Opinião

Medida adotada pelo STF para combater fake news é mesmo eficaz?

Autor

  • Ricardo Campos

    é docente nas áreas de Proteção de Dados Regulação de Serviços Digitais e Direito Público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main doutor e mestre pela Goethe Universität coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional diretor do Instituto Legal Grounds e sócio do Warde Advogados.

22 de março de 2019, 6h41

No último dia 14, foi aberto um inquérito sob a direção do ministro Alexandre de Morais para apurar possíveis e eventuais delitos cometidos contra membros do Supremo Tribunal Federal. Para tanto, a portaria assinada pelo ministro Dias Toffoli se valeu do artigo 43 do Regimento Interno do STF, que autoriza a abertura de inquérito caso haja infração da lei penal envolvendo autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição. O caso em questão tem causado uma série de discussões. Um importante discussão, porém, não foi levantada. Essa medida do STF para combater fake news é de fato eficaz? Antes de responder a essa questão, faz-se necessário adentrar de forma rápida nas mudanças atuais da responsabilidade dos intermediários e da esfera pública moderna.

A experiência democrática moderna dentro dos Estados nacionais se deu especialmente na dualidade entre a estruturação plural da esfera pública correlata à institucionalização da política na instituição do parlamento assentado na pluralidade partidária e em eleições periódicas. Alinhado à proteção de direitos universais, nesse eixo se assentou a experiência moderna democrática. A esfera pública nesse contexto sempre foi um conceito correlato ao de democracia. Ou seja, sem esfera pública, um regime supostamente democrático se aproximaria mais de ditadura comissária no sentido schmittiano[1].

Nos últimos anos, entretanto, ocorreu mundo afora uma certa "perturbação" nesse modelo, especialmente pela mudança do meio em que se estruturava a esfera pública[2]. Antes centradas em grandes organizações jornalísticas, sejam televisivas, sejam da imprensa escrita, a esfera pública passou a ser mediada por plataformas digitais — Facebook, Twitter e WhatsApp. A mudança do meio televisão/jornal impresso abriu a possibilidade de que todos participassem da comunicação num modelo peer-to-peer. Isso trouxe certamente ganhos, porém trouxe também novos perigos e desafios, principalmente quando se tem em vista a estruturação de uma esfera pública plural[3].

Por um lado, essa mudança possibilitou a participação de "excluídos" da comunicação estruturada pelas grandes organizações. Somente nesse contexto poderiam surgir os influencers. No campo jornalístico, aumentou-se de fato a diversidade sobre a interpretação e reconstrução dos acontecimentos políticos e sociais. Isso é um fato positivo. Por outro lado, o filtro jornalístico da redação das organizações perdeu seu valor na medida em que qualquer indivíduo passa a poder gerar conteúdo. Especialmente nesse ponto é que se encontra o grande desafio: se não há o filtro jornalístico-profissional e não há mais os parâmetros de eficácia da responsabilização jurídica por notícias fraudulentas de organizações — vide caso Brizola/Jornal Nacional —, como combater distorções direcionadas nessa nova esfera pública?

Talvez o caso WhatsApp também seja o mais paradigmático e o mais desafiador para essa questão. Devido à criptografia end-to-end, não se tem acesso ao conteúdo comunicado nem pelo provedor do aplicativo. Com isso, uma possível investigação penal e civil possui uma restrição inerente na medida em que somente se um participante de grupo denunciar há material probatório claro. E, somando-se a isso, a experiência brasileira de responsabilização ao bloquear esse aplicativo revelou-se um grande erro[4], visto que especialmente no Brasil não só a comunicação cotidiana é estruturada pelo design do WhatsApp, mas também a comunicação dentro de empresas e até mesmo o sistema judiciário tem usado o sistema para intimação de despachos ou decisões judiciais. Então, como proceder nesse caso sem violar o direito de livre expressão e comunicação assegurados na Constituição? Nesse ponto, faz-se necessário compreender como se deu a institucionalização de um modo específico de responsabilidade jurídica das plataformas que estruturam taticamente a comunicação pública.

O sonho libertário do início da popularização da internet dos anos 2000 revelou-se um grande pesadelo depois dos escândalos da Cambridge Analytica e interferências em eleições. A Declaration of the Independence of Cyberspace, de John Perry Barlow, autoproclamando um "não me toque" do mundo digital, também se revelou uma grande ingenuidade pré-adolescente. Como bem nota recentemente David Gugerli, o que ocorreu nos últimos anos foi uma translocação ou mudança do mundo (analógico) para o mundo digital[5]. Vários desenvolvimentos tecnológicos recentes, como Internet of Things, aumentarão consideravelmente a presença digital na vida cotidiana. Repensar categorias jurídicas para esse novo cenário é tarefa crucial dos novos juristas[6]. A tendência é que todos os aspectos da vida humana passem a ser cada vez mais gerenciados ou mediatizados pelo mundo digital, desde relações íntimas até novos parques industriais modernos. Tentar justificar o afastamento de políticas públicas do mundo digital é no mínimo uma piada de mau gosto, seja no campo de política industrial 4.0, seja com relação às medidas para assegurar pluralidade da esfera pública.

