Opinião

Exigência de dolo nas qualificadoras do crime de homicídio doloso

Autor

  • Carlos Alberto Garcete

    é professor pós-doutor em Ciências Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa doutor em Direito (área de concentração em Direito Processual Penal) pela PUC-SP mestre em Direito Constitucional e Teoria Geral do Estado pela PUC-RJ e juiz de Direito (1ª Vara do Tribunal do Júri de Campo Grande-MS).

18 de novembro de 2019, 7h02

Em tempos atuais, resta pacífico o entendimento de que o do direito penal deve encontrar seu fundamento de validade no texto constitucional, a partir do qual se deve proceder a qualquer interpretação da norma infraconstitucional, ou seja, o método interpretativo do sistema se faz em espectro vertical descendente.

O direito penal não pode receber interpretação isolada, estanque, dissociado do arcabouço constitucional a compor o ordenamento jurídico do país, sob pena de subversão de toda organização político-jurídica regente do princípio republicano.

Sob a égide do Estado Democrático — e que tem seu sustentáculo nuclear nos direitos fundamentais —, a atividade de criminalizar condutas, seja a primária (feita pelo legislador), seja a secundária (pelo julgador no caso concreto), deve recair sobre condutas efetivamente lesivas a um bem jurídico tutelado pelo Estado, conforme, de longa data, preconizava Aníbal Bruno[1].

O direito penal contemporâneo passa a ser constitucionalizado, ou seja, inspirado na Constituição da República, de tal sorte a reafirmar, a cada dia, seus valores fundamentais. Para Luiz Flávio Gomes, em um Estado Constitucional, e que tem nos direitos fundamentais seu eixo principal, não resta dúvida de que só resulta legitima a tarefa de criminalização primária e secundária quando recai sobre condutas concretamente ofensivas a um bem jurídico, e mesmo assim nem todos os ataques, senão unicamente os mais graves (fragmentariedade) é que podem ser incriminados ou punidos[2].

É dessa forma que a atividade de dizer o direito (ius dicere = jurisdição), na seara de julgamentos populares, se dá, isto é, por meio da revisitação de princípios inerentes ao direito penal, nomeadamente aqueles aplicáveis aos crimes dolosos contra a vida, Vale lembrar que a Constituição de 1988 cometeu ao tribunal do júri a competência para julgar os crimes dolosos contra a vida.

Dos crimes comissivos dolosos
O objeto material do crime diz respeito à pessoa ou à coisa sobre a qual recai a conduta delituosa perpetrada pelo agente. No caso do crime de homicídio, o objeto material é o homem.

Acrescente-se que o resultado jurídico ou normativo é a lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado pela norma incriminadora penal. No crime de homicídio, é a vida. O resultado físico ou naturalístico é aquele que ocorre no mundo físico (crimes materiais e formais), conquanto seja possível existir delito sem o resultado naturalístico (crimes de mera conduta e de mera inatividade). No homicídio, o resultado naturalístico é a morte.

O Código Penal brasileiro define crime doloso como sendo aquele em que o agente quer o resultado morte ou assume o risco de produzi-lo (artigo 18, I). Trata-se do dolo direto e do dolo indireto. Na hipótese de dolo direto, o agente age com consciência e vontade de praticar a conduta descrita na norma incriminadora penal. No dolo eventual, o agente tem consciência de que sua conduta pode ocasionar o resultado proibido. Pode agir ou deixar de agir. Opta, no entanto, por determinada conduta, com admissão da possibilidade da produção daquele resultado descrito no preceito primário da norma penal.

Qual a diferença do dolo na Teoria Causalista e na Teoria Finalista?
No Causalismo, o dolo integra a culpabilidade. Exige não só que o agente tenha conhecimento do resultado que visa atingir, mas, também, da ilicitude da conduta. Por isso, diz-se que o dolo é normativo.

No Finalismo, para Welzel, o dolo é considerado dentro dos elementos do tipo penal, e não na culpabilidade. Em outras palavras: o dolo é natural, sendo prescindível que o agente tenha conhecimento da ilicitude.

De acordo com Sheila Bierrenbach[3], o dolo se coloca da seguinte forma nas duas teorias acima mencionadas: Teoria causalista: Culpabilidade = Imputabilidade + dolo normativo (com consciência de ilicitude) + exibilidade. Teoria finalista: Tipo penal = tipo objetivo + tipo subjetivo (dolo natural, sem consciência de ilicitude).

