Opinião

Utilização indevida do IRRF para penalizar sociedades envolvidas na "lava jato"

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10 de outubro de 2019, 6h39

Como se sabe, a Receita Federal do Brasil (RFB) estruturou uma operação especial com o objetivo de apurar potenciais débitos fiscais reflexos e identificar atos ou fatos apurados na Operação Lava Jato que, em tese, configuram crime contra a ordem tributária.

Os ilícitos investigados no âmbito da Operação Lava Jato, como regra, envolvem a celebração de contratos de prestação de serviço e/ou venda de mercadorias com as denominadas “empresas de fachada”, que emitem notas fiscais inidôneas para dissimular pagamentos sem causa lícita.

Em geral, as autuações contra as sociedades que realizam os referidos pagamentos: (i) consideram os pagamentos realizados indedutíveis da base de cálculo do IRPJ e CSLL, o que pode representar uma carga fiscal correspondente a até 34% do valor de tais pagamentos; (ii) exigem IRRF sobre tais pagamentos, sob a alegação de que se tratam de pagamentos sem causa ou de operação não comprovada, à alíquota de 35%, que, com ajuste de base de cálculo (gross up), corresponde a uma alíquota efetiva de 53,85%; e (iii) quando os contratos firmados com as “empresas de fachada” envolvem a aquisição de mercadorias, cancelam os respectivos créditos de PIS e COFINS relativamente a esses valores eventualmente utilizados.

São impostas, ainda, altas penalidades aos contribuintes: (i) multa isolada por falta de recolhimento das antecipações mensais do IRPJ e da CSLL (50% dos valores que deveriam ter sido recolhidos) e (ii) multa agravada no percentual de 150% aplicável aos casos em que é verificada a existência de fraude, dolo ou simulação.

A grosso modo, pode-se dizer que as sociedades que realizaram os pagamentos acima mencionados estão sujeitas a cobrança de créditos tributários correspondente a mais de 2 vezes o valor dos pagamentos realizados.

Sob o ponto de vista das pessoas físicas consideradas reais beneficiárias dos pagamentos realizados, as autoridades fiscais têm exigido o IRPF sobre os valores recebidos, ainda que tais pessoas físicas devolvam tais valores à União como parte do acordo de delação premiada.

Ocorre que a esfera tributária não é o meio adequado para punir a prática de ilícitos. O Direito Tributário possuí princípios e diretrizes distintos daqueles que regem o Direito Penal.

As autuações fiscais não podem deixar de aplicar princípios basilares do Direito Tributário, como o não confisco, a capacidade contributiva, a proporcionalidade, a vedação ao bis in idem, bem como deixar de observar o próprio critério material dos tributos, delineados na competência tributária conferida pela Constituição Federal aos entes tributantes.

Por exemplo, o IRRF que é exigido nas autuações fiscais da Operação Lava Jato é cabível apenas nos casos em que o Fisco comprova a existência de um pagamento sem causa ou a beneficiário não identificado. Conforme se vem observando, as autoridades fiscais não só identificam os reais beneficiários dos pagamentos, como apontam a sua causa econômica (obtenção de vantagens indevidas).

Além disso, geralmente, os valores pagos são devidamente tributados pelas pessoas jurídicas que recebem os pagamentos, ou, ainda, como mencionado anteriormente, são objeto de cobrança por meio de autuações contra as pessoas físicas, sócias das denominadas “empresas de fachada”.

Tendo em vista que o IRRF nesse caso representa apenas uma garantia de que o tributo devido pelos beneficiários dos rendimentos será efetivamente recolhido, uma vez que a impossibilidade de identificação do beneficiário ou da causa do pagamento ou da entrega de valores torna impossível o recolhimento do tributo de fato devido de seu beneficiário, parece evidente que sua cobrança não poderia prevalecer quando o imposto de renda já foi pago ou está sendo exigido do efetivo beneficiário dos rendimentos.

A cobrança do referido IRRF nas situações descritas anteriormente somente se justificaria se fosse entendido o dispositivo como verdadeira penalidade. Aparentemente esse é o entendimento das autoridades fiscais, que ainda assim, concomitantemente a esse tributo, exigem multa agravada (150%).

O IRRF, ainda, tem a mesma base de cálculo da cobrança do IRPJ e CSLL em razão de os pagamentos efetuados serem considerados indedutíveis da base de cálculo desses tributos.

