Opinião

O discurso da impunidade e a presunção de inocência

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16 de outubro de 2019, 6h22

O Brasil atingiu a cifra de cerca de 800 mil presos – a terceira maior população carcerária do planeta – sendo que, desse total, 40% são de presos provisórios, ou seja, que ainda não foram condenados definitivamente por uma sentença com trânsito em julgado. Contudo, há quem insista em dizer que o Brasil é o país da impunidade.

No que se refere ao usual e já banalizado discurso da impunidade, para justificar o avanço do Estado penal através de medidas draconianas, Ricardo Genelhú observa que:

o ‘discurso da impunidade’, com seu ensaio neurótico promovido por pessoas com onipotência de pensamento, tem poderosamente servido muito mais para ‘justificar’, ‘ratificar’ ou ‘manter’ a exclusão dos ‘invisíveis sociais’, tragicamente culpados e, por isso, incluídos por aproximação com os ‘inimigos’ (parecença), do que para demonstrar a falibilidade seletiva e estrutural do sistema penal antes e depois que um ‘crime’ é praticado, ou enquanto se mantiver uma reserva delacional publicizante, seja porque inafetadora do cotidiano privado, seja porque indespertadora da cobiça midiática.[1]

Ao contrário do que se imagina, a experiência legislativa demonstra, inequivocamente, que não há relação alguma entre leis que privilegiaram o endurecimento do sistema penal com a redução da criminalidade (vide a Lei 8.072/90 – crimes hediondos). Pelo contrário, medidas baseadas na política-criminal “da lei e da ordem” tem levado ao encarceramento em massa, principalmente, dos mais vulneráveis e ao colapso do sistema penal.

Em alerta aos punitivistas, Tiago Joffily e Airton Gomes Braga já destacaram que

o problema é que a imaginada correlação entre encarceramento, de um lado, e redução da criminalidade, de outro, nunca foi demonstrada empiricamente. Ao contrário, as mais recentes e abrangentes pesquisas empíricas realizadas sobre o tema apontam para a inexistência de qualquer correlação direta entre esses dois fenômenos, havendo praticamente consenso entre os estudiosos, hoje, de que o aumento das taxas de encarceramento pouco ou nada contribui para a redução dos índices de criminalidade.[2]

Negar vigência a Constituição da República, notadamente ao princípio constitucional da presunção de inocência, em nome do oco e leviano discurso da impunidade é desprezar as palavras proferidas pelo Dr. Ulysses Guimarães quando em 5 de outubro de 1988 ressaltou que

A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a: reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais.

Afrontá-la, nunca.

Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério.

Não é demais martelar que A Constituição da República proclama que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII da CR)[3]. Consagrando assim, o princípio da presunção de inocência.

No ano de 2009, o Supremo Tribunal Federal, em julgamento do Habeas Corpus 84.078, reconheceu que o princípio da presunção de inocência se aplicava até que houvesse uma condenação definitiva, transitada em julgada. A referida decisão impedia, assim, a chamada execução provisória da pena, enquanto houvesse recurso pendente.

Em seu voto, o ministro (Relator) Eros Graus, destacava que “a prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar. Lembro, a propósito, o que afirma Rogério Lauria Tucci, meu colega de docência na Faculdade

de Direito do Largo de São Francisco: "o acusado, como tal, somente poderá ter sua prisão provisória decretada quando esta assuma natureza cautelar, ou seja, nos casos de prisão em flagrante, de prisão temporária, ou de prisão preventiva”.

Em 2016 no julgamento do Habeas Corpus 152.752, o eminente ministro Celso de Mello – honrando a Constituição – e acompanhando a minoria vencida, enfatizou que:

Nenhum dos Poderes da República pode submeter a Constituição a seus próprios desígnios, ou a manipulações hermenêuticas, ou, ainda, a avaliações discricionárias fundadas em razões de conveniência ou de pragmatismo, eis que a relação de qualquer dos Três Poderes com a Constituição há de ser, necessariamente, uma relação de incondicional respeito, sob pena de juízes, legisladores e administradores converterem o alto significado do Estado Democrático de Direito em uma promessa frustrada pela prática autoritária do poder.

Mais adiante, o decano do STF observa que:

Acho importante referir, de outro lado, por necessário, que a presunção de inocência não se esvazia progressivamente, à medida em que se sucedem os graus de jurisdição. Isso significa, portanto, que, mesmo confirmada a condenação penal por um Tribunal de segunda instância, ainda assim subsistirá, em favor do sentenciado, esse direito fundamental, que só deixará de prevalecer – repita-se – com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, como claramente estabelece, em texto inequívoco, a Constituição da República. Enfatizo, ainda, que o “status poenalis” não pode sofrer – antes de sobrevir o trânsito em julgado de condenação judicial – restrições lesivas à esfera jurídica das pessoas em geral e dos cidadãos em particular. Essa opção do legislador constituinte (pelo reconhecimento do estado de inocência) claramente fortaleceu o primado de um direito básico, comum a todas as pessoas, de que ninguém – absolutamente ninguém – pode ser presumido culpado em suas relações com o Estado, exceto se já existente sentença penal condenatória transitada em julgado.

Definitivamente, o discurso da impunidade serve apenas e tão-somente àqueles que dão as costas para a Constituição da República e de ombros para o Estado Democrático de Direito.


[1] GENELHÚ, Ricardo. Do discurso da impunidade à impunização: o sistema penal do capitalismo brasileiro e a destruição da democracia. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

[2] Disponível em< http://emporiododireito.com.br/alerta-aos-punitivistas-de-boa-fe-nao-se-reduz/

[3] Segundo Gustavo Badaró, “Certamente, a fonte inspiradora tal dispositivo foi a Constituição italiana de 1948: L’imputato non è considerato colpevole sina Allá condanna definitiva”. BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribuanais, 2016, p.60.

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