Opinião

Os atos de improbidade em espécie: enriquecimento ilícito

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4 de outubro de 2019, 6h32

Já tivemos chance de tecer alguns comentários no que diz respeito aos tipos abertos trazidos pela Lei n. 8.429/1992. A necessidade de que se contemplem ao máximo as infinitas possibilidades de se vulnerar a probidade contrasta com o fato objetivo de que o diploma é sancionador e, como norma punitiva, mereceria interpretação estrita. Seja como for, o regramento atual caminhou pela exigência de dolo e, quando menos, culpa grave (o PL n. 10.887/2018, como já dito, demanda sempre dolo) como forma de, de algum modo, restringir o âmbito de vigência material da lei: em contraponto aos elementos objetivos abertos, buscou-se tornar mais rigoroso o crivo sobre a intenção e a conduta do agente.

Relembrado o ponto, passaremos, a partir deste texto, a cuidar dos diferentes grupos de tipos previstos na lei, a começar por aqueles lançados em seu artigo 9º: “Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° desta lei (…).”

Ao menos no que toca a essa categoria, doutrina e jurisprudência (REsp 1.193.248, julgado em 24.4.2014) já são pela exigência de dolo, mesmo porque é paradoxal imaginar enriquecimento ilícito culposo. O PL n. 10.887/2018, nada obstante, positiva a tendência ao inserir no caput a expressão “mediante a prática de ato doloso”.

Para bem delimitar o rol do artigo 9º, convém dissociá-lo do artigo 10: naquele, não se exige que o locupletamento necessariamente implique desfalque ao erário (o que o distingue do enriquecimento sem causa dos artigos 876 a 886 do Código Civil); neste, a lesão ao erário não exige necessariamente que o infrator haja enriquecido com o ilícito (REsp 1.412.214, DJ 28.3.2016).

A diferenciação é importante, eis que do enriquecimento ilícito, isoladamente considerado, poderá advir a perda de valores e bens, mas não, em regra, o ressarcimento ao erário, somente cabível se identificado prejuízo ao patrimônio público (artigo 21, I). Incisos há, no artigo 9º, que vêm acompanhados da ideia de prejuízo ao erário (III, IV, VI, IX e XII), mas nas demais hipóteses, quando inexistente lesão às finanças públicas, a cominação de reparação importará, isto sim, enriquecimento sem causa, mas por parte da Administração, que será “ressarcida” do que não desfalcada — nesse sentido, REsp 1.238.466, julgado em 6.9.2011. Por analogia, e em reforço à nossa posição, o Superior Tribunal de Justiça, mesmo nas hipóteses de nulidade de contrato administrativo, com má-fé do particular (artigo 59, parágrafo único, da Lei n. 8.666/1993), entende que deve a Administração arcar com os serviços efetivamente prestados (REsp 1.153.337, DJ 24.5.2012).

O ponto pode parecer um tanto trivial, mas lança ao debate o artigo 18-A do PL n. 10.887/2018, que, na hipótese de condenação à perda de bens por força de enriquecimento ilícito, prevê a reversão patrimonial “em favor da pessoa jurídica prejudicada pelo ilícito”. Surge a indagação: esse acréscimo à pessoa jurídica vulnerada tem lugar ainda quando inexistir lesão ao erário? Em caso afirmativo, isso não representaria enriquecimento sem causa por parte da Administração?

Questão interessante reside em saber se há relevância na extensão do tal enriquecimento. Há, aqui, dois pontos de relevo. O primeiro deles é o de que o recebimento de brindes sem valor comercial, distribuídos de forma generalizada e a título de cortesia, propaganda, divulgação ou celebração de datas comemorativas, que não ultrapassem o valor de R$ 100,00, não deverá ser considerado enriquecimento ilícito, por força do Decreto n. 4.081/2002. O segundo é que, naturalmente, o patamar do enriquecimento servirá de parâmetro para a dosimetria das sanções (artigo 12) e, na proposta trazida pelo PL n. 10.887/2018, para a análise sobre possível transação.

