Opinião

Mudrovitsch e Pupe: Improbidade e sigilo bancário

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6 de setembro de 2019, 8h11

No tema 225 de repercussão geral (RE 601.314-RG), decidiu o Supremo Tribunal Federal pela constitucionalidade do artigo 6º da Lei Complementar n. 105/2001, que passou a admitir possibilidade de transmissão de informações bancárias a agentes de fiscalização tributária independentemente de decisão judicial: “o direito ao sigilo bancário, pois realiza a igualdade em relação aos cidadãos, por meio do princípio da capacidade contributiva, bem como estabelece requisitos objetivos e o translado do dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal.”

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Posteriormente, o mesmo STF estenderia analogicamente aquela tese para autorizar a requisição, pelo Ministério Público, de informações financeiras ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) com o objetivo de instruir apurações a respeito de condutas delituosas.

Já observávamos aqueles julgados com preocupação. Primeiro, porque reputamos frágil o argumento em defesa da isonomia, entendendo, ademais, que a maior estatura da oponibilidade dos direitos fundamentais (no caso, a intimidade) tem lugar exatamente contra o Estado. Em segundo lugar, porque a premissa contida no tema de repercussão geral não se verifica nas requisições pelo MP, que, ao contrário de propósito arrecadatório, tem condão punitivo. Finalmente, em terceiro lugar, porque é paradoxal o argumento de que o sigilo não pode se prestar a ocultar ilícito: a quebra se presta exatamente a fazer ver se há ou não ilicitude, de modo que a aferição sobre legitimidade ou ilegitimidade da quebra somente poderia se dar a posteriori, isto é, quando já violado o sigilo.

Seja como for, o imbróglio ganhou capítulo recente com o acirramento do confronto entre a efetividade da atuação estatal na repressão a ilícitos e a questionável desenvoltura institucional de alguns órgãos de controle. Essa tensão ficou ainda mais evidenciada quando produziu reflexos na seara política no que diz respeito ao remanejamento do COAF: MPV n. 870/2019; Lei n. 13.844/2019 e MPV n. 893/2019. Concomitantemente, o Ministro Presidente do STF, acertadamente, proferiu decisão monocrática suspendendo todas as investigações e procedimentos criminais que, sem autorização judicial, envolvessem o compartilhamento de informações entre o então Coaf e o MP (RE 1.055.941).

Todo esse cenário valeu como provocação para que sobre ele refletíssemos sob a perspectiva da improbidade. Nessa linha, resgatamos o artigo 16 da Lei n. 8.429/1992, já examinado no texto da semana passada, enfocando especificamente seu § 2º, que traz norma mantida pelo PL n. 10.887/2018: (“Art. 16. Havendo fundados indícios de responsabilidade, a comissão representará ao Ministério Público ou à procuradoria do órgão para que requeira ao juízo competente a decretação do sequestro dos bens do agente ou terceiro que tenha enriquecido ilicitamente ou causado dano ao patrimônio público. (…) § 2° Quando for o caso, o pedido incluirá a investigação, o exame e o bloqueio de bens, contas bancárias e aplicações financeiras mantidas pelo indiciado no exterior, nos termos da lei e dos tratados internacionais”).

Discussão antiga versa sobre a possibilidade ou não de o MP, por iniciativa própria, requisitar dados a instituições financeiras para empreender inquérito ou ajuizar ação de improbidade. Argumentos pró invocam o artigo 129, incisos III e IV, da Constituição, para sustentar a legitimidade do órgão para a proteção do patrimônio público e social, indicando ainda inexistir, no inciso VI do mesmo dispositivo, qualquer ressalva a documentos bancários quando se versa sobre a prerrogativa ministerial de requisição de documentos.

Indo além, o artigo 8º, II, § 2º, da Lei Complementar n. 75/1993, e o artigo 26, I, b, e § 2º, da Lei n. 8.625/1993, afastariam como óbice ao atendimento à requisição ministerial a oposição de sigilo, prevendo expressamente que as informações prestadas remanesceriam reservadas, sob pena de responsabilização do membro. Adicionalmente, o Constituinte, quando desejou, condicionou expressamente o acesso a dados sigilosos à reserva jurisdicional, conforme testemunha o artigo 5º, XII, da Constituição.

Por fim, argumento favorável, e derradeiro, reside no artigo 29 da Lei n. 7.492/1996, que, ao dispor sobre os crimes contra o sistema financeiro, previu a possibilidade de o MP requisitar, a qualquer autoridade, informação, documento ou diligência relativos a prova daqueles ilícitos.

Nenhum desses argumentos, porém, em nossa opinião, suporta a quebra unilateral pelo MP. Isso porque eles subvertem a lógica ao afirmar que a prerrogativa, geral, inferiria o sigilo bancário, ausente vedação expressa em contrário. Na verdade, o sigilo bancário, ainda que não previsto expressamente, está contido no direito à intimidade e tanto é consagrado que merece proteção, dada pela já mencionada Lei Complementar n. 105/2001, posterior e mais específica que as Leis Complementar n. 75 e Ordinária n. 8.625, aliás.

Se se cuida de direito que instrumentaliza a proteção dada à intimidade, qualquer pretensa flexibilização de sua essência comporta interpretação estrita, de sorte que seria a prerrogativa ministerial de quebra que haveria de ser expressa quanto à possibilidade de atingir o sigilo bancário, e não vedação em contrário. Não por acaso, e usando o mesmo raciocínio, o legislador, quando desejou, previu no artigo 9º da mencionada Lei Complementar n. 105 a possibilidade de o Banco Central e de a Comissão de Valores Imobiliários tomarem a iniciativa de informar ao MP sobre movimentações, limitando a hipótese, porém, à suspeita da prática de crime, nada se dizendo a respeito de improbidade pura.

Ademais, o MP não é órgão imparcial, atuando em persecuções penal e sancionadora capazes de desencadear consequências as mais graves. Se não é ele isento, não se pode garantir tenha ele altivez para delimitar adequadamente alvos e períodos das movimentações pretendidas. É exatamente por isso que se submete a apreciação do pleito ao crivo judicial.

A par de tudo isso, é fato que a Lei n. 8.429/1992, quando fez menção a “o pedido incluirá”, no citado § 2º do artigo 16, fez remissão ao caput, que dispôs, de sua vez, sobre o requerimento que há de ser feito pelo MP ao juízo para indisponibilidade de bens. Se a lei condiciona a perquirição patrimonial em medida precária à autorização judicial, com muito mais razão está sujeira à reserva jurisdicional a reunião de elementos indiciários ou de prova para condenação para embasamento de cognição exauriente. A propósito, assim viria a decidir o STF no RE 215.301.

Por todas essas razões, entendemos, sem nenhum receio de que isso possa soar como uma obviedade – afinal, as proteções e garantias podem e devem sempre ser reafirmadas, sobretudo como recomenda a atual quadra –, que requisições de movimentações bancárias pelo MP dependem de autorização judicial, sob pena de inquinarem de nulidade, ainda que por derivação, provas em inquérito público ou em ação judicial posterior.

Autores

  • é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB).

  • é advogado do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP, diretor-adjunto da Escola Superior de Advocacia da OAB-DF e secretário-geral da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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