Consoante opinião dominante da doutrina, o Código Penal vigente adotou a Teoria Finalista.

Ainda sobre o dolo, subsistem, a propósito, três teorias. A primeira, denominada Teoria da Vontade, a preconizar que o dolo consiste na vontade de produzir o resultado descrito na norma penal. A segunda, Teoria da Representação, a considerar que o dolo satisfaz-se com a simples previsão do resultado, de sorte que, para esta, não haveria diferença entre dolo eventual e culpa consciente. A terceira é chamada de Teoria do Consentimento, pela qual basta que o agente assuma o risco de produzir o resultado.

Tendo em vista que nosso Código Penal preceitua que há crime doloso quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo (artigo 18, I), resta evidente que foram adotadas as Teorias da Vontade e do Consentimento.

Dolo nas qualificadoras
O homicídio doloso será considerado qualificado quando perpetrado mediante circunstâncias legais que compõem a norma incriminadora penal, de sorte a alterar a faixa de apenação legal. As qualificadoras do crime de homicídio doloso estão previstas no § 2º do artigo 121 do Código Penal brasileiro. Na legislação penal brasileira, o crime de homicídio doloso simples tem pena em abstrato de 6 a 20 anos de reclusão, enquanto que o crime de homicídio doloso qualificado tem pena em abstrato de 12 a 30 anos.

As qualificadoras do crime de homicídio doloso — por se tratarem de circunstâncias que compõem legalmente o tipo penal — reclamam a existência de intencionalidade para sua caracterização. É pela maior reprovação na conduta intencional do agente, ao matar alguém — considerada pelo legislador, nas hipóteses de qualificadoras —, que a pena-base é dobrada de 6 para 12 anos.

É o caso da qualificadora do recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido. Há de perquirir-se, em caso concreto, se o agente teve a intenção direta de tolher a defesa da vítima. Em linha teorética, não é porque o agente atua "repentinamente", ou porque a vítima "encontra-se desatenta", que a qualificadora da surpresa automaticamente se caracteriza.

A análise da qualificadora, assim, deve ser feita, não pelo "comportamento da vítima", mas, pelo "elemento volitivo" que anima o acusado no momento da consumação do homicídio doloso. É esse elemento subjetivo do agente que faz a reprimenda, em tese, ser mais elevada do que a conduta do homicídio simples.

De acordo com Fragoso[4]:

Os meios e modos de execução que qualificam o delito referem-se à exacerbação do ilícito, integrando a figura típica. Assim sendo, são elementos que devem estar cobertos pelo dolo (bastando o dolo eventual), sendo, pois, excluídos pelo erro. […] Quanto aos modos de execução, o agente deve ter consciência de que age à traição, de emboscada ou com surpresa para a vítima.

Resta evidente, pois, a imperiosa necessidade de demonstração de dolo no caso de qualificadoras do crime de homicídio doloso.

Aspectos processuais referentes às qualificadoras do crime de homicídio doloso
A denúncia oferecida pelo Ministério Público deve conter a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias (CPP, artigo 41). Por se tratar de peça inaugural apta a deflagrar a ação penal, a narrativa fático-jurídica deve descrever em que consiste o dolo da qualificadora atribuída ao acusado, não sendo suficientes referências genéricas aos termos do parágrafo segundo do artigo 121 do Código Penal (motivo fútil, torpe etc.), sob pena de violação ao devido processo legal e à ampla defesa e contraditório.

Em se tratando de denúncia com alusão genérica à qualificadora imputada ao acusado, impõe-se que o magistrado a arrede em caso de pronúncia, porque inepta, haja vista inexistir, em casos tais, narrativa fática a habilitar a exposição da qualificadora em plenário do júri, onde, necessariamente, o juiz-presidente deve redigir o quesito correspondente em termos fáticos, compreensíveis aos jurados. Tenha-se presente que, de acordo com o artigo 482, caput, do CPP, o Conselho de Sentença será questionado sobre matéria de fato. Caso a qualificadora inepta não seja repelida na pronúncia, a problemática é transposta ao plenário: isso porque tal falha levará o juiz-presidente a ter de descrever a qualificadora – ao elaborar o quesito correspondente – em termos fáticos criados pelo próprio órgão judiciário. Ocorre que, em linha principiológica, se a denúncia não descreveu, de maneira pormenorizada, a narrativa fática da qualificadora, será defeso ao juiz criar sponte própria uma dinâmica a ser inserida no quesito. Se o fizer, estar-se-á a quebrar a equidistância que deve manter das partes (princípio acusatório) e seu dever de velar pela isonomia das partes (princípio da paridade de armas). E mais: é possível que redija quesito de qualificadora com dinâmica fática que sequer foi expectada pela Defesa do acusado e sobre a qual não teve oportunidade de defender-se.

