Opinião

Comunicação de gestor público em redes sociais não ofende moralidade

Autores

  • Flávio Henrique Costa Pereira

    é sócio coordenador do departamento de Direito Político e Eleitoral do escritório BNZ Advogados especialista em Direito Eleitoral e um dos autores do pedido de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.

  • Tony Chalita

    é sócio responsável pelo departamento de Direito Político e Eleitoral do escritório BNZ Advogados mestre em Direito do Estado e especialista em Direito Eleitoral.

17 de março de 2019, 7h39

A colisão entre direito e ações do homem, diante das mudanças de valores e da realidade social, impondo exigências não atendidas pelo legislador e que, ao mesmo tempo, desafia o Estado-juiz, não é uma dificuldade apenas dos nossos dias. Há muito tempo esse tema é debatido pelos juristas.

O crescimento da população, das conquistas de natureza geográfica, o impacto de forças técnicas e econômicas já há muito estabeleceu uma ruptura entre a lei e o fato social, impondo soluções interpretativas no desenrolar da experiência jurídica (Reale, 2002)[1].

Tal constatação, verificada por Rudolf von Jhering ainda no século XIX, ganhou novos contornos com o desenvolvimento da tecnologia no século XX. E, com as imposições sociais que vivenciamos diante das transformações deste século, enfrentamos novos desafios que exigem, dos operadores do Direito, um repensar dos paradigmas existentes — muitos dos quais recentes e ainda não consolidados —, inclusive, se não principalmente, de ordem axiológica.

A sociedade pós-moderna, caracterizada, dentre outras, pela ampla liberdade e possibilidade de manifestações, tem na informação e na desinformação um dos cânones de sua formação e transformação.

Justamente por essa liberdade e ampliação de exposição de ideias e opiniões, ao mesmo tempo em que se desenvolve mecanismos de desinformação, a resposta do poder público se mostra cada dia mais árdua. Por seu dinamismo próprio, a sociedade já não se funda em certezas, mas, sim, em convicções fluidas, não permitindo fácil consolidação da vontade da maioria.

Neste cenário, a democracia enfrenta grave crise, pois já não há mecanismos sólidos para que a translação entre o público e o privado — assim entendido como a capacidade do poder público de promulgar o que é considerado bom — se estabeleça, principalmente porque aquilo que é considerado bom hoje, poderá não ser amanhã (Bauman, 2001). Porém, o amanhã de hoje, é “logo ali”.

E é justamente o desenvolvimento tecnológico dos últimos anos que impôs essa realidade, transformando as Ágoras da Grécia Antiga em ambientes virtuais.

Na esteira dessas premissas, a publicidade institucional praticada pelo poder público, tal como preconizado pelo artigo 37, parágrafo 1º, da Constituição da República, necessariamente deve ganhar novos contornos.

Não há dúvidas de que permanecem hígidos os objetivos claramente definidos pela norma constitucional, quais sejam, as finalidades educativas, informativas e de orientação social da publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos.

Também não se pode questionar que toda publicidade deve ser acomodada sob as premissas dos princípios da administração pública, notadamente a moralidade e a impessoalidade (artigo 37, caput, da CR).

Entretanto, comungamos da clássica lição de Carlos Maximiliano[2] ao ensinar que, no âmbito da interpretação jurídica, não se deve perseguir a moral ideal nem a concepção pessoal de quem interpreta, é preciso que o aplicador leve em consideração a realidade vigente da sociedade no momento de aplicação da lei. Isso porque a lei não pode ser analisada fora do ambiente que ilumina.

Todavia, os anseios atuais dos cidadãos trazem para o gestor público a necessidade de ampliação de seu canal de diálogo e comunicação. A sociedade contemporânea não se satisfaz com a informação estanque dos canais oficiais do poder público.

O formato antes aplicado, arcaico à realidade atual, mostrou-se ineficiente em um ambiente de informações que ecoam na “velocidade da luz” e de uma camada social mais ativa, orientada e questionadora. A manutenção do antigo modelo se traduz em uma administração ineficiente na comunicação com o cidadão e na própria prestação de contas das decisões políticas e de programas sociais.

É que não basta ser informado. O que exige o administrado é uma interação com a administração pública, mas não apenas com o próprio órgão, mas, também e principalmente, de forma direta com o gestor. É com o eleito, com o nomeado que o homem virtual quer interagir, através de instrumentos de acesso aos seus perfis privados nas redes sociais.

