Opinião

LGBTfobia não é crime de racismo, por enquanto!

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9 de março de 2019, 18h30

O Supremo Tribunal Federal está apreciando neste momento ação constitucional que versa sobre o tema da chamada LGBTfobia e as possibilidades de sua criminalização – Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26, pela relatoria do ministro Celso de Mello, sendo que algumas questões que foram apresentadas como argumentos fundadores dos de seu voto precisam ser problematizadas, dentre as quais: (1) a de que determinados mandatos constitucionais de criminalização estariam autorizando a criminalização da LGBTfobia; (2) a de que a equiparação da LGBTfobia ao racismo não configuraria excesso do STF como legislador positivo.

Temos que é preciso demarcar, de pronto e com Schünemann, a premissa de que apenas com o iluminismo é que o Direito Penal, sobretudo nas figuras de Beccaria e Hommel, transpôs-se da escuridão intelectual e moral da tradição cristã para a claridade da razão e da humanidade. E o fez por meio da doutrina do dano social como seu único e legitimo fim. (SCHÜNEMANN, Bernd. Direito Penal, Racionalidade e Dogmática. Sobre os limites invioláveis do direito penal e o papel da ciência jurídica na construção de um sistema penal racional. São Paulo: Marcial Pons, 2018, p.28).

Um dos grandes problemas teóricos e práticos do Direito Penal contemporâneo é o que diz com as possibilidades demarcatórias de sentidos de ele constituir-se – desde sua matriz liberal – na chamada ultima ratio do sistema jurídico enquanto ordenador das relações sociais, ultrapassando, pois, a experiência de ter sido usado como ferramenta despótica de governo para controlar comportamentos e condutas sociais indesejáveis (extrema ratio). Assim, a sanção penal e a privação de liberdade só devem ser determinadas quando necessárias, ou seja, em face de que outros meios não foram eficazes para dar respostas adequadas à prevenção e a responsabilização da lesão do bem jurídico tutelado ameaçado ou atingido.

A pena é sempre a arma mais forte a disposição do sistema normativo e do Estado; aquela que mais danos provoca em face dos direitos fundamentais das pessoas atingidas por ela (físicas e jurídicas), evidenciando medida extrema de controle social.

O problema é que, também historicamente, o Direito Penal tem operado – mesmo em sociedades e Estados ditos democráticos – como extrema ratio, sendo utilizado como elemento essencial à garantia da estabilidade, segurança e previsibilidade de determinados interesses e relações, e com isto incorporando razões de Estado nem sempre claras, o que se mostra muito perigoso até hoje.

Por certo que há indeterminações semânticas e pragmáticas imensas no âmbito do conceito de ultima ratio em Direito Penal, e não poderia ser de outra forma, tanto em face da sua morfologia principiológica, que admite múltiplas possibilidades de atribuições de sentidos (óbvio que não infinitas, ou contrárias aos seus fundamentos matriciais); como por conta dos contextos hipercomplexos nos quais opera. Mas isto não significa ser impossível estabelecer marcos atributivos a ela? Ao contrário, é necessário tal medida, seja pela segurança jurídica que se exige na espécie, seja para os fins de termos controles públicos aferíveis sobre sua operação e eventuais violações.

Acreditamos que são os princípios da subsidiariedade e da fragmentariedade no Direito Penal que podem, para os efeitos deste trabalho, fornecer alguns elementos de dosimetria material ao conceito fundacional de ultima ratio de que estamos tratando.

Como sabemos, a ideia central da expressão subsidiariedade no Direito Penal está fundida com a de redução da intervenção penal nas relações sociais naquilo que se apresenta imprescindível, necessário e oportuno a observância do sistema jurídico como um todo e a manutenção da paz social pela via da proteção de bens jurídicos prévia e normativamente identificados, entrecruzando-se também com a ideia de fragmentariedade, enquanto aceitação de que o Direito Penal não pode servir para proteger todos os bens, mas somente aqueles eleitos (constitucional e infraconstitucionalmente) mais relevantes para os fins já referidos, e frente a ataques mais graves. Por sua vez, ambos estes grupos de questões estão sob a premissa da intervenção mínima e proporcional.

Estes princípios referidos sinalizam que não só o sistema e determinados bens jurídicos devem ser protegidos pelo Direito Penal, mas também devem ser protegidos do Direito Penal, pois, se para o restabelecimento da ordem normativa violada e responsabilização/reparação do bem defraudado são suficientes medidas civis ou administrativas, são estas as que devem ser empregadas, e não as penais.

O ministro Celso de Mello em seu voto (p.26), num primeiro momento, parece concordar com estas teses,  mas em seguida entra em contradição quando defende que a Constituição Federal brasileira de 1988 estabeleceu alguns mandados de criminalização para o legislador e para todo o sistema jurídico nacional que induzem a formatação de normas jurídicas incriminadoras da LGBTfobia – em especial diante das disposições do artigo 5º, incisos XLI e XLII, da Carta Política-, o que autorizaria sua equiparação aos crimes de racismo.

