Embargos culturais

O inferno de Dante, a criminologia medieval e o paradoxo de nossos limites e possibilidades

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

6 de outubro de 2019, 8h00

Spacca
A Comédia (séc. XIII) de Dante Alighieri, assim foi chamada porque tudo começa mal e tudo termina bem[1]. De tal modo são as comédias na tipologia tradicional grega. Dante começou visitando o inferno, e terminou no paraíso. As tragédias, em contrapartida, começam bem e terminam mal.

O adjetivo Divina é posterior, talvez atribuído a Boccaccio. Dante, acompanhado por Virgílio (o maior poeta romano) visitou o inferno e o purgatório. Porque não era cristão, Virgílio não entrou no paraíso. É a terceira parte desse fascinante livro. Dante visitará o paraíso acompanhado da amada, Beatriz Portinari. Não pode haver final mais feliz, por isso, o sentido de uma comédia. Não se sabe se a musa de fato existiu, ainda que em Florença se indique um lugar como seu túmulo.

O poema é carregado de simbologias. Purgatório e paraíso tem 33 cantos. O inferno conta com 34 cantos, porque o primeiro é de apresentação. Os versos originais são decassílabos perfeitos. O poema está em versos agrupados em três. Esse número é a chave cabalística de interpretação. O nome Beatriz sugere “três vezes beata ou três vezes geradora de vida” (triz, ou trice).

Eram três os animais que estevam na porta do inferno quando Dante encontrou Virgílio: uma pantera, um leão e uma loba. A loba pode significar a avareza ou a Cúria Romana. O leão pode representar a soberba e a violência, ou mesmo a França, que à época recorrentemente invadia as cidades italianas. A Itália ainda não era uma país unificado. A unificação somente ocorrerá em 1871. Dante, de algum modo, colaborou para a construção política da Itália, na medida em que unificou a língua da península, com base no dialeto toscano ou florentino. Na tradição italiana, Dante é o “padre della língua”[2]. A pantera pode significar a luxúria, ou mesmo a cidade de Florença, onde vivia.

O que mais assusta e intriga é a geografia imaginária do inferno. Trata-se de um cone invertido, que avança para o centro da terra ou para as partes mais abaixo do cone. Ao contrário de outras representações imaginárias, no inferno de Dante a temperatura diminui na medida em que se avança. Esse cone invertido é dividido em círculos. Criminosos e pecadores estão nesses círculos, e com eles Dante conversa na medida em que avança. Cada um dos cantos do poema trata de um círculo, no qual há criminosos e pecadores. Essa classificação é incompreensível para a racionalidade contemporânea.

A gravidade do delito aumentava na medida em que se descia o cone. No início, no círculo maior, estavam aqueles que não foram batizados e que não conseguiam reconhecer o próprio erro. Estavam no limbo. Seguem os círculos daqueles que pecaram por incontinência. Primeiramente, um círculo para os que se entregaram à luxúria, depois um círculo para os que se deixaram dominar pela gula, em seguida um círculo para os avaros e para os pródigos (isto é, para quem não gasta nada e para quem gasta muito), depois um círculo para os iracundos e cheios de rancor, e por fim um círculo final para os hereges. Onde ficaria o leitor?

No segundo grupo, os delitos de violência. Um círculo para assaltantes, um círculo para os suicidas, um círculo para os blasfemos e para os sodomitas e um círculo para os usurários. Como se percebe, penalizava-se com mais rigor o usurário (que emprestava dinheiro a juros) do que o assaltante. Elementar. A Igreja condenava a usura. Afirmava que quem empresta dinheiro a juros estaria vendendo o tempo, que pertence a Deus, e que não poderia ser comercializado. É uma das causas da reforma protestante, especialmente em sua vertente calvinista.

No terceiro grupo, um círculo para os rufiões (aqueles que exploram a prostituição). Logo abaixo, um círculo para os aduladores e lisonjeadores. Depois vinham os simoníacos. Esses eram os que vendiam milagres. O nome vem de Simão, o Mago, que segundo a Bíblia tentou comprar o poder de fazer milagres. Seguiam os magos e adivinhos. Depois vinham os traficantes. No próximo círculo os hipócritas. São os fingidos e mentirosos. Depois os ladrões. Logo abaixo os maus conselheiros e os intrigantes. Esse grupo encerra-se com o círculo dos falsários.

Por último, os traidores. São os piores. Primeiramente, estavam os que traem os próprios parentes. O que fazer com quem trai pai, mãe, filho, filha? Depois, os que traem o Estado. Compreensível. Vivia-se um mundo cheio de conflitos políticos, que opunham guelfos (partidários do papa) e gibelinos (partidários do imperador). Na sequência, os que traem os hóspedes. Por fim, os mais odiosos, os que traem os benfeitores, aqueles que nos fizerem o bem, coisas boas, que nos ajudaram, e que, lamentavelmente, são desrespeitados. É a pior forma de traição. Nada mais odioso do que pagar com traição a quem sempre nos deu a mão, há um samba de Beth Carvalho (Vou festejar) que registrou o refrão. Dante reservou para esse grupo o ponto mais apavorante do inferno. Nossa sambista da mangueira concordaria com o poeta italiano.

Essa taxonomia de crimes e pecados foi a base de todo um sistema de atribuição de culpas e castigos que vicejou por um tempo obscuro e incompreensível. Persiste em nossos preconceitos e imediatismos. Essa classificação faz parte inconsciente de nosso sistema penal, de matriz ibérica, especialmente no que se refere às fórmulas da Inquisição, que buscavam uma verdade pré-anunciada. O culpado era escolhido. A demonstração da culpa era um pormenor. Bastavam indícios e convicções.

Dante escreveu sobre sua época, mas também problematizou temas que transcendem o espaço geográfico e o tempo histórico. Foi um agudo examinador da condição humana. Por isso é um clássico. Lê-lo nos mostra o paradoxo e a tensão de nossos limites e de nossas infinitas possibilidades.


[1] Há várias traduções disponíveis. Utilizei para o ensaio a tradução de Italo Eugenio Mauro, São Paulo: Edirora 34, 2019.

[2] MIGLIORINI, Bruno, Storia della lingua italiana, Firenza: Bonpiani, 1995, pp. 167 e ss.

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