Contas à Vista

Tudo muda na Constituição para quase nada mudar federativa e fiscalmente

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19 de novembro de 2019, 8h00

Diante do diagnóstico de crise fiscal e federativa, uma agenda ousada de reformas constitucionais foi apresentada ao Congresso no dia 05/11 com o nome de “Plano Mais Brasil”[1]. Nuclearmente, as Propostas de Emenda à Constituição nº 186, 187 e 188/2019 trazem consigo a pretensão de reequilíbrio federativo nas contas públicas.

Spacca
O lema “Mais Brasil” contrasta com o quase total descumprimento do parágrafo único do artigo 23 da nossa Constituição: “Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.

Se quiséssemos efetivamente equilíbrio federativo, estaríamos, desde 1988, a cumprir a Constituição quanto à edição das leis complementares reclamadas pelo artigo 23 para assegurar densidade e concretude às competências comuns ali inscritas. Não houve a edição coordenada dessas leis, tampouco há registro histórico de que tenha sido pautado seriamente o debate sobre a cooperação necessária ao “equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”.

A disputa fratricida na federação tem sido regra, do que dão exemplos a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 25 (compensação dos efeitos da Lei Kandir prevista no artigo 91 do ADCT) e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 523 (efeitos da DRU sobre o sistema de repartição federativa de receitas).

Cumprir, republicanamente, a Constituição é mais difícil do que redesenhá-la tão veloz e ferozmente como tem sido feito no Brasil. Mas, como bem nos lembrava Tomasi di Lampedusa, em “Il Gattopardo”, “para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”.

Obviamente, não haverá equilíbrio federativo real com as aludidas PEC’s, se se acelerar o paulatino, mas contínuo e deliberado processo de desconstrução da cooperação federativa no custeio dos serviços públicos essenciais e na consecução dos direitos sociais. A esse respeito, o rol de revogações do artigo 8º da PEC 188/2019 talvez seja a expressão mais clara e contundente da guerra fiscal em que nos encontramos: a tendência ali é de consolidar a ausência da União já sentida em várias áreas e situações concretas.

Ora, revogar as hipóteses de intervenção federativa em prol do saneamento das contas públicas dos entes subnacionais é sustentar – direta ou indiretamente — que Estados e Municípios possam vir a deixar de prestar serviços públicos essenciais aos cidadãos por “falência fiscal”. As sucessivas moratórias constitucionalizadas[2] ao regime jurídico dos precatórios atestam que essa não é uma resposta válida, tampouco suficiente à altura do problema. Deixar descontinuar serviços públicos, com risco de dano a direitos fundamentais, não afastará o dever de ressarcimento a que se refere o artigo 37, §6º da Constituição, porque a União não pode se furtar à sua responsabilidade solidária em áreas sensíveis, como as ações e serviços públicos de saúde e a educação básica obrigatória.

Vale lembrar, por oportuno, que as ausências e insuficiências do custeio federal em direitos sociais têm sido reiteradamente impugnadas, a exemplo da ADPF 45 e da ADI 5595 na saúde, bem como das Ações Cíveis Originárias n.º 648, 660, 669 e 700 (julgadas conjuntamente procedentes pelo Supremo Tribunal Federal) e dos Acórdãos n.º 618/2014, 906/2015, 1897/2017, 717/2019 e 1656/2019 (proferidos pelo Plenário do Tribunal de Contas da União), na educação. Mas a resposta na PEC do Pacto Federativo parece ser diametralmente oposta, já que a União pretende revogar seu piso em saúde e o fundo social do pré-sal (respectivamente incisos X, XI, XII e XIII do artigo 8º da PEC 188/2019), assim como pretende se ausentar do custeio de programas suplementares de atendimento ao educando (material didático escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde), por supor bastar a transferência da contribuição social do salário-educação.

Por falar em redistribuição de recursos e arranjo estrutural de políticas públicas na federação, é deveras interessante destacar o quão incoerente e contraditório é o discurso em face da prática sobre “Mais Brasil, menos Brasília”. Aqui cabe o registro da manifesta rejeição[3] do Executivo federal à proposta de renovação do Fundeb, tal como suscitada na PEC 15/2015; bem como o registro da sua omissão inconstitucional quanto à falta de regulamentação do custo aluno-qualidade inicial e do custo aluno-qualidade, conceitos reclamados pelas estratégias 7.21 e 20.6 a 20.8 do Plano Nacional de Educação.