Justamente nesse contexto dos libertários é que as plataformas digitais ganharam um status jurídico peculiar. O grande momento do nascimento se deu com o Section 230 of the Communication Decency Act de 1996. Nesse contexto histórico se iniciam os debates sobre a responsabilidade jurídica das plataformas. Também nosso festejado Marco Civil da Internet bebeu na mesma fonte e nasceu alguns anos após[7]. Section 230 of the Communication Decency Act estipula que os intermediários da internet não devem ser considerados como editores e que, mesmo que policiem o conteúdo do seu serviço da forma que eles próprios determinarem nos termos e condições de uso (!), não perdem o seu safe habor e continuam a ser intermediários. Assim nasceu a justificativa legal quase mítica da neutralidade das plataformas.

Entretanto, na exata medida em que escândalos de manipulação da esfera pública apareciam no plano global, os ventos começaram a tocar em outras direções. Primeiramente na Alemanha, o tema manipulação da esfera pública ganhou espaço na discussão pública e culminou com a mudança clara da responsabilidade das plataformas com a lei alemã para melhoria da aplicação do Direito nas redes sociais (Gesetz zur Verbesserung der Rechtsdurchsetzung in sozialen Netzwerken – NetzDG)[8]. Esse movimento de repensar a responsabilidade das plataformas ganhou dimensão global, tanto na academia quanto nas políticas públicas de vários Estados. Em fevereiro deste ano, o parlamento britânico se posicionou de forma dura e clara pela mudança do regime jurídico das plataformas digitais[9].

Para perceber a importância do tema, basta fazermos um pequeno teste de observação. Qualquer cidadão que utiliza WhatsApp consegue perceber que de fato há, paralela à comunicação cotidiana, um aumento de atividades direcionada a um tema específico em determinados momentos críticos do país. Praticamente os mesmos memes, as mesmas falsas reportagens, as mesmas difamações circulam em diferentes grupos. A influência na esfera pública se dá de forma clara. A pergunta que se faz, entretanto, neste ponto é: isso seria mesmo espontâneo? As falsas reportagens, os recortes e textos são fabricadas pelo cidadão comum? Ou existiria uma possível engenharia ou rede de grupos direcionada por detrás do aumento de atividade de grupos que dispensam notícias fraudulentas e difamações em determinados momentos?

Adentrar nessa caixa-preta da nova esfera pública exige cuidado redobrado. Acima de tudo porque esse empreitada não pode, sob qualquer hipótese, servir de álibi para um suposto controle da comunicação cotidiana. Por outro lado, há soluções concretas para esse sério problema sem ferir preceitos constitucionais. Não se trata em primeiro plano de buscar e punir individualmente por compartilhamento de notícia fraudulenta. Uma possível regulação deve primeiramente direcionar-se para uma dimensão trans-subjetiva e estrutural do problema[10]. De forma concreta, seria de enorme importância estabelecer uma estrutura de compliance das empresas de plataforma com dever de prestar relatórios sobre atividades e contas que extrapolam o nível normal de comunicação diária para uma comissão plural com representantes do governo, parlamento, Judiciário e sociedade civil. E também obter informações de como contas são bloqueadas e apagadas pela violação dos termos de uso das plataformas. Nesse caso, haveria necessidade de abrir hipóteses de direito de defesa em formas de Online Dispute Resolution, descarregando o Judiciário e agilizado os procedimentos. O Judiciário observaria a formação de padrões pelas decisões e poderia intervir, se fosse o caso, quando parâmetros claros não fossem obedecidos nas decisões[11]. Uma proposta concreta de lei para o caso brasileiro foi debatida na academia alemã e publicada no livro Fake News e Regulação (Coleção "Direito e Estado em Transformação", Thomson Reuters-RT São Paulo, 2018).