Sobre os sujeitos ativos do tipo, embora o caput do artigo 9º mencione “em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° desta lei (…)”, dando a entender que somente agentes públicos poderiam incidir na espécie, é fora de dúvida que particulares, em concurso de pessoas, também são abarcados, como evidencia o próprio artigo 6º, quando fala em “agente público ou terceiro beneficiário” — o PL n. 10.887/2018 ampliou ainda mais o escopo ao mencionar “agente político ou público e as pessoas de que trata o art. 2º, ou quem de qualquer forma tenha concorrido à prática ilícita, perderão os bens ou valores acrescidos ao seu patrimônio”.

No que toca à sanção de perdimento de bens, já mencionada acima, consta ela do artigo 6º e contempla não somente a coisa em si, mas todos os seus frutos e produtos[1], não se confundindo com o confisco do artigo 243 da Constituição. O racional aqui é evitar a máxima de que a ilicitude compensa. Não houvesse a perda, o enriquecimento, a depender de sua extensão, poderia facilmente suplantar as demais sanções, justificando, sob o prisma puramente econômico, a conduta ilícita.

Adentrando os tipos em si, o inciso I fala no recebimento de bem ou qualquer outra vantagem direta ou indireta “de quem tenha interesse, direto ou indireto, que possa ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público.” Ademais, interessante notar que, como espécie do gênero enriquecimento, o inciso em questão, a exemplo dos demais (“perceber”, “adquirir” etc.), fala em “receber”, de modo que a simples solicitação, ainda que possa gerar repercussões na seara ética (item XV, g, do Código de Ética dos Servidores Públicos Civis Federais) ou administrativa (Lei n. 8.112/1990), não implicaria ato improbidade (ao menos não neste tipo, ainda que possa facilmente representar atentado à moralidade a atrair o artigo 10).

Os incisos II e III, de sua vez, trazem práticas lamentavelmente recorrentes: a contrapartida em razão de superfaturamento de bens e serviços fornecidos aos sujeitos passivos da improbidade ou o subfaturamento de bens e serviços por eles fornecidos. Indispensável, ainda, a vantagem para o infrator, do contrário a hipótese será a do artigo 10, V, da lei. Lado outro, quando é o particular o adquirente, o subfaturamento geralmente acontecerá por ocasião da avaliação (artigo 17 da Lei n. 8.666/1993). Já no que tange à facilitação indevida, essa se dará, por exemplo, quando inobservados requisitos como os impostos pelos artigos 23 da Lei n. 9.636/1998 e 24, X, da Lei n. 8.666/1993, além das Leis n. 8.987/1995, 9.074/1995, 9.427/1996, 9.472/1997, 11.079/2004 e 11.107/2005. Igualmente, a vantagem para o agente ímprobo é indispensável, sob pena de sua conduta enquadrar-se, na realidade, no artigo 10, IV.

Indo além, o inciso IV, muito semelhante ao inciso XII, fala na utilização particular, em proveito próprio ou de terceiro, de bens públicos ou do trabalho de agentes a serviço do público, como nos casos de Prefeito Municipal que se valeu de servidores municipais para construção de sua casa particular (REsp 867.146, julgado em 28.10.2008), de ex-Secretário de Estado que, antes de exonerar-se do cargo, imprimiu e distribuiu material para veiculação de propaganda eleitoral relativamente a cargo que disputaria (REsp 722.403, DJ 6.2.2009) ou ainda de agente político que se valeu de procuradores municipais para sua defesa em processo particular que tramitou perante a Justiça Eleitoral (REsp 908.790, DJ 2.2.2010). Aqui, conforme discorremos mais acima, é bastante difícil (se não impossível) falar em enriquecimento ilícito desacompanhado de lesão ao erário. Convém ainda pontuar que o PL n. 10.887/2018, buscando simplificar a redação e contemplar hipóteses quiçá imprevistas, substitui “veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer natureza” por “qualquer bem móvel”.

