstaura-se a necessidade de uma discussão mais aprofundada sobre a teoria de Dworkin acerca da integridade do direito, haja vista que no contexto nacional é o momento em que mais se faz necessária tal compreensão. A fundamentação jurídica na prática e na academia de direito brasileira se perfaz por meio de uma “tradição artificial”[2] sobre a qual edificam-se as leis e a maioria das decisões judiciais.

O grande problema se instala a partir da ampla discricionariedade e empoderamento do Judiciário, cada vez mais legiferante na realidade nacional. A sistematização dos provimentos vinculantes criou polêmica exatamente por restringir o que alguns ainda acreditam existir, o “livre convencimento do juiz”, e por impor de forma imperativa a coerência, limitando a “liberdade” decisória dos magistrados brasileiros ainda apegados a uma potência decisória muito autocentrada e solipsista (?).

Assim, o que o novo sistema pretende, muito mais que a mera celeridade processual, é criar um Judiciário que possa ser acionado de forma equânime. A pretensão também é de que seja possível alguma previsibilidade de decisão e menor índice de reforma das decisões de primeira instância. Para operacionalizar isso é inafastável a participação de todos os atingidos pelo processo que, no caso dos precedentes do art. 927 do CPC/15, são todas as pessoas potencialmente afetadas pela decisão, o que, na prática, é a coletividade. Sendo indispensável, portanto, um exercício do contraditório.

Conforme afirmam Lênio Streck e Georges Abboud: “[…] em termos simples, ao autor e ao réu deve ser garantida a possibilidade de externarem as razões acerca de que forma deverá ser aplicada determinada súmula vinculante ou acórdão paradigma, por exemplo, no bojo da lide por eles instaurada. Essa é a leitura consentânea com o art. 10 do NCPC (proibição de decisão surpresa). Se todas as matérias de ordem pública, para serem aplicadas, demandam prévia possibilidade de as partes se manifestarem, com maior razão, deve ser facultado às partes se pronunciarem sobre qual a correta forma de incidência do preceito vinculante em face de sua lide[3]”.

Outro importante instrumento de uniformização das decisões o sistema de processos coletivos, gênero que abrange tanto as ações relativas à tutela de interesses difusos e coletivos estrito senso, como a tutela de direitos individuais homogêneos. Em ambos os casos, o objetivo é alcançar direitos e interesses transindividuais.

Tendo origem legal no Brasil com a ação popular (prevista no artigo 113, inciso XXXVIII da Constituição de 1934), os processos coletivos se inspiraram no movimento de acesso à justiça, comandado por Cappelletti e Garth. O conceito trazido por Didier Jr. é de que o processo coletivo é ¨aquele instaurado por um em face de um legitimado autônomo, em que se postula um direito coletivo lato sensu ou se afirma a existência de uma situação jurídica coletiva passiva, com o fito de obter um provimento jurisdicional que atingirá uma coletividade, um grupo ou um determinado número de pessoas¨.

A constituição de 1988 abraçou essa ideia de criação de um subsistema próprio para solução dos conflitos de massa trazendo inúmeros dispositivos que se repetem ao longo do texto constitucional e em que se evidência a preferência constitucional pela implantação do processo coletivo em detrimento das diversas litigâncias individuais.

Esse incentivo avulta-se nos incisos do art. 5º da CR em que se prevê a legitimidade ativa de vários entes na representação desses direitos transindividuais. Nesse sentido, destacam-se: (i) as entidades associativas, quanto expressamente autorizadas, para representar seus filiados; (ii) as organizações sindicais, entidades de classe ou associação para impetrar mandado de segurança coletivo, em defesa de seus membros e associados. Além disso, existe o teor do inciso LXXIII do mesmo artigo em que há uma ampliação do objeto da ação popular – regulada pela Lei nº 4717/65. Ao que se passa, a partir da CR/88, a tutelar direitos transindividuais, como o patrimônio público e o meio ambiente.