Retomando a questão inicial colocada: a medida adotada pelo STF para combater fake news é de fato eficaz? Certamente a abertura de inquérito pelo ministro Toffoli poderá gerar efeitos no sentido de uma prevenção geral, ou seja, poderá abrir um precedente para demonstrar que parâmetros legais clássicos do mundo analógico como difamação também possuem caráter vinculante no mundo digital. Entretanto, não resolverá o problema propriamente dito, pois não dispõe de um modelo estrutural de combate às notícias fraudulentas assentado na experiência internacional sobre o tema. Além do mais, o inquérito é restrito aos membros do Supremo. E quando tivermos as próximas eleições municipais? E quando um senador, deputado federal ou estadual for alvo de campanhas obscuras que influenciam o público geral? E quando for um juiz ou promotor de instância inferior? E quando for um partido político como um todo? E quando for um projeto de lei?

Chegou a hora de se discutir seriamente e de forma mais abrangente sobre o tema, a fim de conferir soluções concretas para problemas que já estão anunciados e que se tornarão ainda mais recorrentes com o passar do tempo. Nesse sentido, se não se perceber que o problema é estrutural, tocante à transformação da infraestrutura comunicacional da sociedade, ficaremos correndo na roda de hamster das redes sociais sem conseguirmos chegar a lugar algum.


[1] Carl Schmitt distingue entre ditadura "comissária" e ditadura "soberana". A função da ditadura comissária é criar um Estado no qual o direito possa ser implementado de fato. O ditador comissário suprime (parcialmente) a Constituição para proteger a sua existência. Ver Carl Schmitt, Die Diktatur. Von den Anfängen des modernen Souveränitätsgedankens bis zum proletarischen Klassenkampf, Duncker & Humblot, Berlim 2015.
[2] Thomas Vesting, Medien des Rechts. Computernetzwerke, Velbrück, Weilerswist 2015.
[3] Thomas Vesting, A mudança da esfera pública pela inteligência artificial, em: Ricardo Campos, Georges Abboud, Nelson Nery Jr. (Orgs.) Fake News e Regulação. Coleção Direito e Estado em Transformação, Thomson Reuters-RT Sao Paulo 2018, p. 91 – 108.
[4] RECLAMAÇÃO 23.879 DISTRITO FEDERAL, relator MIN. LUIZ FUX. MEDIDA CAUTELAR NA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 403 SERGIPE, Relator Ministro Edson Fachin.
[5] David Gurgeli, Wie die Welt in den Computer kam. Zur Entstehung digitaler Wirklichkeit. Fischer, Frankfurt am Main 2018.
[6] De forma exemplar para a dogmatica do direito civil nas questões com relação à personalidade jurídica de algoritmos ver Gunther Teubner, Digitale Rechtssubjekte? Zum privatrechtlichen Status autonomer Softwareagenten. Archiv für civilistische Praxis 218, 2018, p. 155-205.
[7] Recentemente foi revelado, dentro de processo judicial nos Estados Unidos, que o Facebook atuou politicamente no lobby a favor do Marco Civil da Internet através de acadêmicos, institutos e ONGs. Esses arquivos foram revelados pela Computer Weekly e foi compartilhado também com o International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ). Seria importante para o contexto nacional saber se houve de fato conflito de interesses no financiamento de institutos científicos para a causa em questão, acima de tudo para se ter transparência sobre os discursos pretensiosamente públicos em torno da matéria.
[8] Veja a tradução da lei alemã e artigos sobre ela no livro, Ricardo Campos, Georges Abboud, Nelson Nery Jr. (Orgs.) Fake News e Regulação. Coleção Direito e Estado em Transformação, Thomson Reuters-RT Sao Paulo 2018.
[9] House of Commons Digital, Culture, Media and Sport Committee Disinformation and ‘fake news’: Final Report Eighth Report of Session 2017–19 Report, together with formal minutes relating to the report Ordered by the House of Commons to be printed 14 February 2019.
[10] Ver artigo de Karl-Heinz Ladeur, Netzwerkrecht als neues Ordnungsmodell des Rechts – nach dem Recht der Gesellschaft der Individuen und dem Recht der Gesellschaft der Organisation, em: Martin Eiferte Tobias Gostomzyk (Orgs.) Netzwerkrecht. Die Zukunft des NetzDG und seine Folgen für die Netzwerkkommunikation, Nomos, Baden-Baden 2018, p. 169 – 186.
[11] Uma proposta concreta para o caso brasileiro surgiu de debates na academia alemã entre brasileiros e alemães de autoria de Ricardo Campos e Juliano Maranhão e foi publicada no livro Fake news e autorregulação regulada das redes sociais no Brasil: fundamentos constitucionais em: Ricardo Campos, Georges Abboud, Nelson Nery Jr. (Orgs.) Fake News e Regulação. Coleção Direito e Estado em Transformação, Thomson Reuters-RT Sao Paulo 2018, p. 217 – 232.

Autores

  • é assistente na Cátedra de Direito Público, Teoria dos Meios de Comunicação e Direito Público da Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha).

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