Opinião

Jurisprudência mais gravosa não retroage em matéria penal

Autor

  • João Marcos Braga de Melo

    é advogado criminalista em Brasília pós-graduado em Direito Penal Econômico e em Direito Penal pelo ICCrim em parceria com a Universidade de Coimbra pós-graduado em Direito Penal e em Processo Penal pelo IDP mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e ex-professor voluntário da instituição.

29 de outubro de 2019, 6h02

Há uma série de controvérsias acerca da interpretação dos tipos penais que não foram pacificadas dentro do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. Menciono aqui duas já clássicas.

A primeira relativa à necessidade do ato de ofício para a configuração do crime de corrupção passiva, previsto no artigo 317 do Código Penal. No âmbito da Ação Popular 307-3, o STF decidiu pela absolvição de Fernando Collor justamente porque:

Para a configuração do artigo 317, do Código Penal, a atividade visada pelo suborno há de encontrar-se abrangida nas atribuições ou na competência do funcionário que a realizou ou se comprometeu a realiza-la, ou que, ao menos, se encontre numa relação funcional imediata com o desempenho do respectivo cargo, assim acontecendo sempre que a realização do ato subornado caiba no âmbito dos poderes de fato inerente ao exercício do cargo do agente.

De outro lado, no Recurso Especial 1.745.410, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o crime de corrupção passiva não exigiria o “nexo causal entre a oferta ou promessa de vantagem indevida e eventual ato de ofício praticável pelo funcionário público”.

A segunda controvérsia seria relativa à necessidade do dano ao erário para a configuração do crime de dispensa ilegal de licitação, previsto no artigo 89 da Lei 8.666/93. A 1ª Turma do STF tem o entendimento no sentido de que para a configuração do mencionado delito seria “desnecessário o efetivo prejuízo patrimonial à administração pública”[1]. Já a 2ª Turma daquela corte entende que é imprescindível “o prejuízo ao erário”[2]. O STJ, por sua vez, tem o entendimento alinhado com o da 2ª Turma do STF (v.g. HC 49.627).

Efetivamente, existe uma grave dúvida interpretativa a respeito do real conteúdo das proibições previstas no artigo 317 do Código Penal e no artigo 89 da Lei 8.666/93.

De outro lado, é exigência constitucional, pelo princípio da isonomia, previsto no artigo 5º, caput, da Constituição da República, que os jurisdicionados sejam submetidos a critérios iguais, previamente definidos, com base nos quais se possa firmar o juízo de proibição quanto a uma determinada conduta.

Os tribunais brasileiros, especialmente os com jurisdição em todo território nacional, são emissores do conteúdo proibido pela norma penal. E, portanto, devem garantir que a norma jurídica seja transmitida em conformidade com os preceitos de um Estado Democrático. Isso para que o cidadão jurisdicionado possa captar com precisão a forma como deve conduzir a sua vida.

Após o denominado giro linguístico (hermenêutico/pragmático), com as contribuições de Wittgenstein e do debate entre Gadamer e Habermas, a ciência jurídica deixou de trabalhar com a dissociação entre interpretação e aplicação do Direito. Nesse novo paradigma, a linguagem não é mais uma ferramenta neutra, utilizada para intermediar a relação entre o sujeito e o objeto. Ela, ao contrário, passa a ser um elemento constitutivo da vida social, compartilhado por uma determinada comunidade linguística.

Nesse contexto, a norma penal deve ser um ato de comunicação que “possa ser conhecida por todos e, de certa forma, acatada como se fosse obra de cada um”[3]. Na medida em que a norma incriminadora não possui um conteúdo estável, dentro dos próprios tribunais, ela passa a ser ilegítima.

Não por outro motivo Juarez Tavares reconhece que o dissenso na interpretação da norma penal é “um meio de deslegitimar a norma”, especialmente “quando esta não puder ser compreendida por seus destinatários”[4].

Nas duas situações acima relatadas não há uma dúvida interpretativa apenas sobre uma vírgula. Trata-se de saber se uma conduta é criminosa ou não. É a liberdade de um indivíduo em jogo. Imagine um indivíduo que em determinado momento pratica uma conduta tida por atípica pelo STJ. Parece-nos claro que a garantia da irretroatividade da norma penal impõe que ele não pode ser criminalizado anos mais tarde por uma mudança repentina de entendimento da corte. A proteção do indivíduo não pode ficar submetida às inconstâncias do entendimento dos tribunais brasileiros.