Essa interação, espera-se, deve ser estabelecida sob duas vertentes: a da informação das ações tomadas pelo gestor público e a da existência de mecanismos para manifestação de opiniões e críticas. E tudo isso, em tempo real.

Por isso, a publicidade da administração, notadamente a de natureza informativa, deve ser ampliada, de modo que as comunicações de iniciativa do próprio gestor, em seus perfis privados, sejam reconhecidas como mecanismo de transparência e, portanto, de acordo com a norma contida no artigo 37, parágrafo 1º, da Constituição Federal.

Por tais razões, ações judiciais promovidas pelo Ministério Público com o objetivo de obliterar a comunicação do gestor público em seus perfis privados, ainda mais com a pecha de ato de improbidade administrativa, sob o argumento de que não observados os princípios da impessoalidade e da moralidade, não se sustentam. Pelo contrário, as iniciativas de dizer o que está sendo realizado na gestão pública vão ao encontro dos anseios sociais e ampliam a publicidade e a transparência de atos públicos, principalmente diante da interação permitida, pois não é a palavra do gestor que irá se impor, mas, sim, a percepção do cidadão para cada ato, ideia e opinião publicados, acolhidas ou repelidas pelo próprio cidadão.

Logo, ao publicar atos seus, na qualidade de gestor público, em seus perfis privados, o ocupante do cargo age com consonância com a esperada publicidade pública, não afetando a moralidade ou a impessoalidade ao atribuir o ato como seu ou de sua gestão. Ao assim fazer, o gestor assume atos que, no tempo, serão avaliados como bons, ou não, conforme a percepção de momento.

Se, no futuro, o ato praticado, inicialmente considerado bom, for causa de um efeito maléfico, esta cadeia de sucessão de causas será facilmente identificável. Cada vez mais, a informação disponível permitirá aos cidadãos conhecerem seus representantes e, principalmente, suas ações enquanto gestor. E, o que é mais importante, já não poderá este se esconder por detrás da estrutura do Estado sempre que decisões suas tiverem como consequência inesperada algo que não seja bom para a sociedade.

Como se pode perceber, no caso da comunicação pelas redes sociais, a identificação entre gestor e ato, longe está de ofender a impessoalidade e a moralidade. Hodiernamente, essa identificação é, antes, um dever, pois a facilidade da informação exige uma mudança axiológica para entender que, na publicidade pública, o valor maior de hoje é o acesso amplo e irrestrito à informação.

Como preconizado por Toqueville, excesso de liberdade na informação se combate com mais liberdade de informação. O que devemos esperar do gestor público, doravante, é que sua comunicação se dê com a maior liberdade possível, alcançando todos os detalhes, inclusive vestindo o gestor a titularidade de suas ações, para ser cobrado pelo que fez.

Assim, a impessoalidade dos atos públicos deverá ser permitida e, até mesmo, exigida, não só nos atos próprios de publicidade oficial, mas, também, na comunicação do gestor com os cidadãos, por meio de seus próprios perfis de acesso às redes virtuais, sob pena de servir o Estado como instrumento de cerceamento da comunicação entre representantes e representados, afetando os valores atualmente reconhecidos pela própria sociedade.


[1] “Enquanto a sociedade correspondeu, em sua realidade viva, às regras contidas nos Códigos, foi natural que o jurista se satisfizesse com o problema da vigência das normas de Direito. Quando, porém, o mundo ocidental passou a ser atormentado por novas exigências – resultantes do crescimento da população, das conquistas de natureza geográfica, do quase repentino impacto de poderosas forças técnicas e econômicas – , estabeleceu-se uma ruptura entre a lei e o fato social, impondo outras soluções interpretativas, já anunciadas pelo gênio de Rudolf Von Jhering, reclamando atenção para o problema do fim, como criador de t odo o Direito, e o valor da luta, das energias vitais no desenrolar da experiência jurídica” (REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª Edição, 2002. São Paulo: Saraiva, pgs. 426/427).
[2] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1994.

Autores

  • é advogado, coordenador do departamento de Direito Político e Eleitoral do Braga Nascimento e Zilio Advogados, especialista em Direito Eleitoral.

  • é advogado, sócio-coordenador do departamento de Direito Político e Eleitoral do Braga Nascimento e Zilio Advogados, especialista em Direito Eleitoral e mestrando em Direito Constitucional pela PUC-SP.

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