Paradoxo da Corte

Descumprimento do dever de revelação e nulidade da sentença arbitral

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

12 de novembro de 2019, 8h00

Considerando o caráter preponderantemente consensual da arbitragem, verifica-se que, durante o procedimento de escolha dos árbitros, têm estes o dever de declinar absoluta isenção ao assumir o encargo para atuar de forma independente e imparcial. É esse o momento no qual os árbitros indicados têm também o dever de revelar qualquer relação, mínima que seja, com uma das partes. A inobservância do dever de revelação já evidencia inaptidão para o exercício legítimo da função de árbitro.

A rigor, é exatamente o que ocorre na esfera do processo estatal, no qual o juiz deve, de logo, afastar-se de um determinado caso se tiver alguma espécie de relacionamento que possa comprometer a sua imparcialidade e independência.

Com efeito, dispõe o artigo 146 do Código de Processo Civil que o próprio juiz pode reconhecer a sua suspeição, remetendo os autos ao seu substituto legal. Dúvida não há de que o juiz que descumpre esse mister afasta-se da postura de impessoalidade, isto é, do dever de revelar aspecto crucial que caracteriza a pedra angular da imparcialidade.

O artigo 14 da Lei de Arbitragem, nesse particular, faz expressa remissão ao Código de Processo Civil, aplicando aos árbitros os mesmos motivos de impedimento e de suspeição, previstos respectivamente nos artigos 144 e 145.

Assim, nos domínios da arbitragem, exige-se a imparcialidade e a independência dos árbitros como pressuposto de validade do respectivo processo.

Daí, porque o parágrafo 1º do aludido artigo 14 dispõe que: “As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência”.

Esse conhecido critério da “dúvida justificada”, adotado pelo texto legal pátrio, segundo ensina Gary Born, deve ser analisado de forma objetiva, ou seja, “qualquer objeção em relação à imparcialidade ou independência do juiz deve fundamentar-se em provas suficientes a afastar o árbitro” (International Commercial Arbitration, vol. 1, Kluwer Law International, 2009, pág. 1.477-1.478).

O artigo 148, inciso II, do vigente Código de Processo Civil, estende os motivos de impedimento e de suspeição aos auxiliares de justiça, incluindo-se aí, por certo, o perito nomeado pelo juiz.

Ora, isso significa que o perito de confiança indicado pelo tribunal arbitral está igualmente adstrito ao dever de revelação, impondo-se-lhe, no momento de assinar o termo de independência, a obrigação de declinar todas as circunstâncias que possam, de uma forma ou de outra, evidenciar relacionamento próximo com uma das partes.

Eventual omissão injustificada do perito é fatal a comprometer a isenção que se espera de seu trabalho técnico.

O dever de revelação, exigido pelo artigo 14 da Lei n. 9.307/96, consiste na consagração material da obrigação moral de independência do árbitro e, igualmente – permito-me acrescentar – do perito. E, assim, por esta importante razão, presta-se como parâmetro de avaliação da independência e da imparcialidade do árbitro e do perito.

Espera-se que a função a ser desempenhada pelo perito – exorta Sundra Rajoo – seja conduzida pela imparcialidade, para instruir os árbitros nos limites de sua especialidade (Law, Practice and Procedure of Arbitration, 2ª ed., Malaysia, LexisNexis, 2017, pág. 459). Desobedecido o dever de revelação pelo perito, prejudicado estará o valor intrínseco do trabalho técnico por ele apresentado.

Há fatos – salienta Paulo Henrique dos Santos Lucon – que podem parecer irrelevantes para o caso concreto, causando certo desconforto ético ao perito, mas que necessariamente devem ser revelados, para que sua atuação não caia em total descrédito (Imparcialidade do árbitro e do juiz na teoria geral do processo (obra coletiva), São Paulo, Malheiros, 2013, pág. 672).

Desse modo, “o profissional nomeado para colaborar com a justiça deve mostrar-se tão isento em relação aos litigantes como o próprio julgador, sob pena de comprometer gravemente o devido processo legal” (cf. Carlos Alberto Carmona, parecer inédito).

E isso, porque o dever de revelação está intrinsecamente ligado ao dever de transparência, de modo que se houver alguma comprovação de relação entre o perito e uma das partes, que possa, ainda que em tese, afetar a independência de sua atuação, a arbitragem estará objetivamente viciada, salvo se aquele auxiliar da justiça for incontinenti afastado do respectivo processo arbitral.

Conclui-se, pois, que o perito de confiança que se omite em revelar circunstância que deveria ter informado às partes e aos julgadores já suscita inexorável suspeita sobre a sua isenção, equidistância e autonomia funcional, pois a inobservância do dever de revelação por si já é motivo mais do que suficiente para levantar “dúvida razoável” sobre o comportamento independente do perito.

Resulta, pois, que a desobediência ao dever de revelação implica inarredável nulidade da sentença arbitral!

A demonstrar que o atual posicionamento de nossas Cortes de Justiça é sensível a essa questão, invoco, e. g., precedente da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial n. 1.433.098-GO, da relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, no qual restou acolhida a exceção de suspeição do perito à vista de seu manifesto interesse no resultado do processo em que fora nomeado, in verbis: “(…) estou convencido de que, ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, a exceção apresentada revela a existência de fato concreto e objetivo a evidenciar a parcialidade ou interesse do perito no julgamento da causa, consubstanciado na existência de ação em que ele demanda contra o mesmo banco…”.

Em senso análogo, o mesmo órgão fracionário do Superior Tribunal de Justiça proveu o Recurso Especial n. 1.135.150-RS, com voto condutor da ministra Nancy Andrighi, ao considerar o estreito relacionamento entre a parte e o perito, lastreando-se no seguinte fundamento: “A reconhecida suspeição do perito que trabalhou no processo, por sua íntima relação com o hospital-réu declarada no processo, obriga a repetição da perícia. Forte nessas razões, reconhecendo a violação da lei processual e tendo em vista a imprescindibilidade da perícia urológica cujo conteúdo foi comprometido pela suspeição do médico que nela atuou, determino a reforma do acórdão recorrido, com a anulação da sentença anteriormente prolatada e a realização de novo laudo pericial, aproveitando-se todos os demais atos praticados no processo, na esteira do devido processo legal”.

À luz de todas estas premissas e considerações, dúvida não há de que a sentença arbitral se descortina viciada quando baseada em prova técnica elaborada por perito que desprezou o dever de revelar motivo ensejador de suspeição para atuar no processo arbitral. E, nesse caso, a violação do devido processo legal, em particular, dos princípios da imparcialidade e da igualdade de tratamento das partes, constitui fundamento para o ajuizamento de ação anulatória da sentença arbitral, com arrimo no artigo 32, inciso VIII, c.c. artigo 21, parágrafo 2º, ambos da Lei n. 9.307/96.

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