Diário de Classe

Ensaio acerca das respostas corretas no Direito: o que significa isso?

Autores

  • Giovanna Dias

    é graduanda em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • Guilherme Augusto De Vargas Soares

    é advogado mestrando em Direito Público – Hermenêutica Constituição e Concretização de Direitos – pelo programa de pós-graduação da Unisinos membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB-RS membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) e membro do DASEIN (Núcleo de Estudos Hermenêuticos) coordenado pelo professor Lenio Luiz Streck.

19 de outubro de 2019, 8h00

A discussão acerca da possibilidade de respostas corretas aos casos controvertidos do Direito está assentada em um debate tão filosófico quanto aquele sobre a verdade[1]. No passado, foram diversos os autores que trabalharam e desenvolveram teses sobre a decisão judicial (alguns mais influentes que outros, por isso, pedimos permissão para que possamos manter o foco naqueles); no presente, ainda são encontradas pesquisas que tematizam a discussão.

No Diário de Classe deste sábado, abordaremos uma questão que — embora devesse — não é comum de ser debatida nas salas de aula dos cursos de graduação: existem respostas corretas no Direito? Em caso positivo, quais são os seus critérios?

Começando do começo: o positivismo hartiano
Em meados do século passado, travou-se uma discussão filosófica acerca dos casos considerados de maior complexidade no Direito — ou seja, aqueles em que a regra positivada não corresponde com suficiência, tendo em vista a limitação da linguagem em dispor de todas as circunstâncias singulares do caso.

A raiz dessa discussão deu-se a partir de um entendimento advindo dos positivismos jurídicos da época. Convém, aqui, citarmos o principal deles: o positivismo hartiano. Explicamos: ao trabalhar a ideia de textura aberta da norma jurídica, Hart desenvolveu o conceito de zona de penumbra, na qual os casos complexos estão assentados. Nessas situações, o intérprete estaria legitimado a incorrer em discricionariedade, tendo em vista que não haveria uma norma capaz de ser subsumida àquele determinado caso concreto.

Em outras palavras, Hart sustentou que, em situações excepcionais, o intérprete pode deparar-se com casos de alta complexidade, que não possuem respaldo em nenhuma norma jurídica publicada. Nesse sentido, a falta de um dispositivo que, em sua literalidade, corresponda ao caso concreto, significa a falta de normatividade em relação a ele. Assim, o julgador estará legitimado a criar uma resposta para aquele caso, que pode ser fundamentada em critérios de moralidade, de economia ou de política — critérios extrajurídicos — , tendo em vista não haver uma resposta juridicamente predeterminada. Para o autor, discricionariedade é uma consequência da indeterminação normativa —  e, por isso mesmo, é inevitável que ela aconteça.

Ao permitir que o intérprete se utilize de sua discricionariedade, no fundo, estar-se-ia permitindo que qualquer resposta fornecida pelo julgador seja correta, ainda que ela não seja apoiada em critérios jurídicos. Poder-se-ia sustentar que Hart relega essa discricionariedade a situações excepcionais – como referido acima -, no entanto, o jurista Lenio Streck, em sua obra Verdade e Consenso[2], demonstra como essa dicotomia estrutural entre um hard case (caso complexo) e um easy case (caso fácil) é um tanto quanto falaciosa, na medida em que o Direito é um fenômeno feito, sobretudo, de linguagem, e o (mau) uso dela pode facilmente tornar um easy case em um hard case – e, assim, vice-versa. Portanto, a discricionariedade em Hart pode, facilmente, deixar de ser aplicada apenas em casos de excepcionalidade.

A resposta de Ronald Dworkin
Não conformado com essa formulação, Ronald Dworkin seguiu a discussão e efetuou duras críticas às formulações de Hart. Isto porque o próprio conceito de sistema é argumentativa[3]. O entendimento é de que há um processo de intejurídico para o autor estadunidense é fundamentalmente diferente do positivismo hartiano. Para Dworkin, o direito é um fenômeno social que possui uma estrutura própria, na medida em que a prática jurídica de prestação construtiva que vincula o intérprete, que está além da mera literalidade da regra jurídica e que envolve os chamados princípios jurídicos.

Por isso, Dworkin nega que os juízes devam exercer o que ele chama de “discricionariedade forte” e aplicarem critérios extrajurídicos, olhando para além do Direito. Concorda que há uma discricionariedade fraca”, na medida em que são obrigados a usar o seu juízo no raciocínio de aplicação dos princípios jurídicos às conclusões jurídicas. De igual maneira, em algumas vezes, os juízes possuem discricionariedade no sentido de darem a última palavra ao caso em específico.[4] No entanto, em relação aos casos em zona de penumbra, o juiz deve retornar ao Direito e buscar respostas na sua estrutura argumentativa, construída a partir de um complexo empreendimento em cadeia de práticas jurídicas e jurisprudência.

