Opinião

Acordo de não persecução penal é inconstitucional

Autor

  • Silvio Gemaque

    é juiz federal criminal em São Paulo doutor em Processo Penal pela Universidade de São Paulo mestre em Direito Processual Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo mestre em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos especializado em Direitos Fundamentais pelo IBCCRIM/Universidade de Coimbra graduado em Letras pela Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo ex-promotor de Justiça no Estado de São Paulo professor universitário e autor de publicações em livros e artigos na área do direito.

24 de novembro de 2019, 6h04

Vários benefícios são defendidos como decorrentes do acordo de não persecução penal criado pela Resolução 181/2017, a saber: maior celeridade processual, a simplicidade na solução dos conflitos, a economia processual com a dedicação do aparelho estatal punitivo para crimes mais graves etc.

No entanto, uma leitura atenta da mencionada resolução, a partir de sua análise sob o prisma filosófico-constitucional, permite concluir por sua absoluta inconstitucionalidade.

Não é de hoje que se verifica, no Brasil, o fenômeno da influência crescente de institutos da common law, basicamente de feição norte-americana, aliás, presente também em outros países da América Latina e da Europa, com a diferença de que neste continente há um cuidado maior de adaptação inexistente naquele.

Assim é que algumas iniciativas, relacionadas a instrumentos de maior eficiência no combate à criminalidade são simplesmente incorporados como solução para o Direito Penal e Processual Penal brasileiros.

A introdução no Direito interno dos mencionados mecanismos exigiria um maior cuidado, na medida em que eventualmente podem conflitar com as características fundamentais de nosso Direito Penal e Processual Penal, de base continental, ou até com características sociológicas de nossa sociedade.

Parece-me, assim, que sobredita resolução que instituiu o acordo de não persecução penal, insere-se nesse contexto apressado de adaptação de nosso Direito ao sistema da common law.

Nos dizeres de Bernd Schunemann, que estudou acordo semelhante no Direito alemão, até usado como argumento pelos defensores do instituto aqui no Brasil, há um “crime coletivo de torção do Direito”[1].

É evidente que o acordo de não persecução penal fere o disposto no artigo 22, I, da Constituição Federal, ao estabelecer a iniciativa privativa da União para legislar sobre Direito Penal e Processual.

Ao outorgar ao órgão de acusação, parte no processo penal, o poder de dirigir o referido acordo, estabelecendo os critérios sobre os quais se baseará e, pasme-se, inclusive os órgãos que receberão valores decorrentes de seu cumprimento, conforme dispõe o artigo 18, IV, da referida resolução, a iniciativa do Conselho Nacional do Ministério Público invade seara de exclusiva iniciativa da União, e, além disso, transforma o órgão acusador em verdadeira autoridade judicial, ao arrepio da lei e da Constituição Federal.

Não é preciso dizer que não compete ao Conselho Nacional do Ministério Público disciplinar o processo penal, senão a fiscalização administrativa e correcional dos diferentes Ministérios Públicos, e quando muito a regulamentação de procedimentos internos dos referidos órgãos.

Revela ainda a ousadia da medida a previsão de aplicação do tal acordo a crimes cuja pena mínima cominada seja inferior a quatro anos (artigo 18, caput). Esse patamar de até quatro anos alcança a maioria dos crimes.

Outra curiosa previsão está no parágrafo 6º do referido artigo 18, quando, a pretexto de garantir um “controle” da autoridade judiciária sobre o acordo, dispõe sobre a remessa dos autos ao procurador-geral para apreciar a alegada inadequação ou insuficientes as condições propostas. Ora, como se trata de um ato sem amparo legal, não podendo o artigo 28 do Código de Processo Penal ser estendido a situações não previstas em lei, e seria desarrazoado e absolutamente inconstitucional imaginar que pudesse o Ministério Público decidir definitivamente sobre matérias afetas à lei ordinária, através de procedimento a latere, parece-me que a decisão judicial mais adequada seja simplesmente a de não dar curso à matéria, não conhecendo da medida, sujeitando-se a decisão respectiva a eventual mandado de segurança, se presentes os requisitos, assegurando-se, portanto, a análise definitiva pelo tribunal competente.