Este argumento, em nosso entender, não se sustenta, pelo simples fato de que a Constituição Federal não elenca de forma explicita a LGBTfobia como bem jurídico a ser protegido penalmente, como o faz com as práticas de racismo, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes, o terrorismo, os definidos (pelo legislador ordinário) como crimes hediondos; a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático; o crime de retenção dolosa do salário do trabalhador.

Vale aqui a lição, neste sentido, de grandes nomes do constitucionalismo brasileiro como Clèmerson Merlin Cléve, Ingo Wolfgang Sarlet, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Lênio Luiz Streck e Flávio Pansieri, em brilhante artigo publicado na ConJur (11/08/2014), intitulado Senso Incomum. Perigo da criminalização judicial e quebra do Estado Democrático de Direito.

Se há os chamados mandados constitucionais explícitos de criminalização no Brasil, eles se dirigem, fundamentalmente, ao legislador, e qualquer inversão desta competência matriz implica periclitação à lógica do sistema normativo como um todo, inclusive à funcionalidade democrática das instituições republicanas. Ou seja, temos que é possível que mandados explícitos de criminalização, em determinados casos densificadamente marcados pela gravosidade da defraudação de bens jurídicos vitais, e em face da insuficiência e ineficácia de outros meios menos violentos que os penais.

Tendo este raciocínio validade coerencial, poderíamos firmar o entendimento de que impõem-se, como imperativo empírico categórico (prévio e a posteriori), a toda e qualquer criminalização de atos e fatos, (1) a mínima aferição quantitativa e qualitativa dos nexos causais das condições e possibilidades de tais enquadramentos, (2) tanto na perspectiva de identificação global e contextualizada das violações concretas do sistema normativo identitário da sociedade, como dos bens jurídicos envolvidos, (3) como na ponderação sobre quanto o meio eleito (norma penal) pode promover o fim almejado (evitação do crime). Estes são juízos de admissibilidade prévios à constituição de qualquer norma penal na perspectiva da ultima ratio.

Salvo melhor juízo, os argumentos colacionados pelo relator do caso não apresentam a saciedade estes elementos. Ao contrário, em seu arrazoado, ele apresenta dados brutos de violência contra cidadãos da comunidade LGBT.

Deveríamos perguntar ao relator: (a) desses casos citados foram aferidos quantitativa e qualitativamente as motivações e nexos causais (diretos, indiretos, preponderantes, subsidiários) das agressões referidas (toxicológicos, violência doméstica, sexual, psíquicas, disputas patrimoniais, alcoolismo, dentre outros)? (b) com base em que dados e informações – e atribuição de sentidos a eles – chegou-se a conclusão de que as motivações foram única e exclusivamente em face da orientação sexual e/ou identidade de gênero dos indivíduos atingidos? (c) qual a metodologia de investigação, coleta e interpretação de dados foram usadas na quantificação e qualificação dos informes de violência decorrente da orientação sexual e/ou identidade de gênero de indivíduos reprisados pelo relator em seu voto?

O relator ainda informa que 445 homicídios contra o grupo LGBT ocorreram no ano de 2017, mas não esclarece quais as circunstâncias destes casos que revelaram de forma induvidosa razões homofóbicas como causas culturalmente motivadas preponderantes para os comportamentos criminosos; e se foram condenados ou seus autores pelo delito de homicídio já existente no Código Penal. Ou será que isto não é importante para aferirmos a necessidade de uma ultima ratio ao seu enfrentamento?

Quando o relator traz a lume dados estatísticos sobre a violência contra a comunidade LGBT, deixa de analisar os nexos causais que levaram a isto, ou seja, já que está propondo a criminalização da LGBTfobia, teria de levar em conta o que Lênio Streck chama de prognose, ou seja, as medidas tomadas pelo legislador devem ser suficientes para uma proteção adequada e eficiente e, além disso, basear-se em cuidadosas averiguações de fatos e avaliações racionalmente sustentáveis. (STRECK, Lênio Luiz. O dever de proteção do estado (schutzpflicht): o lado esquecido dos direitos fundamentais ou “qual a semelhança entre os crimes de furto privilegiado e o tráfico de entorpecentes”? Disponível em https://jus.com.br/artigos/11493/o-dever-de-protecao-do-estado-schutzpflicht,  acesso em 01/03/2019).

É óbvio que há atos de violência no Brasil contra cidadãos da comunidade LGBT! É inequívoco que tais situações são inadmissíveis e precisam de prevenção adequada e eficiente, além de responsabilização jurídica!