Em outras palavras, o autor reconhece que, ainda que não se tenha uma norma jurídica que, em sua literalidade, seja suficiente para incidir nas circunstâncias fáticas do caso, existe um padrão normativo que supera a questão. O Direito possui condições de dar uma resposta ao caso concreto, na medida em que, além das regras, há outro tipo de padrões jurídicos —  os princípios —  que vinculam o intérprete até mesmo nos casos difíceis. Por isso, a resposta correta em Dworkin tem relação com uma decisão que leve em consideração esses padrões normativos desenvolvidos por meio de uma construção argumentativa do sistema jurídico, que formam uma cadeia de sentidos que vinculam o intérprete e, consequentemente, fortalece a autonomia do Direito.

Mas Dworkin não foi o único a abordar a questão e a debater com Hart.

A resposta de Lon Fuller
Esse entendimento de que o Direito é capaz de fornecer respostas, inclusive nos casos de zona de penumbra também pode ser encontrado nas teses de Lon Fuller, que adentrou na discussão antes mesmo de Dworkin. Em 1958, o autor publicou artigo direcionado especificamente para discutir essa questão[5]. Em sua análise, não apenas o Direito é capaz de fornecer respostas aos casos concretos – ainda que complexos -, como essas respostas vinculam o intérprete.

Em que pese Fuller não tenha desenvolvido um conceito de resposta correta ou não tenha avançado tanto quanto Dworkin, sua teoria e o seu conceito sobre o sistema jurídico já pressupunha uma integridade semântica, uma coerência interna que garante a sua autonomia enquanto sistema autêntico. Ou seja, o intérprete estaria vinculado a algo que está além da mera literalidade da norma e que é fornecido pelo próprio sistema de regras. Trata-se da ideia de propósito da norma jurídica.

Explicando melhor, ao considerar que toda a ação humana possui uma intenção, um propósito específico, direcionado para alguma finalidade, Fuller compreende que com o Direito não seria diferente, tendo em vista ser este um grande — e um dos mais importantes — empreendimento humano. Nesse contexto, falar em Direito significa dizer que todo sistema jurídico possui um propósito que dá sentido à sua existência, e este propósito pode ser – e deve ser – extraído da própria norma jurídica considerada insuficiente ou do restante do sistema jurídico no qual o julgador está inserido[6]. Quer dizer, ao olhar para as regras de um sistema jurídico, é possível extrair qual é o seu propósito, em qual sentido ele direciona a conduta humana.

Hart exemplificou o seu ponto com o famoso exemplo da regra de proibição de veículos nos parques públicos. Fuller contra-argumentou demonstrando que, nesse caso, recorrer à discricionariedade, além de ser errado, é desnecessário, pois o propósito da regra é evitar que os veículos atrapalhem o tráfego de pedestres e, por isso, qualquer meio de transporte preencha esse requisito é considerado um veículo nos termos da norma (ainda que ele seja um skate). Nesse sentido, se um tanque de guerra for colocado no meio do parque público como um monumento histórico, para os fins daquela norma jurídica, ele não é considerado um veículo.[7]

Para Lon Fuller, a resposta correta no Direito significa aquela que leve em consideração o seu propósito, a ser extraído do próprio texto jurídico. Não há a necessidade de recorrer a uma discricionariedade ou a princípios extrajudiciais, escolhidos de maneira ad hoc. Para buscar por respostas corretas, deve-se olhar para o que o Direito tem a dizer sobre o caso, ainda que a ordem jurídica não esteja posta de maneira literal — porque a linguagem do sistema não se reduz a um mero textualismo. Essas são as conclusões que se podem chegam a partir de uma leitura dos empreendimentos acadêmicos dos últimos dois autores trabalhados até aqui.

A resposta correta (constitucionalmente adequada) em Lenio Streck
Foi a partir da Crítica Hermenêutica do Direito, desenvolvida pelo jurista Lenio Streck, que a ideia de uma resposta correta no Direito foi desenvolvida. Um dos desdobramentos da CHD é a construção de uma Teoria da Decisão judicial. Com imbricação da teoria de Dworkin, surge a tese do direito fundamental a respostas constitucionalmente adequadas (respostas corretas), que, por sua vez, está atrelada ao dever de fundamentação das decisões judiciais.

A CHD está assentada tanto na proposta de coerência e integridade de Dworkin quanto na hermenêutica filosófica de Gadamer. Por isso, a possibilidade de obtenção de respostas corretas no Direito está, principalmente, na fundamentação e justificação das decisões judiciais. Aposta, necessariamente, na coerência e integridade como o único meio efetivo de conter a discricionariedade judicial. Por isso, trata-se de uma teoria sobre a responsabilidade interpretativa do julgador, tendo em vista que a resposta judicial fundada em critérios de subjetividade é considerada incorreta.

Streck desenvolve a ideia de um direito fundamental a obtenção de uma resposta constitucionalmente adequada – ou seja, resposta correta para fins jurídicos -, que pressupõe a aversão a elaboração de respostas definitivas, mas, sim, que respeitem em maior grau a autonomia do Direito, respeitando-se a sua coerência e integridade. A resposta deve ser confirmada na Constituição, respeitando-se o princípio democrático.