Não há país no mundo em que a iniciativa mencionada tenha sido implantada de forma bem sucedida; mesmo na Itália e na Espanha, por exemplo, que preveem o acordo através de lei, há ressalvas, e mesmo na Alemanha foi criticado por doutrina mais abalizada[2]:

Nesse caso, poder-se-ia entender a intervenção do judiciário na audiência como um puro procedimento de controle jurisdicional (Rechtsscutzfahren), ao qual o afetado pode renunciar, se ele também aceitar que já a investigação preliminar possibilitou a decisão acertada. Pressuposto inadiável seria, contudo, um fortalecimento dos direitos do indiciado na investigação preliminar, para instalar já aqui as garantias que, tradicionalmente, apenas entram em cena na audiência de instrução e julgamento. Eu chamo esse modelo, para o qual desenvolvi já uma série de propostas, de ‘ investigação preliminar contraditória’ (kontradiktorische Ermittlungsverfahren). Apenas se presentes esses pressupostos pode-se, a meu ver, legitimar um processo penal que trabalha com o acordo.

Assim, as alusões que alguns defensores da medida[3] fazem à experiência alemã, talvez por que desejem simplesmente replicar as experiências externas, em um mimetismo evitável, fenômeno a que me referi acima, desconhecem que na Alemanha a experiência foi objeto de fortes ressalvas, aceitando-se ao acordo, desde que previsto em lei e melhor dimensionados os direitos de participação do acusado/investigado já no primeiro momento, isto é, na fase investigativa.

O maior problema, a meu ver, nesse tipo de acordo de não persecução é o fato de que o acusado ou indiciado se sente, muitas vezes, impelido a aceitar um acordo desfavorável[4], por isso que, uma vez previsto em lei, seria imprescindível a participação de advogado:

Se a consequência jurídica consistisse em que o perdedor, ou seja, o advogado, tivesse que arcar com as custas do processo ou fosse sancionado com um eventual rebaixamento em um possível ranking de qualificação dos advogados, não haveria nada a objetar. Todavia, trata-se de imposição de pena não sobre um dos adversários dessa batalha, mas sim sobre o acusado. O fato de que seu advogado fora o pior entre os competidores não pode, indubitavelmente, constituir o fundamento para uma legitimação séria de sua punição[5].

É justamente essa a ideia por trás do chamado plea bargaining, isto é, uma característica de um sistema que vê os atores processuais como dois competidores, também objeto de críticas até nos EUA por sua tendência a produzir injustiças crescentes, que não se amolda ao nosso sistema processual de base nitidamente continental.

De qualquer maneira, face à avalanche de processos, não somos contrários a soluções consensuais no âmbito penal, desde que sujeitas a lei, não me parecendo uma resolução administrativa, ainda mais de uns dos atores processuais, o meio mais adequado para tratar da matéria, mesmo que com as possíveis melhores intenções.

A professora Ada Pellegrini Grinover, já em 1995, vislumbrava as soluções consensuais, desde que submetidas ao regramento legal:

As técnicas de disponibilidade sobre a pena e de disponibilidade sobre o procedimento, valorizando a autonomia das vontades e o consenso entre acusação, defesa e vítima, quando rigorosamente sujeitas à lei e ao controle do juiz, parecem indicar o melhor caminho rumo a um processo mais eficiente, mas sempre fiel às garantias constitucionais das partes e do próprio processo, objetivamente considerado[6].

Por fim, vale dizer que foram propostas duas ações diretas de inconstitucionalidade contra a Resolução 181/2017, uma de iniciativa do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, a ADI 5.793, e outra oriunda da Associação dos Magistrados Brasileiros, a ADI 5.790, pendentes ainda de decisão.

[1] SCHUNEMANN, Bernd; GRECO Luís (coordenador). Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Marcial Pons, SP, 2013, pág. 309.

[2] SCHUNEMANN, Bernd; GRECO Luís (coordenador). Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Marcial Pons, SP, 2013, págs. 321 e 322.

[3] CABRAL, Rodrigo. O acordo de não-persecução penal criado pelo CNMP. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2017-set-18/rodrigo-cabral-acordo-não-persecução-penal-criado-cnmp.html> Acesso em 10 de novembro de 2019.

[4] GEMAQUE, Silvio. A possibilidade de devolução do termo circunstanciado para a realização de diligências complementares. Revista da Ajufe, vol. I, pág. 01-08, 2000: Nesse texto, em comentários à Lei 9.099/95, já apresentávamos a preocupação com um melhor controle sobre o acordo, permitindo-se, se necessária, uma melhor investigação antes de formulada a proposta de transação.

[5] SCHUNEMANN, Bernd; GRECO Luís (coordenador). Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Marcial Pons, SP, 2013, pág. 250.

[6] GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo em evolução. Forense Universitária, 2ª. Edição, SP, 1998, pág. 285.

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