Por outro ângulo, a proteção contra a mudança de entendimento jurisprudencial em desfavor do réu encontra previsão normativa. A garantia constitucional do artigo 5º, inciso LX, da Constituição, é complementada pelo Pacto de São José da Costa Rica e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos[5] as quais delimitam o preceito da irretroatividade da lei penal, assegurando que “[n]inguém poderá ser condenado por atos ou omissões que, no momento em que foram cometidos, não constituam delito, de acordo com o direito aplicável”.

A aplicabilidade do direito, nos termos do mencionado Pacto e da Carta Universal de Direitos Humanos, diz respeito ao entendimento das cortes com jurisdição em todo território nacional, especialmente do STJ e do STF. Daí porque apenas pode ser imputado ao indivíduo aquelas condutas tidas por criminosas, pelos tribunais pátrios, no momento da sua conduta.

Surgem mais recentemente autores que defendem que “a proibição de retroatividade se estende também à variação da jurisprudência, já consolidada pelos tribunais, em súmulas ou decisões repetidas”[6]. Justamente porque a retroatividade de entendimento jurisprudencial mais desfavorável “implica uma verdadeira quebra de confiança na ordem jurídica, o que afeta diretamente sua liberdade de escolha e orientação”[7].

O princípio da irretroatividade da norma penal mais gravosa é uma garantia a favor do cidadão e não beneficia o Estado. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos, inclusive, “assinala que a jurisprudência consolidada pelos tribunais integra o conceito de direito e de lei penal para os efeitos da proibição de retroatividade”[8].

O STF já começou a se manifestar sobre a matéria da irretroatividade de entendimento jurisprudencial em matéria penal desfavorável ao réu. Na ocasião, o ministro Edson Fachin consignou o que se segue, in verbis:

Faz sentido afirmar a impossibilidade de retroatividade in pejus das alterações jurisprudenciais. Afinal, o cidadão quando pratica uma conduta, pode nutrir em sua consciência a ideia de que ela não é criminosa em razão de esse ser o entendimento dominante nos tribunais. Tanto é assim que se sustenta a irretroatividade da jurisprudência nesses casos com fundamento na existência de erro de proibição à luz do artigo 21 do Código Penal.

Como a regra constitucional do inciso LV, do artigo 5º, dita apenas que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”, entendo que a extensão dela aos entendimentos jurisprudenciais estaria permitida apenas às hipóteses em que o entendimento jurisprudencial se refere à configuração do fato como ilícito, mas não a todas as hipóteses em que reflexamente se atinge a punibilidade”[9]

Infelizmente, a corte não decidiu a questão no julgamento do HC 123.971 e, até hoje, aguarda-se uma resposta sobre a impossibilidade da retroatividade de entendimentos jurisprudenciais mais desfavoráveis ao réu.

Nesse contexto, é necessário que se firme, por parte do STJ e do STF, um compromisso com a segurança jurídica e com a igualdade de tratamento, especialmente para consolidar o entendimento a respeito do conteúdo da norma incriminadora. Isso é indispensável para que o cidadão saiba como conduzir a própria vida. Além do mais, deve se ter o cuidado para que uma vez consolidado o entendimento jurisprudencial esse seja respeitado, especialmente quando houver prejuízo à liberdade individual.

[1] AP 580, Relator(a): Min. ROSA WEBER, 1ª Turma, julgado em 13/12/2016, acórdão eletrônico DJe-139, divulgado em 23/06/2017, publicado em 26/06/2017.

[2] AP 683, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, 2ª Turma, julgado em 09/08/2016, acórdão eletrônico DJe-041, divulgado em 03/03/2017, publicado em 06/03/2017.

[3] TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. Florianópolis. TirantloBlanch, 2018. P. 64.

[4] TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. Florianópolis. TirantloBlanch, 2018. P. 65.

[5] Artigo 11° […]

2. Ninguém será condenado por ações ou omissões que, no momento da sua prática, não constituíam ato delituoso à face do direito interno ou internacional. Do mesmo modo, não será infligida pena mais grave do que a que era aplicável no momento em que o ato delituoso foi cometido.

[6] TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. Florianópolis. TirantloBlanch, 2018. P. 65.

[7] TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. Florianópolis. TirantloBlanch, 2018. P. 66.

[8] TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. Florianópolis. TirantloBlanch, 2018. P. 65.

[9] HC 123.971, Plenário. Relator para o acórdão: ministro Roberto Barroso.

Autores

  • é advogado criminalista, sócio da Braga de Melo Advocacia Criminal. Professor voluntário da Universidade de Brasília (UnB), pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal e mestrando em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

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