O recebimento ou a aceitação de promessa de vantagem para tolerância de “jogos de azar, de lenocínio, de narcotráfico, de contrabando, de usura ou de qualquer outra atividade ilícita” é objeto do inciso V.

Dois pontos chamam atenção: primeiro, o rol constante do inciso, que destoa da vedação à conivência pública, em verdade, com qualquer ilicitude; segundo, a tipificação da aceitação de mera promessa poderia muito bem seguir sendo hipótese de improbidade, mas talvez não no rol do artigo 9º, que pressupõe o enriquecimento.

O inciso VI, por seu turno, trata do recebimento de vantagem para prestação de declaração falsa sobre medição, avaliação, qualidade, peso, medida etc. em obras e serviços públicos, tipicamente ocorridas na etapa a que aludem os artigos 7º e 67 da Lei n. 8.666/1993. Uma vez mais, o PL n. 10.887/2018 anda bem ao substituir “medição e avaliação”, expressões não exaustivas das possibilidades que pretenderia o tipo contemplar, por “qualquer dado técnico”, mais ampla.

A evolução patrimonial desproporcional é objeto do inciso VII, invocando como parâmetro, e realçando a importância, da declaração de bens a que faz referência o artigo 13. Curioso notar que o ato de improbidade em questão independe de vínculo entre o incremento patrimonial e a função pública. Em outras palavras, o agente, na condição de servidor, empregado etc., observa salto em seu patrimônio capaz de lançar suspeitas sobre sua atividade pública, não importando se a origem do acréscimo possui ou não relação com o cargo (MS 12.536, DJ 28.5.2008), quase como se se estivesse diante de uma “improbidade de mera conduta”. No âmbito federal, sem prejuízo de outros mecanismos de controle, é atribuição da Controladoria-Geral da União fiscalizar a evolução patrimonial dos servidores (artigo 7º do Decreto 5.483/2005), sendo, ademais, ônus do autor da ação de improbidade demonstrar a desproporcionalidade entre evolução e renda (AREsp 187.235, DJ 16.10.2012). De nossa parte, temos reservas quanto ao inciso, enxergando como saudável a proposta contida no PL n. 10.887/2018, que prevê deva ser assegurado ao agente a demonstração da licitude da origem da evolução. Note-se, porém: a alteração não inverteria o ônus da prova a respeito da demonstração da desproporcionalidade entre evolução e renda, que seguiria sendo do autor; apenas possibilitaria ao agente demonstrar que nada de ilícito houve no incremento e que ser bem sucedido em atividades outras, lícitas, não deslustra sua vocação e contribuição públicas (até como forma de se preservar bons quadros e de se evitar a evasão).

Caminhando para o fim, o inciso XII fala da incorporação patrimonial de bens constantes do acervo público. Esse tipo é, a nosso ver, indissociável da ideia de lesão ao erário. Tanto é assim que o STJ, no passado recente, exarou acórdão estabelecendo como requisitos para o referido ato (i) caracterização de lesão ao erário e do enriquecimento ilícito e (ii) conduta dolosa. A hipótese, releva descrever, tratava da apropriação, pelo agente ímprobo, de valores recolhidos mediante Documento de Arrecadação de Receita Estadual (REsp 1.347.223, DJ 22.5.2013).

Tudo isso considerado, não há como se negar a relevância e a importância de se coibir a prática de atos que importem enriquecimento ilícito e/ou prejuízo ao erário. O que deve se observar, contudo, é que essa repressão deve ser feita com razoabilidade, de modo a se evitar excessos, como hipóteses de aplicação de sanções a situações que não decorram de ilicitudes. Como visto, o atual regramento da Lei n. 8.429/192 acaba por possibilitar alguns desses excessos, o que é, em alguma medida — e, ao nosso ver, acertadamente —, remediado pelo atual projeto da nova lei.


[1] GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 437.

Autores

  • é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB).

  • é advogado do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP, diretor-adjunto da Escola Superior de Advocacia da OAB-DF e secretário-geral da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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