Reflexões trabalhistas

Nobel da Paz de 2014 se inspirou na lei brasileira de combate ao trabalho escravo e infantil

Autor

  • Raimundo Simão de Melo

    é consultor Jurídico advogado procurador regional do Trabalho aposentado doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP professor titular do Centro Universitário do Distrito Federal-UDF/mestrado em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho e autor de livros jurídicos.

25 de outubro de 2019, 14h52

Spacca
Em conferência de abertura do 5º Seminário Internacional do Trabalho Seguro no TST, o indiano Kailash Satyarthi, vencedor do Prêmio Nobel da Paz em 2014, disse que, na sua atuação humanista, inspirou-se na lei brasileira de combate ao trabalho escravo e infantil, reconhecendo que a sociedade civil e o Judiciário do Brasil estão na vanguarda do mundo na criação de meios legais e políticos para acabar com o trabalho escravo .

Destacou o Nobel da Paz em 2014 o papel do Judiciário como garantidor de direitos fundamentais, lembrando sua história no combate ao trabalho escravo e infantil, afirmando que o Judiciário na Índia foi essencial para resgatar mais de 50 mil pessoas do trabalho escravo e infantil, porque o tribunal levou a sério a questão e aprovou uma diretiva definindo o que era escravidão e trabalho forçado.

Lembrou Kailash Satyarthi que “vivemos num mundo competitivo, em que as empresas tentam cortar custos indiscriminadamente e em que o lucro é o mais importante. O resultado é a perda de poder de barganha dos trabalhadores”, concluindo que são necessários três valores fundamentais para uma cultura de paz no trabalho: a segurança em seu aspecto jurídico, garantida pelo poder público; a dignidade, que deve estar presente em todas as relações interpessoais; e um “ambiente sem medo.

As reflexões do Nobel da Paz de 2014 são por demais importantes para o Brasil, que nas décadas anteriores fez diferença mundial no combate ao trabalho análogo ao de escravo, em especial no momento em que vive o Brasil, de tanto desvalor institucional pelos direitos fundamentais dos trabalhadores e pela segurança no trabalho, destacando-se a reforma trabalhista de 2017, que caminhou no sentido da precarização das condições de trabalho, instituindo na lei até que normas sobre jornadas e intervalos de trabalho não são mais de segurança, medicina e saúde e, portanto, não têm mais natureza de ordem pública e de inderrogabilidade. Depois veio a extinção formal do Ministério do Trabalho, com dispersão administrativa de suas já combalidas estruturas de regulamentação e fiscalização do trabalho, demonstrando que o mundo do trabalho, embora ocupe a centralidade na vida das pessoas, parece não mais ser o centro das políticas públicas nacionais, como disse o ministro Vieira de Mello do TST na abertura de referido evento.

Na contramão da valorização do trabalho humano apregoa-se que o governo atual, a pretexto de continuar “modernizando” a legislação trabalhista para facilitar a abertura de vagas no mercado de trabalho, quer reduzir a 10% as normas sobre saúde e segurança do trabalho inscritas nas mais de 30 Normas Regulamentadoras – NRs, feitas de forma tripartite pelo Estado, empregados e empregadores, na linha do tripartismo e da política de diálogo social da OIT.

Enquanto isso, o que se vê é o desemprego aumentando a cada dia, a informalidade num crescente nunca visto, os trabalhadores empobrecendo em ritmo avassalador, as condições de trabalho se degradando, inclusive com o aumento do assédio e violência no trabalho e o próprio trabalho análogo ao de escravo mostrando suas garras. Exemplo disso foi recente operação no Mato Grosso do Sul, quando seis trabalhadores paraguaios foram resgatados de condições análogas às de escravo em duas propriedades rurais, nos municípios de Caracol e Bela Vista, no Mato Grosso do Sul, entre os dias 1º e 15 de outubro. Quatro deles estavam há mais de dez anos trabalhando na mesma fazenda. As operações, coordenadas pela chefia de fiscalização da Superintendência Regional do Trabalho, contando com a participação do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Militar Ambiental, resgataram 13 pessoas ao todo.

Não esqueçamos de que mais de 54 mil pessoas foram retiradas dessas condições pelo governo brasileiro desde 1995, de acordo com o Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, o que representou importante vitória do Brasil no combate ao trabalho análogo ao de escravo, cujas políticas públicas tiveram impulso a partir da década de 90.

Conforme o Auditor Fiscal do trabalho Antônio Maria Parron, que coordenou essa última ação, as pessoas, incluindo paraguaios, tinham que fazer suas necessidades no mato. O alojamento era precário. A água para beber, tomar banho, cozinhar e lavar as roupas era colhida em um riacho através de um recipiente improvisado que, antes, era usado para defensivos agrícolas. A carne que consumiam estava em estado de decomposição e era guardada em uma embalagem reutilizada de lubrificante.

Os três ramos econômicos onde essa condição foi mais encontrada foram a pecuária, a produção de café e o plantio de florestas.

Não se pode esquecer de que o trabalho análogo ao de escravo representa grave violação dos direitos humanos e fundamentais, dos direitos trabalhistas e das normas de saúde, segurança e medicina do trabalho, constituindo grave afronta à dignidade humana e à cidadania dos trabalhadores.

O Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer o problema perante a Organização Internacional do Trabalho (OIT), criando em 1995 o grupo móvel de fiscalização, formado por auditores fiscais, procuradores do trabalho e policiais federais para atender denúncias em todo o País.

Segundo informações do antigo Ministério do Trabalho, no ano de 2017 foram realizadas 88 operações de fiscalização para erradicação do trabalho escravo, enquanto que em 2016 foram 115 porque o plano orçamentário para esse fim teve contingenciamento de 52,2% em 2017, o que representa o desmantelamento das políticas de combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil, uma ação deliberada para impedir a fiscalização de combate a tão grave forma de trabalho e de desapreço pelo ser humano.

É preciso resgatar e fortalecer a fiscalização sobre condições e ambientes de trabalho, porque sem ela instaura-se facilmente um círculo vicioso de precariedade, de pobreza, exploração e falta de condições de consumo.

Por isso, os poderes públicos precisam combater essa chaga social e impedir que ainda vigorem no país relações de trabalho que remontam ao período colonial, adotando as necessárias e pertinentes políticas públicas.

Autores

  • é consultor jurídico, advogado, procurador regional do Trabalho aposentado, doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP e professor titular do Centro Universitário UDF e da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (SP), além de membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho. Autor de livros jurídicos, entre outros, Direito ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador e Ações acidentárias na Justiça do Trabalho.

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