Opinião

Voluntarismo judicial: quais são as regras do jogo?

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23 de março de 2019, 6h19

1. Introdução
A decisão judicial é o ponto culminante do Direito. É através dela que determinada comunidade política define quais as verdadeiras características, contornos e limites das regras do jogo a que todos estão submetidos, seja no campo privado, como no plano das relações de família, dos contratos e da propriedade, seja no campo público, no âmbito da tributação, da Previdência Social e do ordenamento do espaço urbano, por exemplo.

As regras do jogo, presume-se, são de conhecimento de todos, porque foram postas pelo legislador, após discussão, votação e publicação, tudo sob o escrutínio da imprensa e mediante o debate público, estes em maior ou menor amplitude. Sendo assim, todos devem cumpri-las, seja o Estado, seja o cidadão ou as pessoas jurídicas de direito privado.

Dessa forma, a decisão judicial somente é necessária quando os participantes do jogo apresentam-se refratários às regras estabelecidas, quando disputam sobre qual narrativa espelha a realidade em discussão ou têm alguma dúvida com relação ao que elas de fato prescrevem.

A decisão judicial, assim, envolve, necessária e previamente, a fixação de dois parâmetros por parte do juiz ou do tribunal: a) que fatos devem ser considerados como verdadeiros; b) quais as regras do jogo devem ser aplicadas.

Muitos acreditam que o problema dos fatos está relacionado à busca por determinado acontecimento, único e passível de ser alcançado ou descoberto, a que se dá o nome de verdade real. Com relação às regras a serem aplicadas, acreditam que se trata de um problema relacionado à escolha do dispositivo constitucional ou legal correto a ser aplicado que, quando incompleto ou de duvidosa interpretação, dependeria do uso de métodos de interpretação e do senso de justiça de um magistrado culto e prudente, mas, sobretudo, atento às necessidades da comunidade política.

E se não fosse assim?

2. A decisão judicial
A decisão judicial, fruto da atividade de juízes e tribunais, é um produto mais complexo do que supõe o senso comum teórico dos operadores do Direito. Como dito, ela envolve um raciocínio que depende da combinação de dois parâmetros que se autoimplicam: um relacionado aos fatos, outro à norma jurídica utilizada para qualificá-lo juridicamente.

A razão dessa complexidade está na circunstância de que os fatos considerados pelo magistrado não são produtos de acontecimentos que ele é capaz de descobrir ou logicamente inferir a partir de dados objetivos contidos nas provas, e que permitem que encontre a verdade real. Da mesma forma, a norma jurídica utilizada para qualificar juridicamente os fatos também não é pinçada do ordenamento jurídico e cuidadosamente escolhida para subsumir a ela os fatos que compõem a verdade real, única, irrepetível e inquestionável.

Antes, tanto os fatos quanto as normas jurídicas são produtos da construção que todo julgador faz a cada decisão tomada. Na prática, isso significa que não há fatos prontos a serem descobertos nem normas jurídicas a serem escolhidas: ao julgar, o magistrado não estende a mão e colhe da realidade esses dois parâmetros. Em verdade, ele os constrói artesanalmente, peça por peça, na exata medida de sua capacidade para compreender a linguagem com que trabalha e segundo a visão que possua acerca dos limites de sua função.

Imagine-se o seguinte evento[1]: um acidente ocorrido na área rural de uma rodovia. Sem testemunhas. Sem sobreviventes. O que aconteceu ali? Qual é a verdade real? O que diria um homem do campo iletrado que tenha passado pela cena alguns instantes depois? O que diria a pessoa a quem ele narrou o fato? E a décima pessoa nessa cadeia de telefone sem fio? O que dirão os policiais que confeccionarem o boletim de ocorrência? E eventual prova pericial? O que os especialistas dirão sobre a velocidade, posição e movimentos dos veículos no momento do choque? Cada um constrói sua própria versão do evento, ou seja, cada um constrói seu próprio fato. Evento e fato nunca coincidem, porque o evento admite qualquer descrição possível sobre ele. Entre eles, evento e fato, há uma máquina que lê a linguagem da cena, compreende, interpreta e cria uma narrativa.