O cancelamento das despesas de IRPJ e CSLL referentes aos pagamentos realizados para obtenção de vantagem indevida também parece violar diversos princípios constitucionais, e especialmente o próprio conceito de renda. Isso porque, não há dúvidas de que os valores em questão saíram do patrimônio das sociedades, ainda que tal saída tenha ocorrido em virtude de um ato ilícito. Vale lembrar que há casos em a própria legislação fiscal já prevê a dedutibilidade de valores relacionados a ilícitos, como, por exemplo, os desvios de recursos financeiros por empregados das sociedades.

Não se está defendo aqui a legalidade de ilícitos. Só queremos relembrar o que, não somente é óbvio, mas, está expressamente previsto pelo Código Tributário Nacional: a imposição de tributo não pode se destinar à sanção de atos ilícitos.

Nesse sentido, recentes decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) parecem trazer alguma esperança de que a discussão a respeito da correta aplicação do IRRF nos pagamentos sem causa ou sem beneficiário identificado ainda evoluirá nas cortes administrativas.

Na Resolução nº 2401-000.740, proferida na 2ª Sessão de Julgamento da 4ªmara da 1ª Turma Ordinária do Carf em 6 de agosto de 2019, foi discutido um processo em que houve delação premiada admitindo pagamentos de vantagens indevidas para terceiros. Nesse caso, a defesa utilizou argumentos distintos daqueles que se costumam identificar ao analisar a jurisprudência do Carf sobre o IRRF aqui referido.

Alegaram os recorrentes que seria necessário que a defesa tivesse acesso aos autos de infração e processos administrativos fiscais com as respectivas decisões pertinentes das empresas contratantes e dos beneficiários finais dos referidos pagamentos para que se esclarecesse, em resumo, se o Fisco conseguiu realizar a cobrança e arrecadação do imposto sobre a renda devido pelas pessoas jurídicas beneficiárias efetivas dos pagamentos.

Assim, foi proferida decisão no sentido de que não houve cerceamento do direito de defesa, até porque não há previsão legal para a suspensão do processo administrativo até que se apreciem casos de contribuintes diversos. Ainda assim, decidiu-se que o esclarecimento dos quesitos levantados pelo contribuinte “pode eventualmente ser relevante para a formação do convencimento dos conselheiros”, de modo que o julgamento foi convertido em diligência para levantamento das informações referentes às discussões administrativas dos autos de infração relacionados.

Ainda que não tenha ocorrido julgamento de mérito, essa decisão é relevante, pois demonstra um interesse por parte do Carf em buscar alguma coerência para a aplicação do IRRF sobre pagamentos sem causa ou a beneficiário não identificado.

Nesse mesmo sentido foram proferidas outras decisões no Carf, em que se determinou a conversão do processo em diligência para que se verificasse se foi possível a cobrança do IRRF na pessoa do beneficiário dos pagamentos.

É o caso da Resolução nº 1201-000.652, proferida pela 2ª Câmara da 1ª Turma Ordinária do Carf, em 22 de novembro de 2018, em que se determinou que, em vez de promover o lançamento de IRRF em face da sociedade autuada que realizou os pagamentos, as sociedades beneficiárias de tais pagamentos deveriam ser intimadas a fim de apurar se ofereceram regularmente à tributação os pagamentos recebidos.  

A Delegacia de Julgamentos da RFB – DRJ, diante de tal pedido, entendeu que caberia à própria sociedade autuada o ônus probatório, mesmo considerando que a fiscalização teria identificado as sociedades beneficiárias e não realizou qualquer diligência para se verificar se os tributos devidos por estas foram devidamente recolhidos.

Para o Carf, contudo, esse não seria um ônus da sociedade autuada, cabendo-lhe, simplesmente, identificar o beneficiário e a causa da operação. Dito isto, decidiu-se pela conversão do julgamento em diligência para a verificação e a comprovação da ausência de recolhimento de tributos por parte das sociedades beneficiárias dos pagamentos ou demonstração de que tais valores não são os mesmos cobrados a título de omissão de receitas das sociedades beneficiárias, pois, do contrário, haveria o risco de dupla tributação.

Assim, ainda que a jurisprudência majoritária do Carf seja, ainda, no sentido da manutenção da cobrança do IRRF sobre os pagamentos realizados no âmbito de transações objeto da Operação Lava Jato, parece haver esperança de que a jurisprudência comece a caminhar em sentido diverso, para reconhecer, ao menos, a impossibilidade da cobrança do referido tributo, quando comprovada a tributação –ou, ao menos a exigência – dos tributos devidos pelos beneficiários de tais pagamentos.

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