O que temos de indagar é se a resposta que o Estado – e também a sociedade – tem de dar deva ser de natureza penal? E pela via do Judiciário, em sede de ADO, criminalizando algo que a Constituição não determina, e tampouco elegeu como bem jurídico penal, considerando ainda que o Parlamento tem em sua pauta a matéria para avaliação ponderada.

E na espécie não é possível infirmarmos que a Constituição brasileira está determinando que se criem normas penais para incriminar a LGBTfobia, repetimos: a uma, porque não se trata de bem jurídico penal até agora eleito pela norma magna, e sequer por regra complementar ou ordinária no sistema jurídico brasileiro; a duas, não podemos negar, já há legislação penal que são aplicadas as situações fáticas declinadas pelo relator no seu voto, como os crimes de lesão corporal, os de homicídio, e mesmo os crimes contra a honra; a três, inexistem razões suficientes no voto do relator para demonstrar que inexistem outras legislações e politicas de proteção da comunidade LGBT menos agressivas que a incriminação, imperativo categórico de admissibilidade de novo dispositivo penal.

A partir deste raciocínio, sequer a ADO seria possível de conhecimento!

O ministro Celso de Mello busca sustentar a tese de que a LGBTfobia é uma espécie de crime de racismo, e dispensa volume significativo de argumentos para tanto, todavia, a nosso entender, equivocados no ponto. O que se discute, ao fim e ao cabo, no ponto, é a possibilidade de se conferir interpretação conforme à Constituição ao conceito de raça, previsto na Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, a fim de que se reconheçam como crimes tipificados nessa lei comportamentos discriminatórios e preconceituosos contra a população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros).

Tenhamos presente, antes de qualquer coisa, que esta Lei 7.716/1989 é norma penal, e como tal, passou por amplo processo de discussão legislativa competente, que cumpriu, aí sim, com mandado constitucional de incriminação explícito disposto no artigo 5º, inciso XLI, da Constituição. Nesta lei, o Congresso Nacional – tanto em 1989, como em 1997, com a Lei 9.459 – delimitou categorialmente a densificação material das espécies de racismo que estariam recebendo tratamento incriminatório, a saber: os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Atribui, pois, esta lei penal, naquela quadra histórica, efetivação punitiva como forma de proteger bens jurídicos a uma parte do comando estabelecido no artigo 3º, IV, da Carta Política, referente especificamente a origem, raça e cor, em nada tratando das questões sexuais, idade, ou quaisquer outras formas de discriminação.

Se os legisladores da lei sob comento desejassem penalizar outras condutas em nível de racismo – como questões atinentes a sexualidade, idade ou outras formas de discriminação – o teriam feito de maneira expressa, o que não ocorreu. E porque isto não ocorreu? Não sabemos, mas talvez porque: (a) inexistiam causas suficientes para mobilizar/sensibilizar a sociedade/opinião pública para os fins de aplicar a ultima ratio no âmbito de proteção daqueles direitos; (b) existiam outras políticas públicas e normas não penais que já desempenhavam as funções protetivas a contento em face dos problemas, riscos e perigos existentes aqueles direitos.

A estratégia e esforço hercúleo de hermenêutica-instrumental do culto relator, em quase 40 laudas (e quase 30% de todo o voto), para sustentar a equiparação da homofobia como espécie de crime racial, a nosso sentir, não logrou êxito.

Nesta esteira, poderíamos perguntar: por que não atribuir legislativamente a certos preconceitos e discriminações fundadas em questões de idade como espécies de crime racial? Por várias razões: (a) porque a lei que trata de crime racial no o fez; (b) porque há outras politicas públicas e leis que se encarregam disto no pais; (c) porque talvez estes outros instrumentos não penais estejam dando conta de demandas desta natureza, dispensando o uso do meio mais violento do sistema jurídico para tanto – sua ultima ratio.

A verdade é que a simples substituição do Legislativo pelo Judiciário nestes temas, para além de por em risco a separação dos poderes e mesmo a estabilidade da Democracia, em seu plano majoritário e contramajoritário, abre flancos ilegítimos de decisão política, impondo fissuras comprometedoras da própria identidade institucional de determinados atores.

E o que fez o relator em seu voto? Diz que a LGBTfobia é crime de racismo! Simples assim! E com isto subverteu toda a ordem lógica e sistêmica de criação de norma penal no Estado Democrático de Direito!

E a discriminações e preconceitos contra a LGBTfobia existentes hoje como seriam tratados neste meio tempo? Através das políticas públicas existentes, melhorando-as também; através de todo o sistema penal que opera a seu favor, com os tipos penais que já existem e que, mal ou bem, cumprem função importante.

Esta coordenação entre as funções e poderes estatais é cada vez mais urgente e permanente, eis que as demandas que se apresentam hoje às instituições publicas são cada vez maiores e mais complexas, reclamando equilíbrios sempre instáveis de proceder de todos os protagonistas, sob pena de causarmos atrofias e sobreposições fragilizantes à legitimidade democrática de cada qual.

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