Essa máquina é o ser humano. Ao contrário das máquinas de inteligência artificial, os humanos não podem ser padronizados para usar o mesmo algoritmo, ou seja, para usar o mesmo software ou logiciário. Também não processam informação na mesma velocidade, com a mesma qualidade matemática e com a mesma capacidade de contextualização, cruzamento, ponderação e comparação de informações e resultados. Além disso, são profundamente influenciados por grupos de informações provenientes de fontes como crenças, superstições, medos, paixões, interesses inconfessáveis e outros elementos objetivos ou subjetivos capazes de influenciar a construção de sentido na operação de construção da decisão judicial.

Voltando ao nosso exemplo. Agora, imaginem-se familiares das vítimas, depois de ouvirem vários fatos, provenientes de várias observadores diferentes, ou seja, amigos, jornalistas, peritos, padres, transeuntes, narrando tudo a um advogado e pedindo providências judiciais. E agora imaginemos esse advogado tentando escrever, com algum sentido e nos termos que lhe interessa, sua própria visão dos fatos em uma petição inicial.

Será que ainda dá para pensar em algo mítico como verdade real?

Da mesma forma, ocorre com a norma jurídica a ser utilizada para qualificar a narrativa construída pelo magistrado. Tomemos o seguinte enunciado normativo da Constituição: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

Sabemos que as normas jurídicas têm uma estrutura lógico-deôntica padrão[2] e que pode ser expressa da seguinte forma: F → C. Em outras palavras: provados determinados fatos, deve se seguir determinada consequência. Note-se que o antecedente da norma não é somente composto por fatos, mas por fatos juridicamente já qualificados, e que o consequente é formado pela antecipação e projeção de fatos também juridicamente qualificados, como a execução da pena após a confirmação, em segunda instância, da condenação. Entre ambos, antecedente e consequente, existe uma relação de causalidade normativa que conduz a um desses três modais: permitido, proibido e obrigatório.

Retornemos ao exemplo do direito fundamental à presunção de inocência. O enunciado normativo apresentado, contudo, não está expresso na forma de uma norma jurídica: F → C. O que fazer? É um princípio, não uma regra, por isso está escrito na forma de um enunciado afirmativo, dirão alguns. Certo! Mas tem que ser convertido em uma proposição normativa na forma lógico-deôntica, do contrário o enunciado normativo não pode ser utilizado em uma decisão judicial, que trabalha com normas jurídicas estruturadas na forma desse tipo de lógica modal, que é a lógica deôntica.

É neste instante que entra nossa máquina humana de processamento de informações e seu algoritmo biológico: compreensão, interpretação e construção da decisão judicial. Ela vai ter que cumprir a difícil tarefa de transformar enunciados normativos em normas jurídicas prontas para a utilização em sua decisão judicial. Não são sinônimos: o enunciado normativo é conjunto de signos impressos no papel, enquanto a norma jurídica representa a construção que se faz dele, potencialmente variável de magistrado para magistrado, de tribunal para tribunal, de caso para caso, de época para época. Quanto maior esse potencial de discordância, maior a instabilidade do sistema.

É por isso que, no exemplo de que estamos tratando, o magistrado, além de ter que estruturar o texto em uma lógica deôntica, terá que fazer um trabalho anterior muito mais difícil: terá que traduzir a linguagem posta na Constituição e, com ela, construir a norma jurídica do caso concreto. Em outras palavras, ele terá que, a partir do enunciado normativo ou texto de lei, construir a proposição normativa ou norma jurídica do caso concreto, as quais podem variar, às vezes enormemente: a) versão 1: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, sendo que, por sentença penal condenatória, deve-se considerar o acórdão do tribunal de apelação que a confirmar, total ou parcialmente; b) versão 2:ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, ou seja, até que se esgotem todas as instâncias recursais, ordinárias e extraordinárias, aí incluídos embargos e agravos de toda espécie.

Por tais razões, tenho dito[3] que a decisão judicial envolve, em essência, duas grandes travessias: a) a primeira vai dos eventos aos fatos, na qual o magistrado tem que, necessariamente, criar sua própria narrativa do caso sob sua responsabilidade; b) a segunda vai do texto da lei ou enunciado normativo à norma jurídica. É nessas travessias, pois, onde reside o núcleo de toda a problemática em torno da decisão judicial, porque se não há, minimamente, critérios e limites para se realizá-la, a rigor, é possível conhecer-se apenas o ponto de partida dessas duas travessias, porém nunca o ponto de chegada: que é a atribuição de sentido à linguagem com que se constrói a narrativa do magistrado (fatos ou proposições factuais) e a norma jurídica do caso concreto (proposições normativas).