Por fim, o juiz não deve formular quesito de qualificadora em termos genéricos. Exemplos: O acusado agiu por motivo fútil? O acusado agiu por motivo torpe? O acusado agiu à traição? O acusado agiu mediante recurso que dificultou a defesa da vítima?

O conselho de sentença deve ser questionado sobre matéria de fato (CPP, artigo 482, caput). Os quesitos devem ser redigidos em proposições afirmativas, simples e distintas, de modo que cada um dos jurados possa responder com suficiente clareza e necessária precisão (parágrafo único do artigo 482). Nesse sentido, deve ser indagado sobre o estado anímico do acusado, inclusive no tocante às qualificadoras. Como estas se classificam como de motivos, de meios, de modo e de fim, a vontade do agente de praticá-las deve estar clara na quesitação. Assim: O acusado agiu por motivo fútil, visto que …? O acusado agiu por motivo torpe, tendo em vista que …? O acusado agiu com a intenção de dificultar a defesa da vítima, haja vista que …?

Conclusão
i) As qualificadoras do crime de homicídio doloso — por se tratarem de circunstâncias que compõem legalmente o tipo penal — reclamam a existência de intencionalidade para sua caracterização.

ii) A denúncia oferecida pelo Ministério Público deve conter a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias (CPP, artigo 41). Por se tratar de peça inaugural apta a deflagrar a ação penal, a narrativa fático-jurídica deve descrever em que consiste o dolo da qualificadora imputada ao acusado. Afigura-se violador do devido processo legal a descrição genérica, obscura, ou que se circunscreva a repetir os termos da lei penal (motivo fútil, motivo torpe etc.).

iii) Impõe-se ao juiz afastar, ainda na fase de pronúncia, qualificadoras descritas na denúncia em forma genérica, porque ineptas, sob pena de explícita violação dos princípios do devido processo legal e da ampla defesa e contraditório.

iv) O juiz não deve formular quesito de qualificadora em termos genéricos, sob pena de violar diretamente o artigo 482, caput, do CPP. Os quesitos devem ser redigidos em proposições afirmativas, simples e distintas, de modo que cada um dos jurados possa responder com suficiente clareza e necessária precisão.


Referências bibliográficas
-BIERRENBACH, Sheila. Teoria do Crime. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2009.
-BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 16. ed. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2011.
-BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Parte Geral – Tomo 1. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
-DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
-FRAGOSO, Heleno Cláudio. Objeto do crime. Disponível em http://www.fragoso.com.br/eng/arq_pdf/heleno_artigos/arquivo60.pdf. Acesso em 5-6-2014.
-GOMES, Luiz Flávio. Coordenador. GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García-Pablos de. Direito Penal. v. 2. Parte Geral. São Paulo: RT, 2007.
-JAKOBS, Günter. Tratado de direito penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.
-LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
-WELZEL, Hans. Derecho Penal alemán. 3. ed. Castellana da 12. ed. Alemán. Santiago: Jurídica do Chile, 1987. p. 11.

[1] BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Parte Geral – Tomo 1. 5. Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 5.

[2] GOMES, Luiz Flávio. Coordenador. GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García-Pablos de. Direito Penal. v. 2. Parte Geral. São Paulo: RT, 2007. p. 192.

[3] BIERRENBACH, Sheila. Teoria do Crime. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2009. p. 99.

[4] FRAGOSO, Heleno Claudio. Jurisprudência Criminal. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982. Verbete 287. p. 342-5.

Autores

  • é juiz do 1º Tribunal do Júri de Campo Grande (MS), professor de Direito Processual Penal e Criminologia, pós-doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, doutor em Direito Processual Penal pela PUC-SP e mestre em Direito Constitucional e Teoria Geral do Estado pela PUC-Rio.

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