O contexto acima parece ser o de fuga às responsabilidades federativas no custeio juridicamente estável e fiscalmente progressivo dos direitos fundamentais. A tal quadro soma-se a nova dicção do artigo 167, IV que retira sorrateiramente o lastro fiscal[4] da vinculação proporcional da arrecadação de impostos ao custeio mínimo das ações e serviços públicos de saúde (artigo 198) e da manutenção e desenvolvimento do ensino (artigo 212), além de admitir — fraudulentamente[5] — que os pisos sejam reciprocamente dedutíveis um no cômputo do outro.

O pacto federativo não funciona bem em nosso país, porque há fortes incentivos racionais para que os entes políticos se lancem uns contra os outros. Assim, o curto prazo eleitoral dos mandatários políticos tende a prejudicar o exame intertemporal e solidário das responsabilidades comuns da federação. Mas, para fazer face ao patrimonialismo fiscal e ao curto prazo eleitoral, deveríamos debater o aperfeiçoamento e o fortalecimento do planejamento orçamentário, por meio de pisos em saúde e educação qualitativamente vinculados a metas e estratégias dos seus respectivos planos setoriais. Ao invés disso, contudo, a PEC 188/2019 propõe simplesmente a revogação do plano plurianual e a unificação dos pisos em saúde e educação, como se não houvesse uma franca tendência ao jogo de soma zero entre ambas as políticas públicas nucleares.

Por outro lado, temos de reconhecer, com honestidade intelectual, que há importantes medidas saneadoras trazidas no pacote de PEC’s. São exemplos de medidas necessárias e que merecem nosso integral apoio: a vedação de pagamento retroativo, transitório ou meramente administrativo de parcelas remuneratórias ou indenizatórias a servidores públicos (artigo 37, XXIII e artigo 39, §4º); a busca pela rastreabilidade, comparabilidade e publicidade de dados fiscais (artigo 163-A); a limitação aos gastos tributários ao patamar máximo de 2% do PIB (artigo 167, XIV); a reavaliação quadrienal dos incentivos tributários, creditícios e financeiros (artigo 167, §10); o regime mais realista e responsável de execução dos duodécimos que ampara a autonomia financeira dos poderes (artigo 168, §§1º e 2º); o contingenciamento isonomicamente extensível aos demais poderes (artigo 168-A) e a vedação do manejo dos recursos ou patrimônio de fundos previdenciários ou depósitos judiciais para pagamento de despesas de qualquer natureza do ente político (artigo 245-A).

Tecnicamente, os artigoss 167-A e 167-B repetem — em maior ou menor grau — comandos já vigentes desde a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Emenda 95/2016, com destaque para a constitucionalização da possibilidade de redução proporcional do salário e da carga horária dos servidores em até 25%. Talvez aqui esteja o ponto mais sensível de pretensão de ajuste fiscal no curto prazo dos gestores. A consecução de tal medida reclama, contudo, motivação circunstanciada, diante do risco de corte linear e abusivo que imponha solução de continuidade a serviços essenciais.

Muda-se tudo isso em nome dos propósitos de reformar o Estado brasileiro e buscar o “equilíbrio fiscal intergeracional” (parágrafo único do artigo 6º), para, em última instância, destinar o excesso de arrecadação e o superávit financeiro à amortização da dívida pública (artigo 3º, §1º, II da PEC 186/2019, artigo 5º da PEC 187/2019 e artigo 7º da PEC 188/2019). Porém, até mesmo essa agenda revela-se potencialmente falaciosa do ponto de vista fiscal, se a amortização da dívida vier acompanhada concomitantemente da sua pura e simples substituição por operações compromissadas.

Como bem suscitado por Josué Pellegrini[6], os superávits primários produzidos pela União no período de 2006 a 2014 foram usados para formalmente amortizar a dívida federal, mas concomitantemente tiveram de ser esterilizados — no âmbito da política monetária — por meio de operações compromissadas em condições de prazo de vencimento e taxa de juros, na maioria das vezes, piores do que os próprios títulos do Tesouro resgatados. O resultado é que a dívida pública aumentou, mesmo quando tivemos superávits consideráveis visando à sua redução em período relativamente recente. As variáveis em jogo apontam para a necessidade de equacionamento fiscal, de forma coordenada com as dimensões cambial, creditícia e monetária.