Em consonância a isso, o Código de Processo Civil de 2015 traz disposições sobre processo coletivo e ainda cria uma série de outros instrumentos de mesma natureza, entre os quais o incidente de resolução de demandas repetitivas (artigo 976 e seguintes) – IRDR. No entanto, no que diz respeito ao processo coletivo, em si, o CPC/15 optou por não regulamentá-lo. Com efeito, o artigo 139, inciso X, faz expressa remição ao microssistema coletivo, integrado notadamente pela Lei de Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85) e pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90).

Observado que esse microssistema é formado por leis esparsas que se comunicam entre si. Entre as quais se destacam a Lei de Ação Popular (Lei n◦ 4.717/65); a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n◦ 6.938/81); a Lei de Ação Civil Pública (Lei n◦ 7.347/85); CR/88; o Código de Defesa do Consumidor (Lei n◦ 9.078/90) e a Lei do Mandado de Segurança (Coletivo) (Lei n◦ 12.016/09).

A conceituação legal acerca dos Direitos coletivos está descrita no CDC em seu artigo 81 com a seguinte disposição: “A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.” Logo, as ações coletivas têm como objetivos primordiais o acesso à justiça; a economia processual; a segurança jurídica; a isonomia; celeridade e prevenção de decisões conflitantes.

Ante o exposto, nota-se que o Direito, desde os primórdios, apresenta como um de seus objetivos a previsibilidade de que todo ato sancionado pelo Estado deverá sempre estar estipulado em uma norma. É esse fato que embasa o regime democrático, no qual o receptor da norma é também autor dela, seja direta ou indiretamente. Dessa forma, como o Direito é mutável e tenta se adaptar às mudanças na sociedade, institutos como o processo coletivo e os precedentes têm se tornado cada vez mais presentes, a fim de se evitar decisões lotéricas, bem como, amenizar a quantidade de ações no poder Judiciário. Afinal, não basta haver uma excelente produção normativa se não houver uma congruência na interpretação por parte do julgador.

Assim sendo, criam-se laços entre Civil Law e o Common Law nem sempre discutidos ou observados. Da mesma maneira, há um vínculo entre o processo coletivo e a teoria dos precedentes que tem passado despercebido, seja intencionalmente ou não.

Nos últimos anos, muito foi publicado em matéria de precedentes. No entanto, quase nenhuma das críticas ou análises considerou o fato de que os precedentes se destinam a remediar a mesma enfermidade jurídica para a qual já existia outro instituto no direito brasileiro: o processo coletivo.

O fato de poucos estarem se atentando para isso é relevante porque nos aponta algumas tendências por parte dos juristas brasileiros. Primeiramente, é um demonstrativo de como a atividade legiferante é excessivamente ativa. Em segundo lugar, revela que existe um grande foco nos desdobramentos decorrentes do novo sistema. E, embora seja válido o prestígio acadêmico aos precedentes, não é seguro negligenciar as ponderações sobre os institutos anteriores. Sem fazer essa digressão histórica, as perspectivas futuras da aplicação dos precedentes perdem o sentido, uma vez que se mantém o risco de que com novos sistemas se repitam antigos erros.

Ademais, é imprescindível compreender que os motivos de haver um Judiciário sobrecarregado e incoerente são plúrimos e, para um problema de causas complexas, não será possível uma solução singular. Logo, antes de focar apenas nos precedentes, talvez o mais prudente fosse evitar a depreciação de outros institutos de direito igualmente capazes de contribuir para a segurança jurídica e para a desobstrução do Judiciário.


[1] PEDRON, Flávio; OMMATI, José Emílio Medauar. Contribuição para uma compreensão ontológica dos Precedentes Judiciais. Revista da Presidência da República. 2017.

[2] PEDRON, Flávio; OMMATI, José Emílio Medauar. Contribuição para uma compreensão ontológica dos Precedentes Judiciais. Revista da Presidência da República. 2017.

[3] STRECK, Lenio; ABBOUD, Georges. O NCPC e os precedentes – afinal, do que estamos falando?.

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