Para se dar início a uma resposta correta (resposta constitucionalmente adequada) Streck afirma que o julgador poderá deixar de aplicar a regra em apenas seis hipóteses[8]:

a) quando a lei (o ato normativo) for inconstitucional, caso em que deixará de aplicá-la (controle difuso de constitucionalidade stricto sensu) ou a declarará inconstitucional mediante controle concentrado; as especificidades podem ser encontradas nos respectivos desdobramentos da presente obra;
b) quando for o caso de aplicação dos critérios de resolução de antinomias;
c) quando aplicar a interpretação conforme a Constituição. Nesse caso, o texto de lei (entendido na sua “literalidade”) permanecerá intacto. O que muda é o seu sentido, alterado por intermédio de interpretação que o torne adequado à constituição;
d) quando aplicar a nulidade parcial sem redução de texto, pela qual permanece a literalidade do dispositivo, sendo alterada apenas a sua incidência;
e) quando for o caso de declaração de inconstitucionalidade com redução de texto;
f) quando for o caso de deixar de aplicar uma regra em face de um princípio (entendidos estes não como standards retóricos ou enunciados performativos).

Essas hipóteses estão assentadas i) na preservação da autonomia do Direito; ii) no controle hermenêutico da interpretação constitucional; iii) no respeito à integridade e à coerência do Direito; iv) no dever fundamental de justificar as decisões; v) no direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada.

No fundo, a tese de resposta constitucionalmente adequada significa um constrangimento à discricionariedade judicial. Trata-se de um elogio à democracia, na medida em que, apenas com a autonomia do Estado de Direito as instituições se mantém fortificadas. Evidentemente, a tese da RAC (Resposta Adequada à Constituição) não se esgota nestes "procedimentos".

Quem for iniciado nas obras de Streck sabe que o caminho é mais longo e complexo do que isso, como pode ser identificado no aprofundamento dos conceitos de constrangimento epistemológico, autonomia do Direito, discricionariedade, proibição de livre convencimento, Condição Hermenêutica de Sentido e, fundamentalmente, o revolvimento do chão linguístico em que está assentada a tradição, o que faz exsurgir, segundo o Professor Streck, o fenômeno. Entra aí o método fenomenológico por ele aprimorado nos últimos anos, presente, implicitamente, em todo o seu empreendimento acadêmico e nas respostas adequadas que a sua teoria busca alcançar.

Considerações finais
Falar em resposta correta no Direito é tão desafiador quanto necessário. Toda a discussão possui desdobramentos diversificados, isto porque, no fundo, o que é diversificado é o próprio conceito de Direito. Resta analisar qual deles melhor responde à realidade que se impõe, também em um grau de dever ser.

Considerar que o Direito possui respostas, ainda que a literalidade da norma jurídica não seja suficiente, parece-nos a melhor conclusão a ser adotada. É a única forma de consolidar aquilo que democraticamente foi estabelecido. A linguagem do/no Direito não se esgota na literalidade dos textos. Isso não significa desconsiderá-los e enfraquecer a sua normatividade. Pelo contrário, ao entender que a norma jurídica diz mais do que a sua simples literalidade, fortifica-se ainda mais a sua vinculação. Trata-se de um modo de consolidação da autonomia jurídica.

[1] STRECK, LENIO LUIZ. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito a luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 1. ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2017, p. 251.
[2] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 6. ed. São Paulo: Saraiva jur, 2017.
[3] DWORKIN, Ronald. Law’s Empire, p. 13.
[4] SHAPIRO, Scott J. O debate “Hart versus Dworkin”: um pequeno guia para os perplexos. In: Interpretando o Império do Direito: ensaios críticos e analíticos. (Org) COELHO, André; MATOS, Saulo de; BUSTAMANTE, Thomas. Belo Horizonte: Arrares Editores, 2018, p. 261.
[5] Em verdade, toda a sua teoria sobre o Direito responde a isso. Contudo, trata-se do artigo FULLER, Lon L. Positivism and fidelity to Law: a reply to Professor Hart. Harvard Law Review, Cambridge, vol. 71, nº 4, pp. 630-672, 1958.
[6] Sem adentrar nos aspectos mais singulares de sua brilhante teoria, sugerimos a leitura do artigo publicado nesta coluna: MORBACH, Gilberto. Lon Fuller e a moralidade que torna o direito possível. Revista Eletrônica Consultor Jurídico. São Paulo, 23 fev 2019. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2019-fev-23/diario-classe-lon-fuller-moralidade-torna-direito-possivel>.
[7] FULLER, Lon L. Positivism and fidelity to Law: a reply to Professor Hart. Harvard Law Review, Cambridge, vol. 71, nº 4, pp. 630-672, 1958.
[8] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.p. 347-348.

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