Em meio a tantas propostas de mudanças, fato é que o conceito de equilíbrio está em disputa até mesmo contra a identidade protetiva do texto permanente da Constituição de 1988. É claro que há de haver equilíbrio fiscal como meio de realização dos direitos fundamentais, jamais como impeditivo absoluto ou cláusula de suspensão da sua eficácia imediata, prevista no artigo 5º, §1º. É com esse filtro qualitativo que devemos ler e interpretar o alcance dos seguintes dispositivos que a PEC 189/2019 pretende acrescentar no artigo 6º e no artigo 167:

Artigo 6º […] Parágrafo único. Será observado, na promoção dos direitos sociais, o direito ao equilíbrio fiscal intergeracional.

Artigo 167 [….] § 8° Lei ou ato que implique despesa somente produzirá efeitos enquanto houver a respectiva e suficiente dotação orçamentária, não gerando obrigação de pagamento futuro por parte do erário.

§ 9° Decisões judiciais que impliquem despesa em decorrência de obrigação de fazer, não fazer ou entregar coisa somente serão cumpridas quando houver a respectiva e suficiente dotação orçamentária.

Interessante notar que o comando do artigo 165, §10 da Constituição, trazido pela Emenda 100/2019, dialoga com o dever de implementação progressiva dos direitos econômicos, sociais e culturais até o máximo dos recursos estatais disponíveis. Tal dever é exigido em nosso ordenamento por força de tratados dos quais o Brasil é signatário:

Artigo 165, § 10 da Constituição de 1988:

A administração tem o dever de executar as programações orçamentárias, adotando os meios e as medidas necessários, com o propósito de garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade.”

Artigo 2º, item 1 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (promulgado pelo Decreto 591/1992),

Cada um dos Estados Partes no presente Pacto compromete-se a agir, quer com o seu próprio esforço, quer com a assistência e cooperação internacionais, especialmente nos planos econômico e técnico, no máximo dos seus recursos disponíveis, de modo a assegurar progressivamente o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto por todos os meios apropriados, incluindo em particular por meio de medidas legislativas

Artigo 1º do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, também conhecido como Protocolo de São Salvador (promulgado pelo Decreto 3.321/1999),

os Estados Partes neste Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos comprometem‑se a adotar as medidas necessárias, tanto de ordem interna como por meio da cooperação entre os Estados, especialmente econômica e técnica, até o máximo dos recursos disponíveis e levando em conta seu grau de desenvolvimento, a fim de conseguir, progressivamente e de acordo com a legislação interna, a plena efetividade dos direitos reconhecidos neste Protocolo”. (grifos nossos)

Falar em meios e medidas necessários para garantir a efetiva entrega de bens e serviços à população significa buscar alocar o máximo de recursos disponíveis para a consecução progressiva de direitos fundamentais. Tal desiderato é o núcleo de identidade do federalismo fiscal brasileiro inscrito em nossa Constituição, à luz do citado parágrafo único do artigo 23.

Reescreve nosso ordenamento quem elege — com primazia absoluta — a formação de excedente financeiro para abatimento da dívida pública como outro núcleo de identidade paralelo da CF/1988. Ainda mais porque tal intuito tem sido pretendido, sem balizar claramente os próprios limites e ônus argumentativos das escolhas cambiais e monetárias que também nos trouxeram ao agravamento da dívida (como, por exemplo, saldo desarrazoado de reservas internacionais, estoque desproporcional de operações compromissadas, taxa de juros que entrega inflação despregada do centro da meta inscrita no sistema de metas de inflação por três anos consecutivos etc).

É preciso que saiamos em defesa do pacto federativo, assim como que busquemos equilíbrio fiscal em prol dos direitos fundamentais. Esse é o eixo em torno do qual todos os ditames constitucionais devem girar, até porque não cabe esperar sustentabilidade de longo prazo dos orçamentos públicos e da própria dívida pública, se a tal esforço de consolidação fiscal corresponder passivo correspondente de operações compromissadas e de demandas judiciais de ressarcimento por lesões omissivas a direitos fundamentais.

Não dá para esperar o bolo crescer para depois dividi-lo, porque, no meio do caminho, cidadãos nascem, crescem ignorantes, adoecem e morrem sem dignidade, enquanto a dívida pública não necessariamente diminui e tende a ser capturada como meio tergiversador de reprodução da nossa intergeracional desigualdade.

 


[6] Em estudo especial da Instituição Fiscal Independente, disponível em https://www12.senado.leg.br/ifi/pdf/estudo-especial-no-03-as-operacoes-compromissadas-do-banco-central-out-2017, publicado em outubro de 2017 e denominado “As operações compromissadas do Banco Central”

Autores

  • é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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