Em tais termos, se não houver critério para a realização dessas travessias, todo o sistema jurídico perde o sentido, passando o Poder Judiciário a ser mero concorrente do Poder Legislativo e do Poder Executivo, não Poder a eles harmônico e com eles integrante de um sistema político no qual funcionariam, uns em relação aos outros, em caráter de complementação, cooperação e estabilização recíproca.

Neste ponto, importante a noção de discricionariedade judicial[4]. Esta diz respeito à presença ou a ausência de critério de julgamento. Diz-se que há discricionariedade em sentido fraco, quando é fornecido o critério, mas este, em razão de alguma inconsistência, admite mais de uma compreensão. No caso dos enunciados normativos, para os positivistas, isso poderia ocorrer em razão da presença, por exemplo, de termos vagos, ambíguos e porosos. Por outro lado, diz-se que há discricionariedade em sentido forte quando, segundo visão positivista do direito, não é fornecido critério algum de julgamento, sendo que ao próprio julgador é admitido que faça a escolha de um.

Aqui importa observar que a questão da discricionariedade judicial é externa ao julgador, sendo dada pelas circunstâncias do jogo, no caso do Direito, pelas circunstâncias do ordenamento jurídico. Assim, são os enunciados normativos, constitucionais ou infraconstitucionais, que podem se apresentar como critérios inconsistentes de julgamento. Por outro lado, é possível que determinado ordenamento jurídico sequer ofereça um enunciado normativo expresso e adequado para que determinado julgamento seja levado a termo.

Dessa forma, a partir de visão positivista do direito, não é difícil inferir que todo ordenamento jurídico, seja ele de um país de tradição românica ou anglo-saxônica, ou seja, seja composto preponderantemente de um direito escrito ou um direito comum (consuetudinário), sempre haverá inconsistências de toda ordem a provocar a discricionariedade judicial.

Porém, não é esta a questão relevante a desafiar juízes e tribunais. Aqui se solicita a maior atenção do leitor. Em outras palavras, o desafio não está em saber se o caso, a ser julgado no âmbito de determinado ordenamento jurídico a partir de certa tradição, provocará, ou não, a discricionariedade judicial.

O que importa realmente é saber qual será a atitude do magistrado diante dela. E aqui entra a ideia de voluntarismo judicial.

Então, voluntarismo judicial diz respeito à atitude do magistrado que, diante de situações de discricionariedade judicial, fraca ou forte, realiza ou finaliza a construção de sentido dos enunciados factuais e dos enunciados normativos a partir de critérios de sua exclusiva escolha, ou seja, ditados por sua vontade.

O juiz voluntarista, portanto, é aquele que não se vale de elementos objetivos presentes ou admitidos no ordenamento jurídico para lidar com os casos em que a discricionariedade judicial está presente.

3. Conclusão
Em suma, a ação humana que permite a realização dessas duas travessias envolve, insista-se, um trabalho de compreensão, interpretação e tradução da linguagem dos eventos e dos enunciados normativos. É exatamente o que se costuma designar no senso comum teórico, simplesmente, por atividade interpretativa ou interpretação jurídica, daí a relevância da hermenêutica jurídica para a teorização, estruturação e operacionalização não apenas da decisão judicial, mas do próprio Direito, até porque, como dito antes, aquela é o ponto culminante deste.

Em tais termos, se magistrados, membro do Ministério Público, advogados e professores desconhecem essa problemática ou, conhecendo-a, olvidam-na, deixando de estudá-la e refletir sobre ela, o que temos na prática é um grande “diálogo de surdos”, ou melhor, de pessoas que escutam umas às outras, mas muito pouco, entendendo “alguns fonemas, grafemas e outras ideias esparsas”. Daria o título de uma boa crônica do STF atual.


[1] Acerca da diferença entre fato e evento, consultar: CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. São Paulo: 2018, Noeses. CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de teoria geral do direito: o construtivismo lógico-semântico.São Paulo: Noeses, 2016. TOMÉ, Fabiana Del Padre. A prova no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2016.
[2] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. São Paulo: 2018, Noeses.
[3] BEZERRA NETO, Bianor Arruda. O que define um julgamento e quais os limites dos juízes. São Paulo: Noeses, 2017.
[4] Acerca do tema, consultar: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva, 2012. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. ROSA, Alexandre Morais. O hiato entre a hermenêutica filosófica e a decisão judicial. In: (Orgs.) STEIN, Ernildo; STRECK, Lenio. Hermenêutica e epistemologia: 50 anos de verdade e método. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

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